Rio Grande do Sul

ENCHENTES NO RS

'Quem tirou o meu espaço não foi a enchente, foi a Prefeitura, porque passou com a patrola e me deixou sem casa', diz morador de Canoas

Júlio Mariano e a família, atingidos pelas enchentes de maio de 2024, narram luta para ter de volta um lar

Brasil de Fato | Canoas (RS) |
Atingida pela enchente, a casa de Júlio e sua família foi demolida por uma patrola da Prefeitura - Foto: Reprodução / PMC

Por oito anos, Júlio Mariano e a família moraram no endereço Rua Engenheiro Irineu Carvalho Braga, nº 3080, bairro Fátima, Canoas. Em um único dia, perderam tudo. Após ser atingida pelas enchentes de maio de 2024, a casa que chamavam de lar foi demolida com uma patrola pela Prefeitura sem aviso prévio, sem uma ordem judicial e sem que tivessem a chance de retirar o que sobrou de seus pertences. Agora, Júlio, sua esposa e seus cinco filhos pequenos enfrentam uma verdadeira batalha para ter o direito a uma moradia digna.


A casa de Júlio e sua família foi submersa pelas enchentes de maio de 2024 / Foto: Arquivo pessoal

A demolição ocorreu de forma inesperada. Júlio e sua família haviam voltado para conferir a situação de sua casa pós-enchente, logo após as águas baixarem na região. Dias depois, Júlio estava no trabalho quando recebeu uma ligação desesperada de sua esposa: a casa estava sendo destruída por uma patrola. Sem tempo para reagir, ele viu tudo o que havia conquistado ao longo dos anos sendo destruído, incluindo eletrodomésticos e ferramentas de trabalho.

“Eu estava indo na minha casa e limpando a minha casa. Ela estava meio caída, né? Mas eu ia reformar ela, ia arrumar ela. Nesse momento que eu tô no serviço, minha esposa me liga me avisando que a patrola estava destruindo todas as casas da rua onde eu morava. Então nós acabamos ficando no abrigo”, conta Júlio. 

A patrola pertencia à Operação Limpeza da Prefeitura, usada para retirar os entulhos que se acumulavam nas ruas de Canoas. “Quando abaixou a água, que as pessoas começaram a ir pra casa limpar, toda a rua entulhada de lixo, não tinha caminhão pra limpar lixo, não tinha nada, mas pra destruir minha casa, pra patrola destruir minha casa, limpar meu terreno bem limpinho, planar o terreno, ficar bem direitinho, eles deram um jeito”, exclama.


A patrola pertencia à Operação Limpeza da Prefeitura, usada para retirar os entulhos que se acumulavam nas ruas de Canoas / Foto: Arquivo pessoal

Após quatro dias da demolição, Júlio relata que sua família recebeu um termo de declaração e concordância da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação para que reconhecessem as restrições do local onde viviam devido à proximidade com a casa de bomba nº 4, como sendo uma área de risco de dique. Michele Matos, sua esposa, assinou o documento. 


Termo de declaração e concordância da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação / Foto: Arquivo pessoal

Ela conta que, antes da enchente, sua família já estava cadastrada no programa habitacional A Casa É Sua para receber uma moradia no loteamento MQ2, no bairro Guajuviras, um empreendimento de interesse social. A obra – uma iniciativa do Governo do Estado, por meio da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab), e da Prefeitura de Canoas – consiste na contrução de 48 casas no loteamento MQ2 destinadas às famílias de baixa renda que vivem em áreas urbanas e que estão inscritas no Cadastro Único (CadÚnico). 

No entanto, com a enchente, o casal denuncia que as obras foram interrompidas e agora não possuem perspectivas de quando poderão ocupar a nova moradia. “Eu tenho um grupo aqui de famílias do MQ2, daí a gente fica comunicando e perguntando o que vai acontecer. A gente quer saber a resposta da Prefeitura, da Habitação [Secretaria]. ‘Por que a obra está parada?’, que prometeu para nós em dezembro. Até hoje nós não temos resposta. Está parada a obra. Nós temos fotos que as obras tão parada”, questiona Michele sobre o andamento do projeto e a previsão para sua conclusão.

Sobre o andamento da obra, o Brasil de Fato RS contatou o Governo do Estado e a Prefeitura de Canoas para pedir esclarecimentos. Até o fechamento desta reportagem não houve retorno. O espaço segue aberto.

Diante da incerteza, Júlio, sua esposa e seus cinco filhos pequenos se tornaram beneficiários dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs). Com a casa onde moravam demolida e sem previsão de receber a moradia prometida pelo programa A Casa É Sua, tentaram recorrer ao programa Compra Assistida, mas foram impedidos por não se enquadrarem nos critérios. De acordo com Michele, o programa não contempla moradores de áreas verdes -- expressão que se refere a moradores de habitações irregulares sem garantia jurídica, localizadas em um espaço que é de propriedade do município e possui restrições de uso.

Como última alternativa habitacional, restou-lhes o Aluguel Social. Mas encontrar uma casa para alugar se tornou mais um desafio. “Nós fomos selecionados para o Aluguel Social. Só que as casas que nós queríamos alugar pelo Aluguel Social não aceitavam as crianças pequenas’”, lamenta Júlio. 


Júlio, sua esposa e seus cinco filhos pequenos se tornaram beneficiários dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) / Foto: Arquivo pessoal

Desenganados, Júlio e a família saíram dos CHAs e alugaram uma casa por conta própria. “Fiquei oito meses ali no abrigo pra receber nada, pra não ter uma resposta da Prefeitura. Porque eu tinha uma vida antes da enchente, né? Quem trancou minha vida foi eles, a Prefeitura, a Habitação [Secretaria], quem mais trancou minha vida. Todo mundo voltou pra suas casas e remontaram. Por que eu não pude voltar pra minha?” 

Na segunda-feira (3), Júlio e Michele foram à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação em busca de informações. Após horas de espera, foram informados de que só poderiam ser atendidos no dia 18 de março, quando deveriam retornar ao local.

Famílias desamparadas

Em janeiro, o BdF RS entrevistou a beneficiária dos CHAs Milene Bertol, mãe solo de três filhos e antiga moradora do bairro Rio Branco, também de Canoas. Ela relatou a falta de agilidade e transparência sobre a destinação das famílias para moradias definitivas. Além da pressão que vêm enfrentando para aceitarem o Aluguel Social

Contatada novamente pelo BdF RS, ela afirma que a situação continua a mesma. “Todos os dias vem algum funcionário do OIM ou até mesmo da Assistência Social querendo saber se já achamos casa pra alugar. ‘Que vai fechar e como nós vamos ficar?’ Praticamente nos obrigando a ir para o aluguel”, conta Milene. 

Com a iminência de desativação dos CHAs, ela narra que uma série de serviços assegurados até então pela Prefeitura de Canoas vem sendo encerrados, como o lanche da tarde. “A Prefeitura não está mais querendo se responsabilizar pelo abrigo. Segundo eles [funcionários dos CHAs], a Prefeitura não tem verba para arcar com as despesas (o café que era da Prefeitura foi cortado) por falta de verba”, comenta. 


Conversa de WhatsApp mostra a mensagem encaminhada aos beneficiários / Imagem: Print

Cenário esse que Milene e outros atingidos pelo desastre climático precisam se deparar enquanto esperam ser contemplados por algum dos programas habitacionais oferecidos pelo Governo do Estado. 

Desativação dos CHAs e destinação dos beneficiários

Em nota ao BdF RS, o Governo do Estado afirmou que realocação dos beneficiários dos CHAs para programas habitacionais do Governo Federal ou iniciativas locais segue os seguintes critérios de priorização:

- Casais com filhos (maiores de 7 anos);

- Casais sem filhos;

- Outros arranjos familiares;

- Famílias monoparentais com filhos maiores de 7 anos;

- Famílias unipessoais;

- Famílias monoparentais com crianças de 0 a 7 anos.

Além disso, informou que, para garantir a segurança alimentar e a adaptação das famílias realocadas, estão sendo implementadas medidas complementares, coordenadas pela Secretaria de Desenvolvimento Social. Entre elas estão:

- Distribuição de kits de alimentos, conforme o tamanho da família;

- Incentivo à agricultura urbana, por meio da implantação de hortas comunitárias;

- Programa Emancipa Família Gaúcha, que oferece capacitação profissional e suporte para os beneficiários, além de atividades recreativas para crianças;

- Cartão de apoio para compra de itens essenciais para o lar, adequado ao perfil familiar.

O governo ressaltou que as medidas adotadas estão alinhadas com as necessidades dos beneficiários e foram definidas a partir de consultas e análises para garantir uma abordagem justa e inclusiva. Por fim, reforçou que o processo de desmobilização dos CHAs está sendo realizado respeitando integralmente os direitos das pessoas acolhidas, visando melhorar suas condições de vida e dignidade.

No dia 16 de dezembro, o governo do Rio Grande do Sul anunciou a desativação dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) até junho de 2025, prometendo encaminhar as 778 famílias acolhidas para soluções de moradia definitivas ou alternativas. Entre as opções apresentadas estão o Aluguel Social de R$ 1 mil mensais por até 12 meses e a estadia solidária, a ser gerida pelos municípios.


Edição: Katia Marko