Rio Grande do Sul

ENTREVISTA ESPECIAL

“Nem sob a ditadura a cultura foi tão chutada como agora”, avalia Juarez Fonseca

No primeiro volume de Aquarela Brasileira, o crítico de música popular enfeixa 28 entrevistas com luminares da MPB

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Juarez Fonseca tem mais de 50 anos a serviço da música e da arte em diversos meios de comunicação - Fotpo: Sônia Fonseca

Difícil topar nas veredas da MPB, do rock e das diversas formas da canção popular, uma trajetória robusta como a de Juarez Fonseca. Ao longo de 50 anos, ele passou por Zero Hora, Folha da Tarde e transitou pela imprensa alternativa. É um corpo de conhecimentos de meio século, tempo que gastou esquadrinhando os muitos modos de expressão musical do país. Uma jornada que incorpora os grandes protagonistas da Bossa Nova, da Tropicália, da canção de protesto, do pop, do rock, do samba e dos variados cantares do Rio Grande e do Sul da América.

Agora, desbravando seus vastos arquivos, garimpou 28 entrevistas, estreladas por Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Nara Leão, Raul Seixas e mais nomes de alto gabarito. São elas que encorpam o primeiro volume de Aquarela Brasileira (Diadorim Editora/2021), aos quais se seguirão, no mínimo, mais dois.

O primeiro tem seu foco na década de 1970. Os demais irão até o ano 2000. Nesta conversa, o autor lamenta a hegemonia da sofrência nas rádios, confessa que nunca ouvira Marília Mendonça, lastima o massacre da cultura nacional sob Bolsonaro, diz em quem aposta na MPB e revela os nomes do próximo livro.

Confira a entrevista completa:

BdFRS - Tu estás na janela há meio século vendo a banda da MPB passar. Há grandes intérpretes, compositores, músicos e movimentos nos anos 1950/60/70. Mas, hoje, o que está passando pela tua janela?

Juarez Fonseca – Hoje estamos em duas encruzilhadas. A primeira é o fim das gravadoras. O que tem hoje, o que me mandam, é singles. Antigamente, era o que se chamava de compacto e antecipava o elepê ou o CD. Hoje ele vale por si só. O cara vai largando e vê o que acontece. Então tem muita coisa na música que está dependendo da audiência de internet. O disco físico – que é o que mais gosto – está na reta final.

A outra encruzilhada é a da pandemia. Por causa disso, centenas ou milhares de pessoas começaram a fazer produções em casa e jogar na internet para uma audiência que nem se sabe qual é.

Teria uma terceira encruzilhada que é a música que está na mídia no Brasil hoje. Que é o sertanejo, a sofrência. Antes, no Rio Grande do Sul não se ouvia isso e hoje, em qualquer lugar que se vai, está tocando esse negócio. Então, é difícil eu falar o que tenho na minha janela hoje.

Muita gente boa pode jogar seu trabalho na roda. Escolho uma pessoa para simbolizar tudo isso. É um cara chamado Amaro Freitas, pianista de Recife que faz jazz brasileiro e tem três discos lançados de altíssima qualidade.

“Eu nunca tinha ouvido uma música dela (Marília Mendonça)”

BdFRS - Teu livro traz, entre outras, entrevistas com Elis, Gil, Caetano, Chico... São nomes referenciais que o Brasil conheceu através das ondas do rádio. E, agora, ouvir rádio nos ajuda a conhecer o quê?

Juarez – As rádios, com raras exceções, tocam a música comercial, aquela que os ouvintes médios estão querendo, que é o sertanejo. Quando morreu essa cantora (Marília Mendonça) foi manchete em todos os jornais. Um auê. E eu nunca tinha ouvido uma única música dela. Fui ouvir e não ouviria de novo. Não sei porque fez tanto sucesso assim. Aí tem gente que diz que ela representou uma nova postura feminina, era inteligente, dizia coisas interessantes e sei lá o quê.

