A Rede Globo de Televisão sempre esteve em evidência, pelo bem ou pelo mal. Está mudando, demitindo, perdendo audiência e sofrendo pesadas críticas de grupos políticos. Neste momento de tanta discussão, o jornalista Ernesto Rodrigues está contando a história da rede em trilogia inédita.
O primeiro volume A Globo: Hegemonia já foi lançado. Ainda este ano virão A Globo: Concorrência e A Globo: Metamorfose. Ele teve apoio absoluto e arquivos abertos pela empresa para falar sobre tudo o que aconteceu na maior emissora de tevê aberta brasileira. Versões diferentes da que foi lançada em 1987 pelo jornalista gaúcho Daniel Koslowsky Herz, A História Secreta da Rede Globo, com o subtítulo Eu sou o poder, frase dita pelo patriarca Roberto Marinho.
Daniel foi ao fundo do poço, desvendou mistérios, mostrou todo o processo de formação da Rede de Televisão durante a ditadura militar, as alianças internas e externas. A Globo ganhou apoio, dinheiro e deu respaldo total aos golpistas de 64/85 com a força brutal da sua audiência. O livro ainda hoje é um sucesso editorial.
Publicado originalmente pela editora Tchê!, mas atualmente os direitos pertencem à Editora Dom Quixote. Já chegou a 14 edições. O livro mostrou a cara de um revolucionário, um visionário, um idealista da comunicação, um dos jornalistas mais completos do Rio Grande do Sul. Jornalista mesmo, nascido em 1954 e morto precocemente em 2006 de câncer de medula, mesmo depois de tantas tentativas de tratamento no Brasil e exterior.
O livro deu ao jornalista gaúcho, formado na Unisinos, fama nacional. Os procedimentos ilegais que levaram à estruturação da Rede Globo e as relações de Roberto Marinho com o poder político nacional foram abordados com pesquisas profundas e estarreceram o país, que dava, na época do lançamento, os primeiros passos para a redemocratização. O livro foi tão forte e oportuno e até serviu de fonte de inspiração para o documentário Muito Além do Cidadão Kane, do diretor britânico Simon Hartog.
A intensa ação pública no jornalismo e na política de Daniel Herz pode muito bem ser dividida em duas fases: antes e depois da publicação do livro A História Secreta da Rede Globo. O seu pensamento a respeito do maior conglomerado de comunicações do Brasil não ficou estagnado na importante denúncia sobre a presença inconstitucional de capital estrangeiro na fundação da emissora de televisão do grupo.
Com o passar dos anos, Daniel foi percebendo que o papel da Globo era muito maior que apenas o de atuar como "partido político". Em vários momentos, a partir da década de 1990, uma de suas frases preferidas sobre o tema era: "Precisamos civilizar a Rede Globo". Em certa maneira, olhando para o posicionamento atual do conglomerado sobre conteúdo nacional e outras questões, a ação de Daniel em diversas frentes conseguiu fazer isso. Em 2013, por exemplo, o Grupo Globo reconheceu e desculpou-se publicamente, através de um editorial publicado no jornal O Globo e que também foi lido por William Bonner durante o Jornal Nacional, o apoio dado à ditadura militar instaurada no país depois do golpe militar de 1964.
Papéis públicos
Progressista, petista, estudioso, não media esforços e tempo para avançar os seus conhecimentos – e, é claro, recursos oriundos da família, dona da lendária Ferramentas Gerais. Fez Mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília e participou da fundação do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, onde foi professor e chefe de departamento.
A partir dos 20 anos, sua vida transformou-se em um mosaico de papéis públicos. Daniel foi, ao mesmo tempo, militante, professor, sindicalista (SindJoRS e Fenaj), escritor, estrategista político, pesquisador, empresário, palestrante e artista. Antes de qualquer título ou cargo, porém, Daniel sempre fazia questão de vestir a pele na qual se sentia mais à vontade: a de ser jornalista.
A Associação de Promoção da Cultura (APC) foi fundada por ele em Porto Alegre no ano de 1974. Fundou ainda o Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom). Seu trabalho no Epcom incentivaria a criação do projeto Donos da Mídia, em 2002. Foi Secretário de Comunicação do governo Olívio Dutra, na Prefeitura de Porto Alegre, em 1989, onde implantou métodos que ainda hoje repercutem positivamente no meio jornalístico. Mudou conceitos de assessoria de imprensa.
A mídia tradicional não perdoava um governo esquerdista e foi implacável na perseguição, principalmente através dos chamados “jornalistas de opinião”. Daniel reagiu a tudo isso e, com uma equipe sólida e unida, criou novas fórmulas para levar as informações do governo ao público através de jornais alternativos e outros meios, como televisão comunitária.
Mentor
Foi militante do movimento pela democratização da comunicação durante os anos 1980, quando foi coordenador da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação (1984-85). Também liderou a campanha da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) pela democratização das comunicações durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Herz foi ainda um dos fundadores e, posteriormente, coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).
Participou ativamente como mentor e defensor da Lei da Cabodifusão (Lei 8.977 de 1995) desde sua fase de projeto em 1991 até sua promulgação em 1995. Herz considerava esta uma de suas principais conquistas, pois foi a Lei da Cabodifusão que estabeleceu a obrigatoriedade da presença de emissoras públicas, comunitárias e universitárias nos pacotes de TV por assinatura.
Daniel Herz também foi ativista na luta pela implementação do Conselho de Comunicação Social (CCS) do Congresso Nacional, órgão consultivo previsto na lei 8.389 de 1991. Durante anos as grandes redes de televisão boicotaram a criação deste Conselho. O CCS só foi implementado pelo Senado em 2002, após um longo período de lutas pela democratização da comunicação, liderado por sindicatos, movimentos sociais e ONGs ligados ao FNDC.
O Núcleo de TV Digital Interativa (NTDI), do Curso de Jornalismo da UFSC fez um curta-metragem em homenagem a Herz. Em novembro de 2006, logo depois da sua morte, foi homenageado no IV Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, em Porto Alegre, e pela Câmara Municipal de Novo Hamburgo, que inaugurou a Tribuna de Imprensa Daniel Koslowsky Herz, espaço de recepção à imprensa anexo ao plenário da Casa. Em 2009, foi homenageado na cerimônia de abertura da Conferência Nacional de Comunicação, quando o livro A História Secreta da Rede Globo foi relançado.
Lutador permanente a favor da Comunicação – entremeada com participações na empresa da família e tratamentos de saúde –, Daniel, ao lado de militantes e colegas, ajudou a construir o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A pauta inicial de demandas era grande, mas Daniel preferiu se concentrar em alguns temas que considerava fundamentais para o fortalecimento das Comunicações. Entre eles estavam o Conselho de Comunicação Social, regulamentado em 1991, mas não instalado, a regulamentação da TV por assinatura e a regionalização da programação no rádio e na TV.
Como diz Guaracy Cunha, amigo e seu substituto na prefeitura de Olívio, Daniel foi genial nas suas ações como jornalista. “Um dos mais completos que já vi e um dos mais criativos com quem tive a oportunidade de trabalhar.”
Confira depoimentos de quem conheceu Daniel Herz
Essência, na teoria e na prática
1982. Estávamos na UFSC, em Florianópolis. TV ligada, irrompe a notícia: Brizola, candidato ao governo do RJ, acusa manipulação nas eleições. Era o “caso Proconsult”, enraizado nas organizações Globo. Daniel entendeu o momento como poucos. De imediato fez contato com Jaison Barreto, candidato do PMDB ao governo do estado catarinense. Horas depois, estava nas ruas com lideranças da oposição, denunciando manobra idêntica do PDS, de Espiridião Amin. A eleição, até aquele momento largamente favorável a Esperidião, terminou em 49,97% a 49,21%. O movimento não derrubou Amin, mas mostrou Daniel em essência – na teoria e na prática. Em 1986, ele publicava A história secreta da Rede Globo, agora várias vezes citada no recém lançado primeiro volume da trilogia A Globo – Hegemonia 1965 – 1984, do jornalista Ernesto Rodrigues.
Ayrton Kanitz é jornalista e professor universitário da UFSC
Trabalhador e militante incansável
Eu já conhecia o Daniel quando ele me convidou para trabalhar na Coordenação de Comunicação Social (CCS) da Administração Popular (AP). Depois que saí da prefeitura, em 1997, segui com ele no Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação, virtualmente a base do FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que ele liderava. Nesse instituto ele deu sequência ao seu pensamento revolucionário sobre comunicação que, em boa medida, se expressou na prefeitura.
Embora lá ele tenha ficado menos de dois anos, pois saiu para coordenar a comunicação da campanha do Tarso a governador em 1990, não tendo retornado, plantou as bases de um sistema inédito, eficiente e eficaz.
Quando digo que já o conhecia, quero dizer que tinha uma boa ideia dos seus postulados sobre a comunicação pública e a democratização da comunicação, assim como alguns colegas e militantes de então. Mas o sistema implantado nos surpreendeu e entusiasmou.
A comunicação da prefeitura passou a ser centralizada e impessoal – tanto quanto possível. Não promovia indivíduos, mas ideias, propostas, políticas públicas. Se promovia os seus dirigentes e o fazia de modo indireto, pois estes pouco apareciam nos materiais da AP. Por outro lado, estavam muito presentes na mídia eletrônica e impressa, apoiados por uma extraordinária estrutura de escuta e produção. Nada ficava sem resposta. Nos materiais da AP quem se manifestava era o público ou os servidores, de modo geral.
Com a centralização (apoiada totalmente pelo prefeito Olívio e o vice Tarso), todos os recursos humanos, financeiros e técnicos da área da comunicação disponíveis na prefeitura passaram ao controle da Coordenação da Comunicação Social. Assim, o discurso da AP foi unificado e todos os seus dirigentes, todos os materiais de qualquer secretaria, departamento ou setor enquadravam-se nos propósitos do governo. Estabelecidos pelo secretariado e pela Coordenação de Governo. Instância das quais o Coordenador de Comunicação participava, sendo ouvido e respeitado como secretário, como dirigente.
Uma terceira característica do projeto da CCS era o planejamento, que estava colado ao planejamento do governo. Que nascia também das proposições da CCS. Assim, a Comunicação deixou de ser mera executora das vontades do governo, dos seus secretários, e passou a também formular as políticas públicas e as ações municipais. Dessa interação resultava o material produzido pela Comunicação, bem como suas ações.
Além de integrar o primeiro escalão e nele transitar com desenvoltura, Daniel era um trabalhador e militante incansável. Quando se tratava de panfletear, por exemplo, e esse recurso era muito utilizado na época, pois inicialmente os recursos financeiros eram mínimos, lá estava o Daniel nas madrugadas percorrendo conosco os pontos vitais da cidade. Ademais, era um extraordinário ser humano, atencioso e compreensivo.
Foi substituído por Guaracy Cunha, que já integrava a CCS. No governo seguinte, liderado por Tarso Genro, eu assumi o cargo de Coordenador Geral. Posso dizer, creio, que nós dois nos inspiramos na figura do Daniel, para cumprir nossa missão.
Pedro Osório, jornalista, ex-colega de trabalho e um dos amigos mais próximos
Inovação e criatividade
Daniel sempre foi criativo, organizado e muito trabalhador. Camarada excepcional, tinha doutorado em Comunicação, uma coisa rara na época, e por isso mesmo extremamente participativo. Dividia funções, não centralizava as decisões, fazia reuniões constantes em seu apartamento, no Centro Histórico, com a turma da Comunicação. Tinha métodos práticos e inovadores e criou o jornal Porto Alegre Agora, quando ocorreu a intervenção da prefeitura nas empresas de ônibus por três meses em 1989.
A gente distribuía os 300 mil exemplares por todos os lados. O próprio Daniel pegava os jornais e saía por aí entregando para as pessoas. Outra iniciativa criativa dele foi estimular campanhas para limpar a cidade – Porto Alegre Mais Limpa. Os garis passaram a usar a cor laranja, mais visível e reconhecível pelas pessoas e motoristas que transitam pelas ruas. Ele trabalhou dois anos na Comunicação do Olívio e fez uma verdadeira revolução. Era genial e saiu quando o seu pai, o milionário dono da Ferramentas Gerais*, teve problemas de saúde e Daniel foi trabalhar na empresa, integrando o Conselho de Administração.
Posso dizer também do Daniel que ele modernizou a Comunicação do Olívio com equipamentos e novas tecnologias. Utilizava até o seu próprio dinheiro. Tinha grana e comprava. Ele meio que se antecipou ao uso da inteligência artificial com novidades que surpreendiam o grupo de jornalistas que ali trabalhava. Era um estudioso permanente e vivia palestrando por todos os cantos sobre as suas ações na Comunicação.
Para não dizer que falei só de trabalho, posso dizer também que Daniel era um excelente cozinheiro e alimentava a turma durante as reuniões que realizávamos no seu apartamento.
