Em uma quinta-feira de sol, 9 de dezembro, Dia Internacional das Pessoas Defensoras de Direitos Humanos, véspera do Dia Internacional da Declaração dos Direitos Humanos, Maria Marighella conversou com as jornalistas do Brasil de Fato RS. A convite da Prefeitura de São Leopoldo, Região Metropolitana de Porto Alegre, ela veio para abertura da Feira do Livro do município e exibição do filme que retrata os últimos anos de vida do avô que ela não chegou a conhecer. Maria nasceu em 1976, seu avô, foi morto em 1969.
Tataraneta de escravos, Maria carrega dentro de si uma potente ancestralidade e uma vida marcada pela ditadura brasileira, que além de tirar seu avô, fez com que seu pai só fosse conhecê-la dois anos depois de seu nascimento. Marcas essas que em um primeiro momento fizeram ela querer manter distância da política e fosse encontrar abrigo no teatro, na cultura. Foi com um segundo golpe sofrido no país, em 2016, em especial o voto do então deputado Jair Bolsonaro, dedicado ao torturador Ustra, que fizeram ela abraçar a veia política herdada.
“Talvez ali, sem perceber exatamente, tenha nascido um pacto público de participar do processo de retomada. E acho que o pacto que eu faço talvez tenha começado ali naquele 17 de abril de 2016, e isso me trás até aqui, me trás a me organizar, me trás a filiar ao PT, me trás a me colocar como um cargo eletivo que eu nunca tinha pensado.”
Maria, mulher, negra, parda, mãe, filha, neta e irmã, atriz, política, fala dela como sujeito de sua história e trajetória, e dos atravessamentos que a política faz, não somente em sua vida, mas na história do país. “Lembrando Marighella, nós não temos tempo pra ter medo, mas precisamos proteger as nossas parlamentares, a nossa gente, o nosso povo, e dizer: não temos medo, porque não dialogamos com a violência, porque não dialogamos com o fascismo. Fascismo não se dialoga, com a barbárie não se negocia, e eles vão aguentar essas existências que hoje são as existências que vão impedir a brutalidade, que é a brutalidade do capitalismo”.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - Maria, primeiro eu queria que tu nos falasse um pouco como está sendo pra ti estar aqui em São Leopoldo, acompanhar a transmissão do filme. Não sei se tu foi em algum dos assentamentos também, enfim, mas gostaria que nos contasse como está sendo esse momento?
Maria - É um momento muito singular que estamos vivendo agora. Eu quero resgatar um pouco dessa história do filme, de quando ele foi pensado há nove anos... Como ele surge? O jornalista Mário Magalhães lançou em 2012 a biografia Mariguella, O Guerrilheiro que incendiou o mundo. Era pra ser lançada em 2011, ano do centenário de Mariguella, mas não foi possível. Uma biografia que demorou 9 anos para ser feita. Foi um ciclo de 9 anos, uma pesquisa séria, profunda, uma obra muito vertical, uma pesquisa muito sentida, mergulhada por Mário, uma figura que depois passou a integrar o nosso círculo. Esse círculo dos empreendedores de memória. Ele fez uma grande contribuição ao processo de memória com essa obra.
E aí estávamos lá no verão da Bahia no finalzinho de 2012 com Wagner Moura de férias em Salvador, e me perguntou: "Poxa, como é que foi o lançamento do livro? E eu falei, ah, foi muito bem recebido”. Eu entrego o livro para ele, por causa dessa curiosidade, e digo: "Por que você não faz o filme?".
E o que acontece de 2013 para cá, é um ciclo importante da história do Brasil. Então eu vejo essa estreia com muitos cortes, o corte da memória, o corte dos 52 anos de morte de Mariguella. Faço o corte da luta por memória, eu recorto muitas histórias dentro dessa história, e recorto o último ciclo político do Brasil. A feitura do filme percorreu esse círculo de 9 anos que eu chamo, de 2013 a 2021, ou se quisermos 2022.
Eu gosto muito de escrever, então volta um pouco esse ciclo. Esse filme, em algum momento, vai contar essa história. E vamos falar das jornadas de junho, o que acontece no Brasil a partir dessa crise instalada, esse mal-estar na vida pública do país. Esse filme vai falar de 2016, de 2018, de 2019, que é quando ele estreia internacionalmente na Berlinale (Festival de Cinema de Berlim). Ou seja, a primeira obra de grande alcance, a estreia no Brasil de Bolsonaro. E temos a estreia no Brasil, que é esse segundo momento, do pós-golpe, pós-bolsonarismo, e também a soltura do presidente Lula. E de algum modo uma espécie de retomada do processo democrático brasileiro.
Esse filme não é só essa peça da indignação coletiva, esse grito coletivo, mas também é um chamado a ação. Ele cumpre dois papeis, o papel da explosão, da indignação, da convergência da indignação, mas também a confluência da ação coletiva
Eu posso ver esse filme de muitos lugares. Mas acho que precisamos falar de um lugar muito específico, que é um filme que se torna, não só uma peça da memória, uma peça da cultura, mas ele se torna uma espécie de peça, lugar da confluência e da convergência da indignação coletiva. Então estar aqui em São Leopoldo, é parte desse ciclo de agendas e de circuitos que o filme vem atravessando, e se tornou essa obra. O que é a cultura, se não a articulação da nossa subjetividade. Quando pensamos uma peça de cultura, o que é cultura? Aquilo que nós somos articulados a nossa comunidade, a nossa coletividade, ao nosso etus coletivo, e o filme cumpre muito esse papel de cultura, que nos conecta a comunidade, que nos conecta ao povo, que nos conecta a vínculo, elo, afeição.
E esse filme não é só essa peça da indignação coletiva, confluência, esse grito coletivo, mas também é um chamado a ação. Então ele cumpre dois papeis, o papel da explosão, da indignação, da convergência da indignação, mas também a confluência da ação coletiva.
E aí você me pergunta se eu estive no assentamento. Eu tive na experiência mais emblemática dos últimos tempos que foi estar na exibição do filme lá no assentamento Jacy Rocha, lá no Prado, lá no extremo Sul da Bahia. E onde querem dizer que estamos em uma bolha, a esquerda falava muito, uma bolha, vocês estão na bolha. Gente, que bolha? É um assentamento, com a galera da cultura, com artistas, com indígenas, com negros e negras, quilombolas, assentados, juventude, mulheres, sabe? Enfim, intelectuais, professores, trabalhadores, servidores públicos, gente que sai da universidade, não sei aonde, para ir até lá. Não há bolha alguma, ao contrário, tem a expressão das vozes que reivindicam democracia. Foi um marco muito bonito, e todos os lugares têm sido.
Eu sinto agora que nós estamos em férvido transporte em direção à retomada democrática, ao processo de liberdade no país, e esse filme nos mobiliza muito nesse sentido
Eu digo assim, temos percorrido terreiros, terreiras, giras, rodas... E como Mariguella acabou virando sim, um bolo de uma série de agendas. O que mais ouvimos é as pessoas falando, os movimentos falando, "eu me reconheço na luta de Mariguella". Tivemos uma experiência lá na nave coletiva na Mídia Ninja, mulheres trans dizendo: "eu me reconheço nessa luta". Então não é uma coisa qualquer. Estamos em pleno transporte, Marighella não se opõe a uma liberdade, ele falou assim, férvido transporte* na luta, e eu sinto agora que nós estamos em férvido transporte em direção à retomada democrática, ao processo de liberdade no país, e esse filme nos mobiliza muito nesse sentido.
BdFRS - Tem muitos jovens assistindo esse filme que talvez nunca tenham ouvido falar de Marighella, e mesmo dessa história da resistência à Ditadura Militar. Na tua visão, qual a importância desse filme pra juventude?