A RBS tem agora uma rádio que só toca sertanejo e coisas do gênero, perfil inimaginável em rádios do RS de até uns dois anos atrás. É difícil ouvir rádio hoje. A única rádio que dá pra ouvir tocando música em Porto Alegre é a FM Cultura. Em São Paulo, tem uma rádio que nem a FM Cultura, no Rio, outra, em Belo Horizonte, outra… São rádios que têm um público fiel, mas é muito pequeno.

“O Ministério da Cultura virou uma secretariazinha entregue a um imbecil”

BdFRS - O Brasil vive anos devastadores para a democracia, a cultura, a ciência, os direitos humanos, o meio ambiente, etc. Tem aquela frase lapidar segundo a qual o artista é “a antena da raça”. Quais os artistas que, fazendo jus à frase, estão antenados, captando este momento para expressá-lo através da sua arte?

Juarez – Tem muitos. Os velhos, por exemplo, Caetano, Gil, Chico, fazem críticas bem fortes ao estado de coisas que vivemos no Brasil. Mas não sei porque, se é porque as gravadoras morreram, as gravações são singles… é muito raro se ouvir um trabalho mais vigoroso, um disco que representa uma opinião do artista sobre o governo, o fim da cultura...

Ouvi um disco de dois caras, o Luiz Tatit e o Dante Ozzetti, que é muito bom. Fala da vida na pandemia e da nossa vida sob esse governo que é um governo de pandemia de direita, negacionismo e tudo mais. Arnaldo Antunes fala, Marisa Monte diz coisas e muitos novos que nem chegam na gente por conta dessa atomização das audiências.

Mas não é algo como o que fazia o Centro Popular de Cultura, da UNE, o que fazia o Vandré, o Apesar de Você, do Chico. Não é música de protesto. Ainda.

BdFRS - É possível dizer, como alguns pensam, que nem sob a ditadura a cultura foi tão desprezada e achincalhada como agora?

Juarez - Esta pergunta é meio capciosa... Mas eu acho que sim. Nem sob a ditadura a cultura foi tão vilipendiada e chutada como agora. As leis de incentivo não existem mais, o Ministério da Cultura foi reduzido a uma secretariazinha dentro do Ministério do Turismo e entregue a um imbecil.

Na ditadura havia censura prévia mas a gente ficava sabendo que o Gonzaguinha tinha sido censurado, o Chico tinha sido censurado, que a música tal tinha sido proibida, que o disco tal não podia ser tocado publicamente. Tinha faixas que eram riscadas com prego para não serem ouvidas. Mas não havia a tensão de agora, que debilita as pessoas. E isso tudo aí que falei pega a gente com a pandemia.

O governo que temos, em termos de cultura, é pior. A Funarte foi criada na ditadura. O Pixinguinha (projeto de valorização da música popular) aconteceu na ditadura. Eles (os militares) não conseguiam dominar tudo e o Hermínio Bello de Carvalho, grande intelectual e compositor, criou o projeto dentro da Funarte. Os músicos do projeto (que percorreram o Brasil no período) não eram exatamente filiados à ideologia do governo, muito pelo contrário.

“A retração é tão grande que vai levar anos para recuperar o que foi destruído”

BdFRS - Diante deste quadro você é otimista?

Juarez – Não sou otimista, cara. Não sou. Temos um ano pela frente e acho que nada de melhor, de positivo, em relação à cultura pode acontecer. Até pode piorar. A não ser que se crie algo como um grande movimento de artistas que desafie o status que temos agora. Pelo menos até o fim do ano sou pessimista.

Se tivermos a eleição de um presidente que contrarie tudo isso posso voltar a ser otimista. Mas vai demorar. A retração é tão grande que vai levar anos para recuperar o que foi destruído.

“Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Bebeto Alves, Vitor Ramil e outros (gaúchos) são tão bons quanto os grandes da MPB”

BdFRS - Qual personagem da música popular brasileira você acha que, pela sua obra, tem um reconhecimento menor do que aquele merecido?

Juarez - Os grandes nomes são reconhecidos: Gil, Caetano, Elis, Chico, Nara, Gal, Martinho da Vila, Tom Zé, Bethânia e por aí vai. Mas para ficar na pergunta – e aí envolve uma questão de regionalização – muitos músicos do Rio Grande do Sul não têm o reconhecimento nacional que mereceriam. Acho que Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Bebeto Alves, Vitor Ramil e outros deveriam ser muito mais reconhecidos nacionalmente do que são. Porque eles são tão bons quanto esses de que falei antes. São tão bons quantos os que vieram depois desses grandes.

Aquela turma do Nordeste, como Fagner, Belchior, Zé Ramalho, e os caras de Minas e de São Paulo... Eles estão à altura desses todos aí. Aquela coisa do Rio Grande do Sul ser longe demais das capitais como dizia o Humberto Gessinger, do Engenheiros do Havaí. Aliás, o Engenheiros do Havaí é o único grupo de rock gaúcho a obter reconhecimento nacional. E reconhecimento o que é? É lotar teatro, lotar ginásios, vender muito disco, tocar no rádio.

“Eu cuspo na cara da arte”, disse Raul Seixas

BdFRS - Qual a resposta dos seus (suas) entrevistados (as) que você nunca mais esqueceu e eventualmente cita?

Juarez - Sempre cito essa dicotomia da Elis numa entrevista dizendo “Eu tô legal” e três anos depois “Eu não tô legal”. Cito a Nara, que já era uma figura emblemática, o maior nome feminino da Bossa Nova, dizendo que “talvez eu passe a me sentir uma cantora”. Quer dizer, a humildade dela era impressionante...

Também a entrevista do Raul Seixas dizendo “Eu cuspo na cara da Arte”, é bem forte para marcar a personalidade de um artista. Cito o Adelino Moreira, autor dos principais sucessos do Nélson Gonçalves, que vendeu milhões de discos com o Nélson Gonçalves, que tocou muito no rádio, dizendo “música boa é que me dá dinheiro”. Uma confissão sem medo de patrulha. Quando Teixeirinha disse “Foi Deus que me deu inspiração para fazer o que faço” também representa bem a história de religião no meio da arte.

São 28 entrevistas e eu gosto de todas. Representam aquele momento dos anos 1970 quando foram feitas. Nos próximos volumes, Gláuber, Iberê, Caymmi, Zitarrosa, Mercedes...

BdFRS - Que podemos esperar para os próximos volumes programados a partir do teu acervo cinquentenário?

Juarez - Em tese, serão quatro volumes. Poderão ser três dependendo como se sairá o segundo. Imagino lançá-lo na metade de 2022. Nos próximos haverá entrevistas que não são dos anos 1980, 1990 ou 2000 ou não são da área da música ou não são da música brasileira.

Tenho entrevistas que acho muito boas com Gláuber Rocha, Caio Fernando Abreu, Iberê Camargo, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Alfredo Zitarrosa, grande nome da música do Uruguai. Deve ter repeteco de entrevistas com o Gil, a Nara, a Rita Lee, o Caetano.

Fiz sete entrevistas com Gil, quatro com Caetano. Tem Paulinho da Viola, Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Engenheiros do Havaí, Paralamas do Sucesso, Lulu Santos - neste caso para mostrar o predomínio do rock nos anos 1980. Tem mais perto o Arnaldo Antunes, Maria Rita, Yamandu Costa. Um pouco mais pra trás, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Luiz Gonzaga, Maestro (Hans-Joachim) Koellreutter, João Nogueira, Barbosa Lessa, Adriana Calcanhoto, Dorival Caymmi, Vitor Ramil. Tudo isso está programado para os próximos volumes.


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Edição: Marcelo Ferreira