Jesus estava nu. Pôncio Pilatos e seus aliados políticos romanos, implicados na exploração econômica desmedida que Jesus questionava de maneira enfática, tiraram a túnica de Jesus e o crucificaram de uma forma bárbara, cruel, odiosa, exemplar. Isso porque Jesus confrontava os ricos, os dinheiristas, os vendilhões do templo, o poder conservador que violentava minorias. Disse em alguma passagem bíblica que seria mais viável um camelo passar pelo diminuto elo da agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Porque os ricos exploram as gentes, calcam seus privilégios na miséria da maioria, roubam e enganam o povo.
Uma vereadora de Porto Alegre que me falta o nome, porque nunca havia ouvido falar, alega que o Bloco da Laje, uma das maiores manifestações culturais do Estado do RS, foi intolerante ao despir Jesus. Sua denúncia nos exige voltar atrás algumas casas no jogo da democracia. Mas como se trata de arte, vale o risco: o Bloco, ao performar um Jesus que é negro, que é mulher, se empenha num gesto de respeito, especialmente porque quem canta e celebra esse Jesus são, justamente, pessoas trans, mulheres, negras – vide o público do Bloco da Laje, que é amplamente diverso.
Padre Hilário Dick, intelectual cristão, jesuíta como o Papa Francisco – que muito bem poderia ser chamado para essa conversa – em sua célebre obra O Divino no Jovem (2004) defendia algo tão profundo e coerente que marcou nossas vidas de jovens cristãos de forma definitiva: Deus habita a juventude. Deus habita a mulher. Deus habita o negro, a negra. Habita as pessoas trans. Deus ganha vida, significado e profundidade teológica e espiritual através de corpos diversos implicados nessa abertura. É evidente que nem todos precisam acreditar em Deus. Mas quem o faz pela via cristã tem o dever de compreender quem era Cristo e que este foi sacrificado, semi-nu inclusive, por sua rebeldia na defesa de minorias políticas.
O Bloco da Laje, que não é um movimento religioso, defende como princípio e como prática a liberdade religiosa, principalmente das religiões de matriz africana que sofrem cotidiana e estatisticamente racismo e intolerância religiosa. E se este mesmo Bloco traz Jesus, diante de todo o seu público que é diverso – trans, mulher, negra, gay, lésbica, indígena, pcd – como uma figura também diversa, é indubitavelmente num gesto de respeito, de reverência à importância histórica desse homem que perdeu sua vida para que os pobres, as minorias marginalizadas, sobrevivessem e se revoltassem com tamanha crueldade. Se matam Jesus, nós vamos manter ele vivo como uma semente de justiça no reino da injustiça. O mesmo se passou com Marielle Franco, uma vereadora negra assassinada por pessoas aliadas ao partido dessa então vereadora branca de Porto Alegre. A história é cíclica, veja só. Mas tem suas reviravoltas: temos hoje duas qualificadíssimas vereadoras trans que compõe a bancada LGBTQIA+, bem com uma expressiva e igualmente qualificada bancada negra na Câmara de Porto Alegre.
Por que a nudez é uma ameaça?
O Bloco traz Jesus em suas performances também para convocar os conservadores a esse movimento que a vereadora branca não fez: pensar a respeito. Quem são os gays, quem são as pessoas que fazem striptease, quem são as mulheres negras nesses espaços religiosos que a vereadora alega violados, senão o próprio lugar do desrespeito? A existência de uma pessoa trans seria um desrespeito? Aceitar que Jesus habita um corpo semi-nu – tal qual o próprio corpo de Jesus aparece representado nas cruzes de todas as igrejas católicas deste país – seria um desrespeito? Por que a nudez é uma ameaça?
Não são essas religiões em seus vieses conservadores e intolerantes que cotidianamente cooperam com a violência contra esses corpos, que estariam praticando sistemáticos gestos de racismo religioso? É o que dizem as estatísticas. Vamos falar a respeito, Porto Alegre? Talvez a vereadora não esteja muito habituada à democracia. Mas nós não temos problemas em ensinar. Democracia se faz com todes, todas, todos. Todas as opiniões. Para que esse debate ocorra, o Bloco da Laje, os e as artistas da cidade, as religiões de matriz africana, os católicos da Teologia da Libertação, deverão ser convocados.
É preciso tirar Jesus da cruz. Tirar os negros da cruz na qual estão pregados, sendo assassinados brutalmente ou sendo presos sem o devido processo. Tirar as mulheres da cruz, de modo que o estado e as igrejas não as criminalizem por decidirem sobre seus corpos. Tirar as pessoas gays, lésbicas, trans, da cruz, para que ocupem seus corpos exatamente como são, sem mais tortura, sem mais violência. Tirar Jesus da cruz é uma mensagem de paz, tal qual a mensagem central de algumas religiões, como por exemplo a mensagem da Umbanda, por excelência, que diz no seu hino “A Umbanda é paz e amor, é um mundo cheio de luz” (Hino da Umbanda).
A vereadora branca, cuja atuação pretérita nunca ouvi falar, quer colocar o Bloco da Laje na cruz. O pouco que sabemos dela é que ainda representa os brancos fariseus, ou os romanos que crucificaram Jesus, a classe que se vale do privilégio e usa da violência extrema e de todas misérias do fascismo e do racismo para ocupar lugares democráticos, que nós trabalhamos incansavelmente para sustentar. Me causa espanto que quem defende o autoritarismo e a privatização de tudo, dispute uma eleição e seja remunerada pelo Estado. Pois bem, foi eleita, com uma arma na mão, filiada a um partido aliado a pessoas investigadas por um golpe de Estado, não sabemos por quais meios ao certo. Sempre cabe investigar de onde vem o dinheiro que elege nossos vereadores que perseguem negros, falando de Brasil, e de uma escravidão que não termina.
Mas como seria de se esperar de uma pessoa autoritária, usa seu mandato para afrontar a lei, a democracia, usurpar a noção de liberdade religiosa e criminalizar tudo aquilo que a gente veio construindo desde o tempo de Jesus até aqui. Nossa parca liberdade momentânea e amorosa que se expressa numa festa artística que celebra nossas raízes culturais e nossa luta insurgente enquanto humanidade explorada que insiste em viver, desde os tempos de Jesus, que, nunca é demais lembrar, tinha a pele escura e era palestino.
Que esse escrito seja um convite: vamos tirar o Bloco da Laje da cruz. Vamos tirar o figurino do autoritarismo para que ele revele a que veio: para nos explorar e para nos silenciar, exatamente como fez Pôncio Pilatos contra Jesus.
Não vamos deixar que essa senhora use Jesus contra Jesus. Nem criminalize ou silencie nosso carnaval negro, trans, diverso, só porque ela não consegue compreendê-lo. Não em nosso nome.
Estaremos na rua, no nosso lugar de sempre, sempre que alguém nos ameaçar ou disser que nossa existência é um crime. O Bloco da Laje não é um CNPJ, é uma multidão. Defender nosso carnaval é algo que fazemos sem pestanejar. Se nos proibirem de existir, nos multiplicaremos. E, suspeito, será um grande prazer levar o Bloco da Laje semi-nu para dentro da Câmara de Vereadores, para que o debate democrático aconteça, tal qual sustenta a nossa Constituição.
* Tábata Silveira é advogada, doutoranda em Sociologia, dançarina-brincante e foi cristã na sua juventude.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko