“A religião não começa quando a gente bota o pé para dentro da igreja, mas ela começa quando a gente esteve na igreja e bota o pé para fora”, afirma Frei Sérgio Antônio Görgen, na entrada da Igreja de Sant’Ana, na comunidade de Posse de São Miguel, interior de Não-Me-Toque (RS). Parafraseando o velho amigo José Palharini, usa essa frase para sintetizar os 50 anos de vida religiosa, completados no dia 1º de fevereiro. “Essa realidade Sempre me acompanhou, porque o reino de Deus, a Palavra, a missão que a gente recebe de Jesus de Nazaré, ela se vive no mundo e não apenas nas quatro paredes de uma igreja”, complementa.
À vontade na localidade onde passou a infância e a juventude e onde ainda residem muitos amigos e familiares, Frei Sérgio fez um relato ao Brasil de Fato RS enquanto passava por alguns dos locais simbólicos do começo de sua jornada, que seria entremeada pela espiritualidade e pelo compromisso com o povo. “É importante estar dentro da igreja, como um posto de combustível que nos abastece para viver os valores do Reino de Deus, os valores do Evangelho, o compromisso com os mais pobres, com os necessitados no mundo e na sociedade, procurando transformar essa sociedade”, completa.
Celebração sem festa, mas com oração e compromisso
É comum em datas como essa uma grande reunião de confrades, amigos, familiares para festejar. Não para Görgen. “Eu não vou celebrar os 50 anos com nenhuma festa, nenhum encontro. Vou celebrar no silêncio, na oração, no compromisso e me dedicando a escrever um livro sobre o cara que mudou a minha vida: Jesus de Nazaré”. Pela primeira vez Frei Sérgio fala publicamente sobre o livro o qual tem se dedicado a pesquisar e escrever ao longo dos últimos anos e agora tem sua publicação alinhada ao jubileu de vida religiosa: “Eu não sou um escritor, escrevi sempre por necessidade e, agora, vou escrever por compromisso”, aponta.
“Simplesmente Jesus” ainda não tem previsão de lançamento, mas no que depender da disciplina de trabalho do autor, pode ser que chegue em meados de 2025. “Estou escrevendo para tentar mostrar Jesus no cotidiano do seu tempo, trazendo para o cotidiano de hoje”, detalha. Além de considerar esta publicação a obra referencial de sua vida, estabelece uma espécie de compromisso em sua produção: “Quero celebrar esses 50 anos de vida religiosa franciscana com este livro, uma vida que me deu tantas alegrias, tantos amigos por esse mundo afora, com quem vivi tantas experiências fortes e bonitas”.
O “padre comunista”, o frade “vermelho”...
Não faltam críticos a atacar Frei Sérgio ao longo destes 50 anos vestindo o hábito e caminhando com o povo. Adjetivos como “padre comunista” (um parêntese necessário aberto aqui para informar que Frei Sérgio nem padre é, sua condição dentro da ordem franciscana do RS é a de Irmão) ou "Frade Vermelho" são encaradas com descontração e até certa naturalidade pelo religioso que viveu fortes experiências junto aos movimentos populares, contribuindo na criação de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “Tantas lutas, tantas dificuldades enfrentadas, mas sempre com a alegria preponderando a esperança e principalmente a presença de Deus na vida de tanta gente”.
“Vim até aqui, na Posse de São Miguel, para pelo menos deixar essa marca de 50 anos de uma vocação que me trouxe muita alegria, uma grande graça, que Deus me deu ao permitir que viva esta vida, a qual quero me doar a Deus pelo tempo que ele ainda permitir”, relata Frei Sérgio, contando que sequer imaginava chegar até aquele momento, tanto aos 69 anos completados alguns dias antes, quanto ao jubileu de vida religiosa.
Teologia da Libertação, sim senhor!
Influenciado por Dom Pedro Casaldáliga, Leonardo Boff, Henrique Dussel e Padre Josimo, Frei Sérgio fala com orgulho da Teologia da Libertação e não tem problema algum em se declarar adepto da Igreja que se coloca em saída para os espaços de luta do povo. Recentemente, inclusive, aceitou o debate com segmentos mais conservadores da Igreja Católica, cujos "digitais-influencers" passaram a atacar a Teologia da Libertação, os trabalhos do Padre Júlio Lancelotti e até a basílica de Nossa Senhora Aparecida em função de problemas legais que uma fundação e uma rede de televisão vinculados a Teologia do Domínio e da Prosperidade vêm passando.
“Eu precisava falar, alguém precisava falar”, desabafa, em seguida explicando que esse tipo de contraponto não é novidade para o religioso que aprendeu a enxergar o Jesus Cristo que o inspira nos olhos da gente simples, dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-voz, dos sem-nada. Em meados dos anos 1980 a revista Veja chegou a lhe chamar de “frei bom de briga” por conta da caminhada junto ao MST em momentos de forte conflito, que chegaram a lhe render ferimentos sérios e situações de risco extremo, como já relatou em publicações como O massacre da Fazenda Santa Elmira e Uma foice longe da terra.
Lembranças, saudades e aprendizados
Uma pequena escola ao lado da Igreja relembra os primeiros anos escolares. O prédio, ainda que já antigo, não é o mesmo em que Frei Sérgio estudou. “A primeira escola construída neste local era uma brizoleta, uma estrutura de madeira que o governador Leonel Brizola instalou pelo RS afora para promover a alfabetização nos locais mais distantes, especialmente no meio rural. Eu sou um dos beneficiados por essa ação revolucionária do Brizola, que levou as primeiras letras para milhões de gaúchos e gaúchas.”
Logo adiante está o “glorioso” Esporte Clube Sabiá Branco, com seu salão de festas e o campo de futebol bem preservado. Duas lembranças ficaram demarcadas ali: os jogos de futebol na infância e na juventude e os votos perpétuos, realizados no dia em que o salão foi inaugurado. É característico nestas comunidades a relação das pessoas com seu salão e seu campo de futebol, como relata Frei Sérgio, “é a vida que se constrói ao redor do futebol e das relações sociais que se cria nos momentos de encontro, de prática esportiva e de lazer. Até hoje é um ponto de integração da comunidade, da vida comunitária, do lazer e do bem-querer entre as pessoas".
A vocação franciscana é também uma vocação para a alegria
Pouco mais abaixo está o Rio Colorado, local de pescarias e brincadeiras de incontáveis vezes. Ali o pai ensinou o jovem Sérgio a nadar: “Depois de ensinar a bater os pés e as mãos, ele me largou na água para que me virasse, uma pedagogia de aprender fazendo”, lembra o frade, rindo da lembrança. Um espaço à beira-rio segue sendo propriedade da família de uma de suas irmãs e ali outras lembranças queridas vem à mente: “É um lugar também de festa, de encontro, de celebração, porque na vida Franciscana a gente aprende que celebrar, festejar, se congratular, sentar na mesa todos juntos, rir, brincar faz parte da vida, por isso que para mim a vocação Franciscana foi sempre uma vocação também para a felicidade”.
Por fim, a casa velha onde os pais criaram 8 filhos. Casa que o jovem Sérgio ajudou o pai e os irmãos a construir e de onde guarda lembranças marcantes. “Todos nós filhos aprendemos muito com a nossa mãe, dona Jurema. Eu aprendi com ela sobre devoção a nossa senhora, amor aos pobres, carinho com as pessoas... Minha mãe me ensinou muito sobre fé, sobre o amor de Deus pela gente e o amor que nós temos que viver entre nós para sermos fiéis a Ele”. Entre as muitas lembranças da velha casa, que ficou inabitada depois que dona Jurema faleceu e o terreno onde a construção está foi vendido, a descoberta da vocação: “Uma vocação religiosa se constrói também no ambiente do lar”.
Edição: Katia Marko