Lembro da alegria quando criança ao vir com meus pais e irmãos da distante Uruguaiana para o veraneio em Capão da Canoa, em velhos chalés de aluguel que já não existem mais. Dos longos banhos e brincadeiras naquele mar marrom, que ainda não sabíamos que era assim por causa da proliferação de algumas algas, as tardes no fliperama do velho boliche de madeira na praça central, e o jantar no Baronda, na beira da praia. Assim como os chalés de madeira, o boliche e o Baronda também fazem parte do passado. O presente é feito de prédios, muitos prédios, principalmente à beira mar, e de condomínios fechados, nos quais as pessoas veraneiam muitas vezes sem nem colocarem o pé na areia ou no mar, ficando restritas às suas piscinas
Em 1996 me mudei definitivamente para Capão com esposa e filhos, embora continuasse trabalhando em Porto Alegre durante a semana, o que muitas vezes me impedia de acompanhar o ritmo vertiginoso de destruição das casas antigas para a construção de prédios na zona central da cidade, assim como dos condomínios em Xangri-lá. Acompanhei apenas à distância esse processo de verticalização, assim como a morte do boliche para dar lugar à um shopping. A rua onde moro já não é mais residencial, mas comercial, o que me faz conviver com o assédio diário para a venda da casa, que pertenceu a meus pais, onde criei meus filhos e hoje brinco com meus netos.
Toda essa mudança logo iria ter consequências, não só para Capão, mas para as demais praias do Litoral Norte gaúcho, que convivem com a pressão da construção imobiliária para alterar seus planos diretores, liberando ainda mais a verticalização, seguindo o exemplo de Camboriú, em Santa Catarina, glorificada por alguns como modelo de desenvolvimento, com prédios cada vez mais altos e as praias irremediavelmente poluídas, impróprias para banho. E a maior dessas consequências seria justamente no saneamento, com a impossibilidade de tratamento e lançamento do esgoto de tantos prédios e condomínios novos, sem a poluição do mar, rios e lagoas da região. Com o apoio das administrações municipais e da Corsan privatizada, hoje Aegea, os construtores buscaram soluções que lhes permitissem não interromper o ritmo acelerado de seus negócios, como a proposta hoje em debate, fruto de um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) dos empresários, o MPF, o MP, o município de Xangri-lá, a Corsan e a Fepam, de construção de um emissário lagunar de efluentes de Capão da Canoa e Xangri-lá para despejo na Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí.
Foi a indecência e o potencial poluidor dessa proposta que unificou a luta de diversas entidades e movimentos que já se mobilizavam contra a alteração dos planos diretores de Torres e Xangri-lá, a proposta de construção de um Porto em Arroio do Sal e nos mutirões de limpeza da praia e encontros ecológicos de Capão da Canoa. O MOV/LN (Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte), hoje com centenas de membros na região, teve como sua primeira grande luta justamente essa proposta de despejo do esgoto de Capão da Canoa e Xangri-lá no rio Tramandaí, com graves impactos ambientais não só para o rio, como para indígenas e pescadores que vivem próximos ao local do despejo.
Em agosto de 2024 o MOV/LN apresentou um requerimento de suspensão imediata desse emissário e organizou, em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, uma audiência pública proposta pela deputada Laura Sito (PT), em Imbé. A atividade contou com a participação de centenas de moradores e uma quase unanimidade de manifestações contrárias ao projeto. Algumas importantes como a do Centro de Estudos Costeiros Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) da UFRGS, que apontou a falta de estudos prévios aprofundados sobre o impacto desse despejo, principalmente as substâncias presentes nos 5% ou 10% dos efluentes não tratados, o fato da fiscalização e monitoramento serem insuficientes, a retirada de água para abastecimento humano em alguns pontos da bacia hidrográfica e de muitas famílias dependerem da pesca artesanal.
Essa nota técnica do Ceclimar foi muito importante para o Ministério Público Federal rever sua posição favorável à licença prévia já concedida pela Fepam e, junto com o Ministério Público Estadual, acolherem o requerimento do MOV/LN que solicitava a suspensão imediata da construção desse emissário laguna. Com isso foi ajuizado essa semana uma ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela (liminar) para que a Justiça Federal anule a licença que autoriza o lançamento dos efluentes no rio Tramandaí, além de solicitarem que a Fepam faça nova análise do empreendimento proposto pela Aegea/Corsan, considerando nessa análise a elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) com a realização de audiências públicas que permitam a participação da população local, dos municípios afetados, das comunidades indígenas e populações ribeirinhas que vivem da pesca artesanal.
O ajuizamento dessa ação às vésperas da realização de uma nova audiência pública da Assembleia Legislativa, dessa vez proposta pela deputada Sofia Cavedon (PT) na Comissão de Segurança, Serviços Públicos e Modernização do Estado, na próxima segunda-feira (10), às 18h, no Grêmio Esportivo Beira Mar ─ na av. Fernandes Bastos, 1113, Centro de Tramandaí ─ só reforça a necessidade do debate sobre as soluções propostas para o saneamento público no Litoral Norte gaúcho. Ainda mais com o relatório de balneabilidade da Fepam que declarou toda a zona central de praia em Capão da Canoa como imprópria para banho, por exceder o limite de coliformes fecais na água.
Por incrível que pareça, aquele mar claro desse verão está mais poluído do que o chamado chocolatão da minha infância, quando só haviam alguns poucos prédios baixos em Capão da Canoa e nem se pensava na construção de condomínios em Xangri-lá. Para além do debate sobre uma solução emergencial para o tratamento e lançamento do esgoto em nossas praias, devemos aproveitar esse momento para repensarmos o atual modelo de desenvolvimento da região, que compromete justamente aquilo que atrai um número cada vez maior de moradores e veranistas para a região, os banhos de mar.
* Sociólogo, membro do Movimento em Defesa do Litoral Norte.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira