Oitenta nomes indiciados em 1.289 páginas. Entre eles, o presidente da República. É o relatório final da CPI da Covid que atraiu as atenções do país em 60 reuniões e seis meses de investigação, durante os quais foi municiada com mais de quatro milhões de documentos sigilosos.
Os senadores pedem o indiciamento de Jair Bolsonaro por nove crimes referentes a ações e omissões na pandemia. Veja aqui o que ele fez ou deixou de fazer para estar nesta situação:
Espalhando a doença e a morte
Epidemia – Provocar a disseminação de epidemia e, eventualmente, da morte. Na visão da CPI, o criminoso não é somente aquele que provoca a doença, mas também quem atua ou se omite causando o agravamento da epidemia. Inclui-se aí a falta de defesa do uso de máscaras e do distanciamento social e o atraso na compra das vacinas. Sem contar o fato de que o presidente atacou sempre tais providências. Então, pediu seu indiciamento.
Os senadores apontaram o crime baseados no que diz o artigo 267 do Código Penal: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. A pena é de reclusão máxima de 15 anos. Porém, se houver morte, a punição dobra, passando para 30 anos.
Vendendo uma falsa cura
Charlatanismo – Pratica charlatanismo quem anuncia cura por “meio secreto ou infalível”, iludindo as pessoas. Os senadores entenderam ser justamente o caso do presidente. Em plena pandemia, ele divulgou as supostas propriedades curativas de drogas cuja eficácia já havia sido desmentida pela ciência, especialmente a hidroxicloroquina, a ivermectina e a azitromicina.
O crime consta do artigo 283 do Código Penal. A pena determina detenção de três meses a um ano, além de multa.
A invasão de hospitais
Incitação ao crime – Quando estimulou a população a reagir contra as medidas sanitárias – máscaras, distanciamento social e recusa da vacinação – Bolsonaro incitou a prática de crimes. É a interpretação da CPI. Teria agido desta maneira quando propôs aos seus seguidores a invasão e a gravação de cenas em hospitais onde leitos estariam supostamente vazios. Incentivou a invasão de domicílios, expondo pessoas ao risco de contaminação ou morte.
A incitação ao crime está no artigo 286 do Código Penal. A pena vai de três a seis meses de detenção, mas pode ser trocada por multa.
Braços cruzados diante da corrupção
Prevaricação – Prevaricar é o mesmo que corromper ou submeter-se à corrupção. Prevarica aquele agente público – aqui, o presidente – que atrasa ou deixa de praticar indevidamente ato de ofício. Ou seja, algo que é sua obrigação fazer. Ou pratica tal ação agindo contra aquilo que manda a lei, visando satisfazer “interesse ou sentimento pessoal”.
Bolsonaro é acusado de prevaricar ao ouvir o relato feito pelo deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), que apontava corrupção na compra da vacina indiana Covaxin, e nada fazer para apurar as denúncias. Ocorreu em março e só em 30 de junho foi instaurado o inquérito policial, depois do escândalo explodir na CPI. O governo federal estava informado sobre o alto risco de colapso da saúde do Amazonas – onde pacientes morreram por falta de oxigênio _ mas não agiu a tempo.
O Código Penal contempla a conduta criminosa no artigo 319. A punição é de três meses a um ano de detenção e multa.
Torrando o dinheiro do país
Emprego irregular de verbas públicas – Aqui, o presidente foi enquadrado por ordenar o Laboratório Químico do Exército a gastar R$ 1,14 milhão para produzir cloroquina, droga ineficaz no combate à pandemia. A CPI descobriu também que Bolsonaro e seu então ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, torraram mais de R$ 40 milhões na compra de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina mesmo depois de estar cientificamente comprovado que nenhuma dessas drogas funcionava contra o coronavírus.
A tipificação do crime está no artigo 315 do Código Penal e resulta em detenção de um a três meses ou multa.
O estudo que não existia
Falsificação de documento particular – Falsificar um documento ou modificar algum verdadeiro. No relatório, Bolsonaro é acusado de se valer de qualquer meio para justificar seu ponto de vista. Deste jeito, falsificou uma análise de um auditor do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre uma possível supernotificação das mortes causadas pela covid-19 no país. Era um rascunho de relatório e de cunho pessoal. Mas o presidente divulgou o texto como se fosse um estudo do TCU.
A base para o indiciamento vem do artigo 298 do Código Penal. Lá está escrito que “falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro” rende pena de reclusão de um a cinco anos mais multa.
As mortes por falta de oxigênio em Manaus
Crimes contra a humanidade – As ações e omissões do presidente nas mortes por falta de oxigênio hospitalar no Amazonas, nas relações entre a empresa Prevent Senior e o governo e seus ataques frequentes contra as populações indígenas comprovariam “crimes contra a humanidade” conforme o relatório. Envolveriam “extermínio, perseguição e outros atos desumanos". No caso de Manaus, o governo, mesmo sabendo do colapso, teria apostado no chamado “kit precoce”, sabidamente ineficaz, em vez de enviar oxigênio para salvar vidas.
Os crimes contra a humanidade estão previstos no Estatuto de Roma, tratado que tem a assinatura do Brasil e de mais 121 nações. Integrado por 18 juízes de diferentes países, o Tribunal Penal Internacional (TPI), tem sede em Haia, na Holanda. Desde 2019, a procuradoria do TPI investiga Bolsonaro por crimes ambientais.
Desprezo pela vida dos brasileiros
Crimes de responsabilidade – Para a CPI, Bolsonaro mostrou-se “descomprometido com o combate à pandemia”, obrigação legal de qualquer presidente. Deste jeito, não se importou com “a preservação da vida e integridade física de milhares de brasileiros”.
Deu pouca importância à gravidade da covid-19, apostou em drogas sem efeito e condenadas pela ciência, não coordenou o combate à pandemia, não lançou campanhas de esclarecimento da população, atacou medidas de contenção da epidemia como o uso de máscaras e o distanciamento social, atrasou a compra de vacinas – o governo demorou dois meses para responder a uma carta da Pfizer que oferecia 1,5 milhão de doses.
Teria cometido dois crimes de responsabilidade: violação de direito social e incompatibilidade com a dignidade, honra e decoro do cargo.
O artigo 85 da Constituição trata destes delitos que são regulados pela lei 1.079/50. A pena é política: perda do cargo ou proibição de exercer cargo público.
Violando a lei que ele mesmo assinou
Infração de medida sanitária preventiva – Bolsonaro ignorou repetidamente a necessidade do uso de máscaras de proteção, essencial para não espalhar ou contrair a covid-19. Agiu assim em público, inclusive em aglomerações. Sem nenhum motivo especial, violou a lei federal 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que ele próprio sancionou.
O delito também está contemplado no artigo 268 do Código Penal. A punição implica detenção de um mês até um ano além de multa.
OPINIÃO
A barriga de Aras e o traseiro de Lira
Por Ayrton Centeno
A CPI fez a sua parte, mas existem dois obstáculos físicos que terá de superar. E nenhum deles é fácil. São a barriga do procurador geral da República Augusto Aras e o traseiro do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Ambos têm se esmerado na blindagem a Bolsonaro.
Aras especializou-se em empurrar com a barriga as denúncias contra o presidente. Só ele pode investigar Bolsonaro que possui foro privilegiado. Já abriu investigação preliminar em cima do calhamaço entregue pelos senadores. Porém, vamos com calma. Não será surpresa se seu abdômen funcionar novamente em prol do sossego palaciano. Abrir inquérito, ele abre. Já abriu dois envolvendo o presidente em 2020. Hoje estão em banho-maria. Abre e esquece.
Lira é um caso mais grave. Seu traseiro inexpugnável repousa no topo de uma montanha de 130 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Com o chamado Centrão, que ele representa, sendo amamentado com emendas e verbas públicas, é pouco provável que Lira tenha alguma dificuldade para se sentar no relatório e se equilibrar no alto da pilha.
O que nem a barriga de Aras nem as nádegas de Lira poderão impedir é o efeito corrosivo da abundância de evidências de desleixo criminoso nas chances do candidato à reeleição.
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Edição: Katia Marko