Existe uma dimensão da política que se constitui como elemento fundamental e estratégico: a disputa de narrativa histórica. A história cobra caro de quem negligencia essa perspectiva, uma vez que não existe força política sem mobilização, e esta se dá em grande medida pela capacidade de convencimento e motivação que geram nos indivíduos o ânimo capaz de promover ações de atuação em nome de algo ou alguém como referencial de liderança.
Disputar a narrativa histórica contra o conservadorismo e o reacionarismo é disputar a consciência dos indivíduos, é buscar um rompimento com os sentidos que dão amparo ao senso comum, como por exemplo os discursos que apresentam críticas sobre a chamada “polarização”. Ora, a polarização como dinâmica de disputa e compreensões sobre a realidade é fundamental para melhor vislumbrar projetos distintos de sociedade. Se não temos a polarização, como distinguir o opressor do oprimido? Como perceber que muitas vezes por não vivenciar uma educação libertadora o sonho do oprimido é ocupar o lugar do opressor, como diria Paulo Freire.
A disputa de narrativa histórica tem como essência a disputa de sentidos, de subjetividades, de compreensão da realidade. A articulação de signos simbólicos constitui elemento chave para a consolidação de um projeto político que tenha como pedra angular a mobilização popular. Do contrário, resta sucumbir às narrativas que dão azo ao sistema, tornar-se refém de uma espécie de realidade paralela onde a linguagem e a comunicação estão a serviço da perenidade do estado das coisas, desvirtuando habilmente o foco para as questões menos importantes e que são anunciadas como dimensões centrais da sociedade e do país.
O Brasil é um laboratório interessante onde podemos observar com razoável nitidez o que está sendo apresentado neste breve texto: grupos políticos totalmente mobilizados entorno de narrativas que pouco ou nada encontram amparo na realidade, mas alcançam imensa repercussão na população através das redes sociais, a ponto, inclusive, de balizar a atuação do governo.
Um governo que tem intenções de enfrentar estruturalmente as desigualdades de seu país não pode optar por um pragmatismo de ação e narrativa em prejuízo de uma comunicação direta com o povo que mantenha minimamente a capacidade de mobilização na melhor forma de atuação da premissa que baliza a titularidade do poder como instrumento do povo, e este como responsável pelo protagonismo das mudanças necessárias para o atendimento de suas próprias necessidades.
Defender a autonomia da mobilização popular a partir das bases não interdita a compressão da coerência mínima programática e de linguagem com eventual governo que se coloque como defensor dos interesses dos trabalhadores. Do contrário, as contradições se manifestam como verdadeiros obstáculos para a constituição de um governo com forte apoio popular.
Quando temos uma atuação de governo que ignora a disputa de narrativa histórica, nos deparamos com uma renúncia cara: aquela que desempenha um papel fundamental no caminho para a construção de um outro país, de um outro mundo. E a consequência é inequívoca: governo enfraquecido e importante desarticulação das bases, cenário que parece familiar. Fortalecer a lógica do Estado burguês, que conspira para a responsabilidade do cidadão reduzida ao mero depósito do voto na urna, é o caminho mais próximo para o fracasso no enfrentamento da pobreza e violência de direitos da classe trabalhadora. Não há libertação dos oprimidos sem os oprimidos! Essa consciência histórica deve ser de todas e todos, desde as bases até os dirigentes do chamado campo da esquerda.
Na quadra histórica que vivemos, não temos o direito de cometer erros elementares da disputa política. A batalha de ideias deve ser presente e altiva, deve ter a capacidade de dialogar com cada comunidade, com cada periferia desse país. Sem uma conexão direta com o povo, qualquer governo do chamado campo progressista está fadado ao fracasso. Compreender esse cenário e atuar coerentemente é uma exigência fundamental do atual momento, sob pena de um futuro próximo trazer outros dias de retrocesso e destruição dos direitos mínimos adquiridos por quem mais precisa.
* Militante comunitário
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko