Precisamos ampliar nossa compreensão e nossa capacidade de comunicação sobre o que está em andamento
Nesta semana em uma reunião onde ambientalistas discutiam os desafios que se avolumam em todas as dimensões, escutei uma frase que me pareceu muito acertada. Não lembro as palavras exatas, mas o conteúdo afirmava que “se não podemos fazer as mudanças que sabemos indispensáveis, precisamos ampliar nossa compreensão e nossa capacidade de comunicação sobre o que está em andamento”.
Entender para agir.
Gostei da síntese. E creio que ela se aplica tanto à questões de geopolítica como às dificuldades que a todo momento enfrentamos nas negociação de prioridades. E com certeza vale para o que se passa em boa parte de nossos grupos e até mesmo em questões familiares.
Afinal, as emoções nos dominam. E elas são influenciadas pelas interpretações que conseguimos fazer a respeito do que se passa. Corretas ou não, elas dependem da qualidade das informações a que temos acesso.
Por exemplo: ficamos todos chocados com as atitudes do presidente dos Estados Unidos (EUA) Donald Trump, em seu primeiro dia de governo.
Num instante, em vários cantos do planeta, milhões de pessoas arrepiadas e de cabelo em pé. E não podia ser diferente, afinal ali estava o senhor das armas anunciando – para os “nossos” – a chegada de uma época de horrores.
Como evitar o medo diante daquela chuva de decretos impensáveis, entremeados por rosnados e acompanhados por aqueles trejeitos e olhares de insensatez maldosa?
Depois, pouco a pouco, vieram as interpretações abalizadas. Ele não poderia fazer isso e aquilo; surgiram reações, e foi se tornando mais claro que ali abundavam sinais de soberba, loucura e arrogância desesperada.
Afinal, que outra leitura se poderia obter do fato? O presidente da nação mais poderosa do mundo estava adotando aquela mesma técnica (do bullyng e das ameaças gritadas) que adolescentes agressivos costumam utilizar nas rixas de escolas e em disputas de bairro. E como sempre acontece nestes casos, os menores, os indefesos, foram logo sendo machucados e escorraçados. As vítimas dão credibilidade às ameaças. Sem elas, as intimidações não funcionam.
Por que ele fez isso?
Bom, (1) para cumprir promessas de campanha, se empoderar e transferir para seus inimigos a responsabilidade de sua ineficácia. Igor Felippe Santos discute isso de forma brilhante e esclarecedora no artigo Trump, Lula e o hiato entre falar e fazer. O governo Lula tem o desafio de recuperar a confiança da população e não basta repetir discursos e palavras e (2) para cercar seu terreno de domínio, agregando parcerias e subalternidades internacionais que lhe permitam mudar o contexto de afogamento por que passa o império americano.
O Instituto Tricontinental discute esta segunda (e talvez principal) motivação no artigo intitulado Trump e a doença do colonizador ressentido. Ali os autores resumem partes do dossiê Hiperimperialismo: uma nova etapa decadente e perigosa onde se lê que o declínio prolongado dos países do Norte Global (liderados pelos EUA), em face da ascensão dos dos países do Sul Global (com destaque para China), estaria impondo novo momento para a geopolítica global (Figura 1). A riqueza e portanto o poder real estariam fugindo do controle do capitalismo imperialista coordenado pelos norte-americanos.
Nesta realidade, sendo insuficientes suas forças armadas, os EUA estariam carecendo do desenvolvimento e da aplicação radical de mecanismos de domínio psicológico, eficientes contra tentativas de autonomia por parte dos países do Sul Global (e suas populações). Naturalmente isso se refere especialmente àqueles estabelecidos no espaço que os norte-americanos entendem como seu quintal, sua área de controle imediato. Nesta leitura aquelas ameaças e algumas atitudes concretas, talvez envolvendo a Venezuela e Cuba, ajudariam, num só tempo, a ampliar a submissão dos desvalidos açodados pelo medo, e a arregimentar colaboradores, atraídos pela ganância, aqui e ali. O domínio pelo medo e pelo oportunismo dos canalhas.