Maria - Mariguella faria 110 anos, uma figura nitidamente do século XX. Uma figura muito impressionante, porque como ele consegue falar com a juventude. Marighella fala com a juventude desde que ele foi jovem, até quando ele foi já um experiente dirigente comunista. Mariguella sempre teve a sua luta muito conectada à juventude, um modo de pensar, a juventude de cada tempo.
E no livro Porque resisti a prisão, que é um livro de 1964, ele já tinha 54 anos, ele fala assim: "mas as novas gerações, a despeito dos que pretendem distorcer-lhes o caminho, é uma geração política, marcha para frente, confiantes a um destino". E essa voz dele me mostra o quanto ele se preocupou com a juventude, em todo o tempo, e como ele tinha convicção que a juventude de qualquer tempo seria responsável por uma retomada. Eu não tenho nenhuma dúvida que essa obra conecta as juventudes de todo o tempo, de qualquer tempo.
Recebemos outro dia uma professora de uma cidade da Bahia, Vitória da Conquista, foi com um grupo de alunos, e no final eles foram num bar beber, e mandaram um vídeo, "ah, não sei o que, não conhecia, máximo", mostrando a vibração de como Marighella é recebido. Eu tive agora numa sessão com alunos da escola pública, eles começam assim todo escabreado, "quem é esse cara e tal", e daqui a pouco, meu Deus, "é nosso cara". É um efeito que o filme causa. Mas a verdade é que qualquer periferia que você vai encontra uma pichação: Marighella Vive, e em cada brecha de periferia, de rua, de vida urbana, encontra-se com essa dimensão de juventudes.
Falar da memória de Mariguella é falar sobre a nossa memória. Ganhamos todos quando essa memória se abre pra nós, se revela como direito, e é muito forte
Um dos ativos também muito importante dessa relação é a música dos Racionais. Outro dia eu estava chegando num lugar, e precisei apresentar meu documento, ele falou assim: "eu conheço esse nome, eu conheci esse nome na música dos Racionais". Obviamente o filme faz um alcance, uma ponte, faz um transporte, mas é óbvio que precisamos pensar o processo de memória de Mariguella vendo essas camadas. Então é o filme, mas antes do filme, o livro de Mário, antes do livro a música de Mano Brown, do filme de Isa (Isa Grinspum Ferraz - sobrinha de Carlos Marighella), que é um documentário, antes do filme de Isa outros filmes, Silvio Tendler, Carlos Pronzato.
Antes do filme a poesia, Jorge Amado, a primeira pessoa que falou, o grande amigo de Mariguella, "Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella". É muito bonito também ver esse percurso da memória, é o percurso da história se revelando na frente do Brasil, porque falar da memória de Mariguella é falar sobre a nossa memória. Ganhamos todos quando essa memória se abre pra nós, se revela como direito, e é muito forte.
BdFRS - Em uma entrevista para o UOL, tu fez uma afirmação: eu nasci já como uma criança vítima da ditadura, porque o meu pai estava preso em 1975, só fui viver com ele quando eu já tinha dois anos. Vivi a anistia em 1979 de forma muito forte, porque foi quando minha avó Clara, exilada em Cuba depois da morte do meu avô, voltou. O que essa história toda contribuiu pra ti entrar na política? Hoje como uma vereadora eleita na Bahia, e fazendo todo esse trabalho de resgate da memória, como isso reverberou em ti?
Maria - Eu podia te falar que toda essa memória me fez fugir da política (risos). Primeiro você faz o papel da fuga. Não é fácil ser uma criança nascida nos anos 1970 nesse contexto. A gente não pode em nenhum momento falar que isso é uma coisa de uma adesão imediata, porque, ao contrário. É muito importante que a gente trate dessas questões, as crianças nascidas dos processos de brutalidade são vítimas.
Eu vou até fazer uma partezinha no filme, um flash, o Wagner queria que eu fizesse essa participação, mas eu fiz teste, viu gente, não foi nepotismo, não foi nada. Ele perguntou: "você faria um teste pra uma apariçãozinha, eu preciso testar uma coisa". Eu falei: "faço, claro, muito justo, a gente não quer privilégio, a gente sempre quer aquilo que é para gente". E eu fiz o teste, e o teste era uma conversa com o produtor de elenco, o Hugo, e teve uma hora que ele pergunta: "Você queria ter um filho Marighella?” E nessa hora eu tive um choro muito convulso, porque ninguém quer ter um filho como Marighella. O fato de ser um orgulho, uma honra, o fato de reconhecermos essa história como uma história singular, única, de um tipo de personalidade muito digna, não faz, em nenhuma hipótese, que a gente queira que algum ser vivente, sobretudo aqueles que a gente mais ama, passe pelo que Marighella passou.
Eu gosto de falar isso, porque o primeiro impulso de uma criança nascida nessas condições é se afastar daquilo, é violento, é duro. Quando eu era criança a única coisa que eu queria era ter meus próprios problemas, eu queria que a minha família fosse normal. A coisa que eu mais sonhava era ter uma vida normal. Só queria o que toda a criança quer, uma família, um pai, uma mãe, uma vovozinha, uma festa no Natal. Isso que a gente sonha, espera e quer.
Eu estudei em uma escola muito importante da Bahia, foi a primeira escola construtivista da Bahia, fundada por uma feminista, educadora, discípula de Anísio Teixeira da Bahia, a Amabilia Almeida, perseguida pelo golpe em 1964, professora demitida pela ditadura. E por causa disso ela funda a sua própria escola em 1965, e em 1978 eu vou estudar nessa escola. O marido dela, Contreras, um comunista da época estava preso com meu pai. Foi uma escola que eu fui muito amparada, eu fui acolhida, eu fui amada. E essa escola tinha um traço político muito forte de participação de assembleias, etc., por ser uma escola construtivista apoiava as suas ações nas artes, na cultura. E nessa escola eu encontrei o teatro.
E depois de muitos anos de análise, eu dizia assim: "gente, era no teatro que eu podia ter meus próprios problemas". Porque os problemas da minha casa, eles eram problemas sempre sociais, os problemas do país, e foi no teatro que eu encontrei esse espaço pra aplacar as minhas angústias, as minhas subjetividades, reivindicar os espaços que eu queria reivindicar. Então a arte, a cultura, foram extremamente curativas na minha trajetória, e por causa disso eu tive uma trajetória como ativista da cultura, primeiro artista, depois ativista da cultura, ativista do teatro de grupo, encontro a cidade, e fiz desse espaço um lugar muito próprio e meu, sem aderir a exatamente um tipo de luta que a minha família afirmava...
Temos aí um percurso de afirmação do país que nós queremos ser, encontrar o nosso destino, e isso está sendo disputado agora mesmo. Agora estamos disputando com uma emergência, que é a emergência da fome, que é a emergência da recessão, a emergência da carestia
Eu atravessei a vida reivindicando também algo que eu acreditava muitíssimo, e continuo acreditando. E aí abrindo um novo parênteses, acho que as lutas de século XX abriram mão de uma coisa que considero muito fundamental para gente pensar a luta contemporânea, que é a questão do sujeito. Acho que o socialismo, as lutas coletivas, a luta de todos, muitas vezes não reconhecem as lutas do sujeito. E acho que temos uma tarefa em 2021, de, ao lado das lutas coletivas, das lutas de todos, das lutas de classe, também reconhecer os sujeitos e as vidas, a vida de cada um. Não dos indivíduos como querem o capitalismo, mas as lutas dos sujeitos que querem ser reconhecidos como um, com as suas identidades na luta coletiva. E acho que a cultura tem grande valor, e eu trago isso como experiência de vida, porque eu queria ser reconhecida na minha subjetividade. Eu era Maria, obviamente, parte daquela luta coletiva. Mas eu queria ser reconhecida como Maria sujeito, Maria mulher, Maria garota, Maria na cidade de Salvador, Maria nordestina, Maria parda, Maria preta, Maria… E acho que precisamos pensar muito isso.
Mas voltando a pergunta, o primeiro impulso é me afastar daquilo. Eu queria falar de amor, eu queria falar dos meus sentimentos, e fiz uma trajetória, mas ninguém se livra de um Mariguella assim impunemente, e daquilo que nos conforma como sujeitos. Mais recentemente eu entendo que eu tenho uma ancestralidade de luta, reverencio e sou grata por essa ancestralidade, bem como, como sujeito me fundo também como artista nas artes. E aí eu passo, passamos juntos por algo muito violento que é o golpe de 2016. O golpe dado no Brasil através do impeachment à presidenta Dilma Rousseff. E aquele dia da admissibilidade do impeachment, aquele 17 de abril de 2016, eu vi aquela cena na televisão sozinha. Para mim isso é uma peça da história, eu nem consigo ver o filme O Processo, porque eu ainda me emociono, me comovo muito. E aquilo tudo é muito devastador para o Brasil, ver aquelas cenas, ver aquelas forças avançando sobre a democracia, ver aquelas falas, aquelas vozes avançando sobre o Parlamento brasileiro que deveria ser a casa do povo. Mas pra mim a cena mais violenta foi o então deputado Jair Messias Bolsonaro dedicar o voto dele a Ustra.
E seria suficientemente violento que um deputado, um parlamentar eleito, dedicasse o voto dele ao torturador da mulher sujeito objeto do processo. E naquele momento, porque quis o Brasil que a sua população não soubesse quem é Ustra. Mas eu não posso recuar daquilo que eu sei, não só porque estudei, porque vivi, foi Ustra quem foi responsável pela prisão do meu pai, se eu nasci sem o meu pai é porque o Ustra existiu, e comandou a Operação Radar, uma operação violenta que tirou do campo de reorganização do país aquelas figuras que estavam participando da reorganização democrática. Então foram sindicalistas, movimentos populares, movimentos de jovens, foi a Operação Radar responsável pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog, e precisamos contar isso.
E naquele momento eu vi que todas as casas da civilidade que se avançou no Brasil, o Brasil rompeu ali. Se temos essa democracia tão frágil, tão suscetível, naquele momento eu tinha convicção de que tínhamos ferido e avançado muitas casas muito difíceis de serem recompostas. E talvez ali, por tudo que eu trazia como ancestralidade, como sujeito, como ativista, como militante, como mulher, como tudo que eu era, eu falei não, realmente retroagimos de mais. E entendi que houve um campo da democracia que não disputamos. E eu falei, tem gente que precisa ser organizada, acho que temos que enfrentar o desafio que nos é colocado. E obviamente eu não pude recuar desse chamado, porque já não é mais uma questão da vontade, é uma questão de um chamado público. E talvez ali, sem perceber exatamente como eu estou explicando aqui agora, tenha nascido um pacto público de participar do processo de retomada. E acho que o pacto que eu faço talvez tenha começado naquele 17 de abril de 2016, e isso me trás até aqui, me trás a me organizar, me trás a filiar ao PT, me trás a me colocar como um cargo eletivo que eu nunca tinha pensado.
BdFRS - Tu trás muitos elementos na tua fala, essa questão de disputar a democracia, da subjetividade, que é um campo que a esquerda muitas vezes não disputou... Por exemplo, é uma coisa que a igreja evangélica vem fazendo muito nas periferias. E estamos vivendo um momento em que a história da Ditadura Militar está em disputa, inclusive com Bolsonaro querendo acabar com registros dessa história. A visão de Estado está em disputa, a visão de democracia, enfim. Como que tu enxergas o debate para as eleições de 2022, tendo tudo isso em vista?
Maria - Olha, 2022 está aí na porta, mas eu acho que temos um 2021 todo ainda. Digo assim, 2021 como processo, não o que termina no 31 de dezembro. Eu acho que agora é uma questão de dia a dia. Primeiro nós precisamos eleger Lula, então tem um imperativo colocado muito concreto, muito objetivo, muito dado. Mas eu acho que isso é muito insuficiente, não pelo que Lula representa, eu digo que Lula é a própria terra boa. Acho que a presença de Lula, essa figura que acumula 50 anos de história pública, e portanto acumula as lutas tradicionais com as lutas do seu tempo, é uma figura que é atravessada por muitas histórias. Ele trás o conjunto de lutas do século XX, transita para o século XXI e se encontra com esse futuro a ser construído. Acho que é uma figura que me trás muita complexidade.
BdFRS - Só deixa eu fazer um parênteses, eu li um texto muito bom esses dias, que a pessoa comparava o Lula ao Exu...
Maria - É isso, eu acho que Lula é isso, é um pouco esse Exuzão mesmo, sabe? E ele é atravessado por tudo. Eu estive com ele sexta-feira, na exibição do Marighella, e o pastor Henrique Vieira ia fazer uma fala. E eu falei: "presidente, olha esse homem, presta atenção. Quem pode conversar, trazer Jesus, a fala de Jesus, os argumentos, é ele". E o Lula, na mesma hora, também pensou o mesmo.
É realmente uma figura muito singular, de um tempo. Mas tudo isso é muito insuficiente porque não pode estar na mão, ou na trajetória, ou no círculo de um homem, seja ele quem fosse. Nós não estamos mais atrás de salvadores, não se trata mais de quem é o salvador, nós até queremos salvação, mas não se trata do salvador. Eu acho que Lula tem um papel fundamental que é devolver ao Brasil aquilo que é interrompido em 2016, que é a retomada do debate político na linguagem da política.
Eu gosto de dizer que política é linguagem, política tem linguagem, tem modos, é uma arte nesse sentido. Então precisa de recursos, você precisa de elementos pra tratar a questão. E ele reposiciona a linguagem da política, o tabuleiro da política, o tabuleiro da democracia, da capacidade, os elementos do debate da democracia. E isso eu acho que já é muito, é uma força. Mas isso é insuficiente porque nos falta o programa. Porque não dá mais pra voltar 2013, não dá mais pra voltar 2012, não dá pra voltar 2014. O Brasil mudou, o Brasil virou, as relações de trabalho não são as mesmas.
Temos uma questão premente agora, que é a questão ambiental, e nada até aqui foi suficiente para dar conta da posição do Brasil na relação do pacto pelo clima, da relação ambiental. O Brasil não apresentou ainda um modelo de desenvolvimento, ou uma alternativa ao sub-desenvolvimentismo colocado ali naqueles anos. Estamos vivendo um processo avançado de desindustrialização.
O Brasil não conseguiu responder às mulheres, a questão do trabalho, do trabalho de cuidados, o Brasil não conseguiu se quer responder aos direitos sexuais e reprodutivos, o Brasil não tratou da questão do aborto, não dividiu com o Estado a relação de cuidados.
Se nós não dissermos todo dia que o que aconteceu em 2016 é golpe, e que 2018 é a institucionalização do golpe, e que nós estamos em plena disputa do processo de redemocratização do país, a gente não vai conseguir encontrar as saídas
O Brasil não falou ainda de maneira radical com indígenas, não tratamos a questão das águas, dos rios. Não tratamos as cidades, o Brasil tem um passivo no tratamento das cidades. Temos esse debate. Nós temos as lutas de sempre, as lutas tradicionais, com as lutas contemporâneas, reivindicadas por mulheres, negros e negras, indígenas, pelos ativistas do meio ambiente. Pelo passivo que a gente tem por história, memória, pela verdade. Por um modelo de desenvolvimento, de progresso, que seja um progresso de afirmação dessa nação Brasil e não de exploração. Enfim, esse Brasil transformado em exportador de commodities. Acho que temos muita coisa.
E essas lutas estão em pleno curso, elas estão frenéticas, e as pessoas estão ávidas por responder. As periferias querem ser centro, os centros olham pra periferia, acho que tem trânsitos, tem cultura. E eu acho que temos essa tarefa em 2022, que é eleger o presidente Lula, mas não só reposicionar o tabuleiro do jogo democrático da política, mas sem dúvida responder o mundo, porque não é mais só sobre o Brasil, o papel e que posição o Brasil vai jogar na disputa do amanhã e do futuro. A posição que o Brasil adota, é uma posição extremamente importante para as relações do mundo.
O Brasil hoje perdeu suas relações com China, União Soviética, perdeu as relações com América Latina, com América do Sul, perdeu as suas conexões, perdeu o seu vínculo sendo constituído com a África, com o Oriente...
Temos aí um percurso de afirmação do país que nós queremos ser, encontrar o nosso destino, e isso está sendo disputado agora mesmo. Agora estamos disputando com uma emergência, que é a emergência da fome, que é a emergência da recessão, a emergência da carestia. Então há uma potência, ou seja, há um desejo, eu enxergo um país desejoso de se encontrar com o seu destino, mas ao mesmo tempo precisando responder a coisas absolutamente emergenciais. Acho que temos que viver duas temporalidades, quando eu falo 2022 sem perder o 2021, não é o 2021 que termina ali. Precisamos viver duas temporalidades, a temporalidade da emergência, e a temporalidade da construção da democracia plena. E essas duas temporalidades estão reivindicando esse espaço e lugar, e nós precisamos de um campo de organização que respeite essas temporalidades, aquela que dialogue com o agora, com quem tem fome, e com o amanhã, que é o encontro do Brasil com o seu destino.
Eu acho que temos essa tarefa em 2022, que é eleger o presidente Lula, mas não só reposicionar o tabuleiro do jogo democrático da política, mas sem dúvida responder o mundo, porque não é mais só sobre o Brasil, o papel e que posição o Brasil vai jogar na disputa do amanhã e do futuro
BdFRS - Tivemos recentemente ataques a vereadores da Bancada Negra de Porto Alegre. Ataques que muitos já vêm sofrendo. Em que as mulheres têm sido mais visadas. Como devemos enfrentar esse tipo de ataques?
Maria - A primeira coisa é que não existe mulher na política no Brasil que não seja vítima de violência, é muito importante que falemos isso. Todas as mulheres, mesmo aquelas que não sabem, hoje, estão sendo vítimas de violência. Mas, tem mulheres, corpos, sujeitos que ameaçam mais a manutenção do poder, e portanto são mais atacadas.
E eu quero fazer uma pequena volta nessa pergunta, primeira é que Jean Wyllys, em 2015, quando começaram os primeiros ataques de ódio a ele, disse: "Esses ataques não falam sobre mim, esses ataques falam sobre nós". Ou seja, havia uma ideia, eu não sei em que nível difundido, de que Jean era vítima de um ataque a sua sexualidade, por ser um deputado assumidamente homossexual. E ele tentava explicar, não é sobre mim. E acho que não podemos perder isso de vista, não é sobre um, é sobre nós.
Mas existem corpos e vidas que desestabilizam mais o poder constituído tal como ele está organizado, e esse poder não tolera essa desorganização, essa insurgência do poder, e portanto elas são mais diretamente atacadas, ou mais violentamente atacadas. A outra coisa que não podemos esquecer é: o Brasil não conseguiu responder quem mandou matar Marielle.
Esse é um traço de violência, de autoritarismo, é um traço de que nós não estamos em democracia plena, seja porque houve um golpe em 2016, que nunca podemos esquecer, as pessoas muito me perguntam: "Maria, você acha que vai ter golpe?" Eu falo: "Gente, não é que vai ter golpe, já houve". Se nós não dissermos todo dia que o que aconteceu em 2016 é golpe, e que 2018 é a institucionalização do golpe, e que nós estamos em plena disputa do processo de redemocratização do país, a gente não vai conseguir encontrar as saídas.
Existem corpos e vidas que desestabilizam mais o poder constituído tal como ele está organizado, e esse poder não tolera essa desorganização, essa insurgência do poder, e portanto elas são mais diretamente atacadas, ou mais violentamente atacadas
O assassinato de Marielle está escrito num ciclo e círculo de violência, arbitrariedade, autoritarismo. Quando o Estado brasileiro não responde quem mandou matar, ele se torna cúmplice. Porque não há razão para que o Estado não responda, se não por conveniência e negligência. Por conveniência, porque não pode expor os motivos e seus autores. Ou por negligência, por não tratar esta questão como uma questão importante da República. E é disso que precisamos falar, e esses dois casos, eles estão muito próximos.