Guaracy Cunha, jornalista, substituto de Daniel na Comunicação Social da Prefeitura no governo Olívio e amigo próximo
* Fundada em 1957 em Porto Alegre, a Ferramentas Gerais foi vendida para o grupo OVD em 2017. Antes, era da SLC Participações, empresa gaúcha com forte ligação com o agronegócio, que comprou o negócio em 2001. Já a OVD foi fundada em 1968 e tem sede em Curitiba e é especializada em ferramentais e ferragens.
Um visionário tecnológico
Conheci o Daniel por meio dos meus amigos jornalistas de Santa Maria. Eles eram amigos dele e, no caso do Adelmo Genro, eram primos. Fui morar em Porto Alegre e trabalhar como assessora de imprensa do Tarso Genro, que foi vice do Olívio na primeira eleição em que o PT ganhou a prefeitura da Capital. Éramos muito panfletários enquanto o Daniel era mais tecnológico.
Com muita garra vencemos, ele assumiu como Coordenador de Comunicação e nós, juntos, conseguimos implantar uma política de comunicação inédita. Um detalhe que eu lembro é que naquela época não tinha internet, as máquinas de escrever eram manuais e ele, que era rico, levou uma máquina de escrever elétrica para trabalharmos. O Daniel era um visionário. Sempre mexendo em assuntos que só anos depois nos chamariam atenção. Apesar de ser um intelectual soube por amigos que ele curtia e até desfilava no carnaval.
Implantamos uma política de comunicação que dava conta de acompanhar o que estava sendo divulgado na mídia (setor de rádio escuta, apesar do nome acompanhava as TVs também), setor de projetos especiais e acompanhamento de obras importantes. O PT venceu mais três vezes a eleição da prefeitura.
Daniel conseguiu coordenar uma equipe de ótimos profissionais, mas sem experiência na gestão pública. Foi uma experiência muito rica. Coordenou na campanha o programa de rádio e TV, um estúdio montado na sede do PT embaixo do viaduto da avenida João Pessoa.
Vera Flores, jornalista
Um negociador incansável
Daniel foi uma referência para mim. Na política era um negociador incansável ao mesmo tempo que um defensor de suas ideias no limite da intransigência. Um carismático anti-líder que comandava da retaguarda com legítima humildade. Pensador complexo que não capitulava para soluções simplórias ou fáceis, elaborou intensamente sobre jornalismo, comunicação e cultura. Sem dúvida foi o mais importante ator no cenário das políticas públicas da área de comunicação da história recente. Mas, mais do que tudo, um camarada gentil, bem-humorado e, principalmente, disponível e preocupado com o outro. Não têm sido fácil conviver com a sua ausência.
Celso A. Schröder, professor universitário, jornalista, sindicalista, chargista e vice-presidente da Fenaj
A luta pela democracia
A imagem que guardo do Daniel Herz aparece repetida ao longo do tempo em diferentes circunstâncias: obstinado, entusiasmado, propositivo e com uma capacidade imensa de trabalho. Registro duas situações em que estive próxima dele e pude apreciar seu jeito de ser. O entusiasmo com a criação do Epcom e a alegria ao receber pelo Instituto por ele idealizado o prêmio de Instituição Inovadora da Intercom. Seu discurso foi um ato em prol da democratização dos meios.
A outra foi sua gestão como presidente do Conselho Deliberativo da TVE do Rio Grande do Sul. Via ali uma oportunidade de fazer avançar a discussão sobre como deve ser a televisão pública no Brasil. O começo foi a proposição de um novo estatuto. Ele ficou no rascunho e teria sido um grande exemplo da possibilidade de democratização da tevê. É isto, o Daniel lutava pela democracia e, por isso, ele faz falta para o Brasil.
Christa Berger, jornalista, professora universitária aposentada da UFRGS, escritora e pesquisadora
Algumas das melhores utopias
Daniel me proporcionou uma aprendizagem contínua. Primeiro, como sua professora, e depois quando ingressei, com ele, nas estratégias e debates da práxis política. Ele me convenceu a participar do projeto da Prefeitura do PT em Porto Alegre (1989) quando foram tecidas algumas das melhores utopias. Com Daniel, o embate duro racional era ininterrupto e a poesia parecia desaparecer. Mas ele era capaz de surpreender e, delicadamente, se oferecer para ajudar nos embates da alma e compartir dores e alegrias com quem precisasse. Agora, resta seguir suas digitais e lembrar que ainda temos de finalizar muita coisa, para tornar o mundo mais justo. Como ele queria.
Milena Weber, foi professora universitária do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS
Edição: Katia Marko