Ainda em plena ditadura, em 1978, no Rio Grande do Sul, nasceu a revista Tição, marco na imprensa alternativa gaúcha focada na questão étnico-racial e na luta contra o racismo, com repercussão no cenário nacional e internacional. Quase cinco décadas depois, ela renasce, com uma edição especial, lançada nesta terça-feira (28), com o salão Mourisco da Biblioteca Pública do Estado lotado. Além da presença dos fundadores da revista, o evento contou com apresentações culturais com a cantora Marguerite Silva Santos e com Naiara Oliveira, que declamou poesias de autoria de seu pai, Oliveira Silveira.
“A revista tornou-se um marco e uma referência na imprensa negra brasileira, trazendo pautas com o apagamento do negro na história gaúcha, violência policial e discriminação, racismo na educação e mercado de trabalho. E tantos outros temas até então praticamente não tocados pela imprensa oficial. Mais de 40 anos depois, percebemos que a maioria das pautas permanecem atuais e, por isso, decidimos reeditar a revista e se incorporar na luta contra o racismo no movimento negro brasileiro”, ressalta uma das fundadoras da revista, a jornalista Jeanice Ramos.
O nome do periódico surgiu por influência do professor Oliveira Silveira, um dos membros do grupo da revista. Além de Jeanice, o periódico teve como fundadores os jornalistas Jorge Freitas, Emílio Chagas, Vera Daisy Barcellos, além do sociólogo Edilson Nabarro e do ativista Valter Carneiro.
“É muito significativo esse renascimento da Tição. O papel que ela teve na década de 1970, início dos anos 1980, teve peso. Mas agora, nesse momento que a gente vive uma efervescência tal, o racismo se apresentando tão violento quanto lá atrás, a revista é de extrema importância. Para mim é muito significativo, este grupo, formado por companheiros de luta, companheiros de profissão é um marco. Mais uma vez o RS está dizendo sim, é possível fazer publicações”, afirma Vera Daisy, ex-presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS.
O racismo ainda está aqui
“Vendo as revistas antigas que a gente fez em 78/79, as bandeiras que nós levantamos, são as mesmas que estão ainda aqui. Houve alguns avanços da luta, da pressão popular, da luta do movimento negro, como a questão Prouni e as cotas, onde mais estudantes negros acessaram a universidade, coisas que não existia na nossa época. Essa é uma questão que avançou realmente, mas o racismo estrutural, a violência, a desigualdade, a perseguição, a questão do mercado de trabalho, são as mesmas”, comenta Emílio Chagas.
O jornalista lembra que o RS tem o clube social negro mais antigo do Brasil (Sociedade Floresta Aurora), criado 15 anos antes da abolição. “É o estado, com toda essa população da colonização italiana e alemã, que tem o maior número de terreiros, o que muita gente não sabe. Surgiu aqui a Tição que é hoje uma revista referência em termos acadêmicos em todo o Brasil.” Em sua avaliação falta um trabalho de imprensa, veículos próprios na voz negra. “É um trabalho que tem que ser feito imediatamente, de letramento, de conscientização e difusão.”
Carioca, morando no RS há dois anos, a diretora da Biblioteca Pública, Ana Maria de Souza, destaca a importância da presença negra no estado e sua contribuição. “As pessoas de fora acham que aqui no estado só vão encontrar descendentes de imigrantes italianos e alemães. E não, aqui tem uma diversidade de povos que é impressionante. O movimento negro no Rio Grande do Sul é forte. O povo negro aqui é muito aguerrido, muito presente, produz muito, tem muitos escritores, muitos artistas, muitos músicos. Essa movimentação do povo negro aqui no RS me chama muita atenção. E a reedição da revista Tição é mais uma prova disso.”
Pioneira no movimento negro brasileiro
Capa da atual edição da revista, representando as mulheres negras, a escritora e professora ativista da literatura negra, Ana dos Santos conta que os seus pais têm a primeira edição da revista ao chegar a Porto Alegre nos anos 1970. “Hoje está sendo muito simbólico esse evento. Para nós é uma revolução, uma comunidade negra publicar uma revista é muito importante. Meu pai e minha mãe estariam muito felizes, eles conviveram com Oliveira Silveira. E eu estou nesse caminho de luta pelo mundo mais humano.”
Durante o evento, que teve como mestre de cerimônia a escritora Lilian Rocha, foi também ressaltado o surgimento da revista em meio a ditadura e a batalha para fazer a atual edição. “Foi um sufoco geral, a gente superou empecilhos, barreiras. Batemos em várias portas para a publicidade, apoio e patrocínio, muitas se fecharam, mas outras se abriram e a gente conseguiu cumprir os nossos compromissos. O mais importante é que a revista está aí de novo, de forma gratuita”, expõe Jeanice.
Conforme informa a jornalista, há ainda três projetos pela frente, um mix das revistas anteriores que serão reeditadas, e mais duas edições tratando de juventude e segurança. Além do lançamento da biblioteca, haverá evento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Adufrgs) e na Sociedade Floresta Aurora.
Edição: Katia Marko