Mas eu queria tratar de uma outra questão, para não tratar das violências especificamente. É o seguinte: a extrema-direita em todo o mundo, ela tem um modo de operação, e o Brasil está inscrito nas estratégias da extrema-direita. Produção de fake news, que são extremamente mobilizadoras das expressões de ódio, ataques a reputações, aniquilamento de reputações. A desinstitucionalização, a falta de crença no funcionamento da Justiça, o caos institucional, as violências, o uso das armas, ou da cultura de violência. O ataque à educação, à ciência, à comunicação, ao jornalismo. O terraplanismo, o negacionismo. São todas experiências, são táticas, estratégias desse campo da extrema-direita, de afirmar o seu projeto que só pode ser afirmado na interdição do diálogo e do debate público, e portanto da própria política.
O próprio sentido de política que é o diálogo, o debate, e a emancipação, ele é absolutamente interditado com essa experiência da extrema-direita, que inclusive faz uso da linguagem do campo progressista, com palavras como liberdade, para firmar o seu projeto. E essa tática, essa estratégia, ela não é local, ela não está no Brasil, ela é global, ela tem os seus autores, seus estrategistas, seus canais de articulação. Ela tem recurso, grana, investimento. Ela tem orientação, ela é projeto. Podíamos falar muito, e nós precisamos falar o que e quem a compõe, e quem está, quem paga, quem de algum modo ampara esse projeto, também é algo que deve merecer atenção.
Mas eu queria chegar no ponto que é o seguinte: o projeto ultra neoliberal, hoje, que está em todo o mundo, que é o capitalismo na sua versão mais brutal, mais cruel, porque ela esgarça todo o campo dos direitos, todo o campo de proteção social, ela precisa de uma linha auxiliar muito desestabilizadora e tão mobilizadora de ódio como é o processo da extrema-direita. Então o que eu diria é que a extrema-direita em todo o mundo é a expressão política que abre passagem a um processo político como o ultra neoliberalismo, que não seria votado em condições normais de temperatura e pressão. Se o Brasil estivesse num contexto normal, ele não teria votado experiências ultra neoliberais nas cidades, nos estados e no país. O que eu quero dizer com todas as linhas, é que o que está por trás dessas experiências de ataque, ódio, violência, é a abertura de passagem pro capital ultra neoliberal, que se locupleta dessas violências, e se afirma na vida pública do país, com ou sem o voto.
O projeto ultra neoliberal, hoje, que está em todo o mundo, que é o capitalismo na sua versão mais brutal, mais cruel, precisa de uma linha auxiliar muito desestabilizadora e tão mobilizadora de ódio como é o processo da extrema-direita
Portanto, os ataques hoje são colocados nesses parlamentares, nessas existências que são extremamente desorganizadoras do poder constituído, que são essencialmente a luta de mulheres e mulheres negras e LGBTs, que falam essencialmente ao patriarcado, que é quem faz a manutenção do patrimonialismo, da exploração, da acumulação. Eles estão dizendo: saiam do nosso caminho, porque nós vamos fazer passar o capitalismo. E o que nós precisamos dizer é: nós não dialogamos com medo, porque é o medo quem dialoga com o fascismo.
Lembrando Marighella, nós não temos tempo pra ter medo, mas precisamos proteger as nossas parlamentares, a nossa gente, o nosso povo, e dizer: não temos medo, porque não dialogamos com a violência, porque não dialogamos com o fascismo. Fascismo não se dialoga, com a barbárie não se negocia, e eles vão aguentar essas existências que hoje são as existências que vão impedir a brutalidade, que é a brutalidade do capitalismo.
*Liberdade
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”
São Paulo, Presídio Especial, 1939
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Edição: Katia Marko