Pois bem, pensando assim é possível crer que as decisões de Trump, ao apontar novo e pior momento para as relações humanas, em todas as dimensões e com reflexos sobre todos os cantos do planeta, se assemelham à atitude dos ratos acuados. Eles atacam.
E se de um lado não há motivo para minimização dos riscos, porque as repercussões entre nós podem ser mesmo terríveis, de outro, cresce a importância de entendimento a respeito do que estaria por trás de decisões tão graves como o boicote à ciência, à OMS, à ONU e a acordos internacionais referentes ao aquecimento global, aos direitos humanos e à paz mundial.
Talvez ajude nisso recente publicação de pesquisa envolvendo mais de 1200 especialistas, sobre a crise global. Ela informa que dentre todos os riscos que nos ameaçam, o maior é o da desinformação, que alimentaria todos os demais.
Aquele estudo aponta que o descontentamento das pessoas e nações vem sendo potencializado por ciclos de “notícias ruins” que, estimulando violências, justificariam ações de brutalidade com consequências desestabilizadoras em níveis local e global.
Em termos gerais esta seria a percepção de 84% dos especialistas entrevistados que, a partir disso, apontariam riscos moderados a graves para a ocorrência de catástrofes globais, nos próximos 10 anos (figura 2).
As crises seriam potencializadas pela convergência de consequências do aquecimento global com concentração assimétricas de poder no campo das tecnologias aplicadas ao controle de informações bem como das possibilidades de acesso à condições de vida.
Em termos gerais, no que tange ao aquecimento global estaríamos todos no limiar de pontos de inflexão sem volta. Suas repercussões seriam distintas aqui ali, criando zonas de sacrifício amplificadas em diferentes dimensões (saúde, economia, alimentação, necessidades de investimentos e escassez de recursos), para diferentes grupos sociais. A manipulação de conteúdos referentes a este fato, a designação de culpados e a construção de ilusões seriam cruciais para o estabelecimento do que seria considerado verdadeiro e de que sacrifícios seriam aceitáveis/justificáveis.
Os autores apontam possível aceleração de conflitos armados, mesclando violências estatais a ações do crime organizado e milícias privadas. O mercado de armas estaria assegurado. Portanto, as disputas territoriais, a fome e as migrações forçadas seriam consequência de radicalização de estresses impulsionados pela crise ambiental, tendo como corolário a internacionalização de crises humanitárias e a paralisia de mecanismos de governança internacional, como Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial de Saúde (OMS). E Trump deve acreditar que está certo, se antecipando a isso.
O texto não fala disso, mas em minha leitura parece aceitável a hipótese de que uma expectativa de reconfiguração nas tendências de poder, decorrentes de tais eventos, permitiria entender tanto os posicionamentos iniciais de Trump como aquelas ações do presidente da Rússia, Vladimir Putin, na Ucrânia e as de Israel, em Gaza.
Num momento seguinte, a minimização da crise se daria através do estabelecimento de espaços segmentados onde, sob controles distintos, passariam a ser utilizados mecanismos de cooperação focalizando alternativas orientadas a tornar o planeta mais seguro.
Enfim, deve haver muitas outras hipóteses e explicações a respeito dos motivos que tendem a estimular nossa perplexidade e apatia em relação ao que não podemos mudar.
E neste momento, quando o Banco Central (BC) de Lula mantém a política de juros que até ontem era apontada como perpetrada por agentes golpistas do bolsonarismo incrustado no “nosso” governo, resta crer que de fato, precisamos ampliar nossa compreensão e nossa capacidade de comunicação sobre o que está em andamento.
Espero que tenhamos tempo para isso.
Uma música? Dos velhos tempos, de quando o samba era diferente, só nos resta sentir saudade.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo