Após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar a Lei Complementar nº 212/2025, que cria o programa de renegociação da dívida dos estados com a União, governadores de oposição e que são de alguns dos estados mais endividados criticaram os trechos vetados pelo Planalto. O debate acabou se detendo nas críticas e se desviando as complexidade de uma lei como essa.
Para o economista André Aranha, doutorando e mestre em Economia pela UFRJ com pesquisa em finanças públicas estaduais no Brasil, o Propag traz tanto pontos que não são tão atraentes para os estados mais endividados, mas que foram necessários para costurar o acordo, como novidades que mudam a lógica dos planos de renegociação lançados nas últimas décadas.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, o economista explica os principais eixos do programa e traz um panorama da história do endividamento dos estados. Também analisa prós e contras para os mais endividados e as críticas dos governadores – entre eles o do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), que ameaça não aderir ao Propag por conta do veto a trecho da lei que permitia que o estado não contribuísse a um fundo dos estados em função da situação de calamidade decretada durante a enchente.
Brasil de Fato RS: A questão da dívida dos estados já passou por diversas renegociações nas últimas décadas. Em qual contexto surge essa nova lei complementar?
André Aranha: Essa questão da dívida dos estados tem uma complexidade dos termos em que ela é negociada, e por conta disso, muitas vezes escapa um pouco do radar da política em geral. O Propag foi aprovado, a Lei Complementar, essa nova renegociação, mas ainda depende de adesão voluntária dos estados, que considerem se vale entrar nesse programa. No Rio Grande do Sul teve o Eduardo Leite dizendo que não vai entrar, tá tendo toda uma pressão agora a partir dos vetos do presidente Lula.
A gente tem que entender o que já existe antes do Propag, em que contexto ele se insere. O primeiro fato é que a dívida estadual está muito concentrada em quatro estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Esses estados têm 75% da dívida dos estados no Brasil. Ao mesmo tempo, se esse número pode ser impressionante, a concentração da nossa economia, de 60% do PIB nacional, está nesses quatro estados, e quase metade da população nacional. Então, em certa medida, isso reflete um pouco a concentração da nossa economia nesses estados.
Os centros que eram ligados mais ao mercado interno, por terem grandes populações urbanas e mais indústria, tiveram uma estagnação
O fato desses estados estarem endividados e o motivo de estarem nessa situação recorrentemente é tratado como questão de responsabilidade deles – de irresponsabilidade. Por isso se adota uma postura de tomar medidas punitivas em relação a eles, e toda a ideia de que o perdão deve ser dado com várias contrapartidas para o estado não ficar leniente. Mas quando a gente olha os dados, a gente percebe que o endividamento dos estados era generalizado nos anos 1990, todos os estados tinham dívidas muito altas. De lá pra cá, o que mais determinou a trajetória do endividamento foi a mudança do centro dinâmico da economia.
O Brasil começou a crescer a partir dos anos 1990 muito voltado para o setor primário exportador: a fronteira agrícola. É o Centro-Oeste e vários estados da região Norte, o oeste da região Nordeste, o Matopiba... todas essas regiões que têm um setor agrário e tiveram um crescimento muito mais alto. E por isso pagaram suas dívidas. Enquanto os blocos econômicos, os centros que eram ligados mais ao mercado interno, por terem grandes populações urbanas e mais indústria, tiveram uma estagnação relativa.
O Rio de Janeiro é a economia que menos cresce no Brasil nos últimos 20 anos. São Paulo é a economia que a arrecadação de impostos menos cresce nos últimos 20 anos. Rio Grande do Sul e Minas Gerais estão junto nesse bloco de estados que eram muito importantes no século 20. E agora, no século 21, eles estão amarrados a uma lógica de dívida que cria um ciclo vicioso, porque ao não conseguirem ter receitas, eles não conseguem pagar suas dívidas; e há uma imposição reiterada de austeridade fiscal, obrigando eles a cortarem gastos e privatizar suas estatais, a privatizar todos os serviços públicos, sucateando a máquina pública.
Recentemente, no Rio Grande do Sul, foi extinta a Fundação de Economia e Estatística, que era um órgão ímpar, de excelência em termos de pesquisa e diagnóstico sobre a realidade. Essencial pro planejamento, pro desenvolvimento. Essas reiteradas privatizações e sucateamento da máquina pública, por conta da lógica da dívida, nessa lógica de austeridade, realimentam a estagnação econômica nesses estados.
No final dos anos 1990, teve uma renegociação muito forte que ainda está presente, o Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal (PAF), de 1998, que obrigou a privatização dos bancos estaduais e as elétricas, e um monte de infraestrutura urbana como metrô, trem. No Rio de Janeiro foi tudo isso. No Rio Grande do Sul, salvou o Banrisul (Banco do Estado do Rio Grande do Sul). Em Minas Gerais, salvou a Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), mas dentro de muitos conflitos naquela época.
Privatizações e sucateamento da máquina pública, por conta da lógica da dívida, realimentam a estagnação econômica
De lá pra cá, quando teve a crise em 2016, no Brasil, com a queda nas receitas, os estados não conseguiram pagar as dívidas que eles tinham. E teve uma nova rodada de refinanciamentos, já bem concentrada nesses quatro estados que estavam estagnados. Então o Rio de Janeiro teve que entrar nesse regime de recuperação fiscal que o obrigou a privatizar a concessão de água e esgoto, Cedae, em troca de um adiamento da dívida, sem perdão de juros. Foi o primeiro regime de recuperação fiscal. Rio Grande do Sul e Minas Gerais entraram pelo STF, conseguiram liminares que permitiam eles empurrar a dívida, mas também sem uma solução do negócio.
Já em 2021, foi criado um novo regime de recuperação fiscal, reeditando a mesma lógica. Dessa vez com Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Desses quatro estados, só São Paulo não está no regime de recuperação fiscal. E o regime de recuperação fiscal já empurra a dívida por 30 anos, mas não faz muito mais que isso. Ele obriga teto de gastos, ele impede várias contratações pessoais, mas ele não tem nenhuma originalidade, só mais austeridade. Como sempre seguindo o diagnóstico que a culpa é a gastança, que os estados gastaram demais e precisa fazer eles pararem de gastar, e não se pensa sobre a estagnação econômica deles.
Teve esse agravante ano passado, que o Rio Grande do Sul sofreu uma calamidade climática e foi criado um regime especial de calamidade pública, suspendendo a cobrança da dívida dele por três anos, suspendendo os juros também – o que trouxe alguma suspensão mais efetiva. Esse é o panorama em que o Propag chega.
O que o Propag muda em relação às renegociações anteriores?
O Propag tem três eixos principais. Um deles reedita a mesma lógica de austeridade. O que parece ser o interessante para Minas Gerais que tem uma estatal de grande valor, a Cemig, da energia elétrica, que não foi privatizado nos anos 1990, como a maioria dos outros estados fez. Então o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, que é de Minas Gerais, veio com essa proposta de um programa que permite, ao privatizar, queimar ativos e pagar a União, que os estados tivessem condições muito melhores de refinanciamento da sua dívida. Então esse eixo do Propag está vivo e repete exatamente o que fez nos anos 1990.
Aliás, Minas Gerais não queimou a Cemig nos anos 1990 e por isso teve condições piores, e por isso está tão endividada. Essa é uma das coisas que muda nas opções sobre a mesa agora, a opção de privatizar em troca de condições melhores.
Fora isso, o Propag tem uma coisa que não é tão atraente, não é uma vantagem pro estado entrar, mas que foi necessário para costurar ele politicamente. Para o estado entrar no Propag, em vez de continuar pagando os juros à União, uma parte deles você vai pagar para os outros estados. Vai ter um pedágio para os outros estados aprovarem esse tipo de auxílio ao estado endividado. Isso foi importante para os outros estados terem interesse e o Congresso aprovar essa lei. É uma coisa bem nova nessas renegociações: por ter dívida alta, em vez de ser a União punindo, agora os outros estados estão se beneficiando diretamente disso. É uma lógica competitiva, se pensamos que a dívida é fruto da estagnação econômica e não fruto de uma irresponsabilidade fiscal na gastança com pessoal.
A União, em vez de cobrar os juros, ela obriga o estado a investir esse valor em educação no próprio estado
O terceiro eixo do Propag, que é mais interessante, veio da ideia do ministro Fernando Haddad, que se chamou Juros por Educação. Era uma ideia realmente nova, partindo de um diagnóstico de que ficar cobrando a dívida só reforça a estagnação nesses territórios. Então, a União, em vez de cobrar os juros, ela obriga o estado a investir esse valor em educação no próprio estado. Isso se manteve na Lei Complementar. Modifica a lógica de eu ficar só fazendo o estado se sucatear, eu tô tentando fazer ele investir na recuperação econômica dele, enfim, dentro de uma lógica meio liberal de eu só vou investir em educação e deixar o mercado decidir como vai ser a economia.
Essa parte se manteve, o grosso dela ainda está na Lei Complementar. Você obriga que 60% do gasto seja em educação, mas tem outras coisas que você pode fazer, infraestrutura e outras áreas, com esse valor que você deveria pagar a União. Essa parte é mais interessante do projeto. Para um estado como São Paulo, ele pode não queimar nenhum ativo, não privatizar nada.
E qual a situação do Rio Grande do Sul? O governador Eduardo Leite afirma que os vetos prejudicam o estado por conta dos acordos que adiaram o pagamento da dívida do estado por conta da enchente.
A situação do Rio Grande do Sul é bem específica, porque tem esse outro acordo ligado ao regime de calamidade, por causa da enchente que já obrigava, em vez de você ter que pagar a União, você ter que investir no seu território para recuperação dele. O fundo se chama Funrigs. Então já tinha um pouco dessa lógica de, em vez de ser obrigado a fazer austeridade, ser obrigado a investir. A reclamação do governador Eduardo Leite, e eu acho que com razão, se refere ao veto de uma parte da lei que dizia que o Rio Grande do Sul, por conta desse regime de calamidade, não teria que contribuir para os outros estados, não teria que pagar o chamado Fundo de Equalização Fiscal.
O dispositivo que foi vetado era muito permissivo pro Rio Grande do Sul
O dispositivo que foi vetado, falava que o Rio Grande do Sul, o estado em calamidade não teria que contribuir para outros estados durante todo o Propag. E o Propag dura 30 anos. Então o Rio Grande do Sul teria 30 anos sem participar desse pedágio com os outros estados, o que desbalanceia um pouco. O acordo fica muito generoso para o Rio Grande do Sul, porque aí agora fica só com a opção de privatizar e melhorar seu perfil ou investir no próprio território em vez de pagar a União. Assim, o dispositivo que foi vetado era realmente muito permissivo para o Rio Grande do Sul.
O que fica no Propag é uma cláusula de que o RS manterá “as prerrogativas” do regime de calamidade. Isso foi interpretado pelo governador de maneira estrita, isto é, não livrando o estado de pagar aos outros estados nos 3 anos após a calamidade (o que criava realmente uma penalização a ele); mas há entendimentos jurídicos agora de que essa cláusula deve ser interpretada de maneira ampla, mantendo a proteção do estado inclusive em relação a não ter de pagar aos outros estados por esses 3 anos. Seguindo a primeira interpretação, o veto tornava o Propag questionável para o RS, mas seguindo essa última interpretação, que aparentemente veio para ficar, o veto foi razoável e o RS deve aderir.
Tem outros trechos da lei que foram vetados que, enfim, sobre usar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Tinha muita coisa na lei, é uma lei que realmente tem muitos detalhes e ela reflete um pouco a complexidade dessa legislação. Tem a legislação presente dos anos 1990, tem a legislação do regime de recuperação fiscal, tem a legislação do regime de calamidade. E tem as liminares do STF mexendo nisso tudo. Então é muito complexo criar uma lei que realmente conversa com isso tudo.
Essa lei que foi aprovada pelo Congresso trazia um monte de coisas que não se encaixavam muito bem, o que exigia um pouco um veto do presidente.
Essa questão de contribuir com um fundo dos estados beneficia a quem? Esse fundo é usado por todos os estados?
O fundo é distribuído de acordo basicamente com critérios do Fundo de Participação dos Estados, que já existe e que vai 85% para a região Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mais ou menos. Então, para esses estados com as maiores dívidas, você não fica com quase nada dele, é realmente pagar para os outros.
Qual sua avaliação sobre os benefícios de adesão ao Propag pelos estados mais endividados?
Apesar da contribuição com o fundo, para São Paulo ainda me parece um regime bem atraente, porque tem uma situação fiscal que, apesar da estagnação econômica, permite fazer uma austeridade que fique à altura disso. São Paulo é o epicentro da desindustrialização do Brasil, era o grande polo industrial, ainda é, mas está indo. Então ainda é vantajoso porque, enfim, em vez de pagar a União, ele tem que pagar os outros estados e investir no território, em educação e tudo mais.
A situação de Minas Gerais, que tem essas estatais para queimar, é também vantajosa. Paga um pouco para os outros estados e investe em educação do próprio território.
A situação do Rio de Janeiro é um pouco diferente também, porque o Rio foi o único estado a entrar no regime de recuperação fiscal, a primeira versão dele, em 2017. Então o Rio está um pouco diferente na reestruturação da dívida dele e financeiramente o Propag não traz tantas melhoras no perfil da dívida, essa coisa de alongar por 30 anos. Eu vi o secretário de Fazenda do Rio de Janeiro falando que tinha prós e contras, mas não era tão claro assim como é pra São Paulo e Minas.
Foi incluído na lei que o Rio pode securitizar royalties do petróleo, que é uma coisa que ele fez nos anos 1990, de vender as receitas futuras de royalties. O que é uma securitização? É falar que a partir de agora os royalties que eu receber eu vou dar direto para a União. Isso está na lei. Então queimar ativo, o Rio não tem mais nada para privatizar, mas ele pode vender os royalties futuros, o que pode ser vantajoso. Mas a situação do Rio de Janeiro é bem complicada, porque ele está no limiar de quebrar, enquanto Minas Gerais e São Paulo têm situações mais confortáveis.
Assim, para o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, eu acho que é mais ambíguo; tem vantagens, mas não é tão claro se realmente muda a trajetória das finanças destes estados.
O Rio Grande do Sul, depois que terminar esse período da calamidade, ele retoma a dívida dentro do regime de recuperação fiscal, que só vai aumentando a dívida
Como você avalia o futuro desse programa, caso esses estados mais endividados optem por não entrar?
Se não entrarem, seria um grande fracasso para o governo e para toda essa renegociação, muito capitaneada pelo presidente do Senado Federal, o Rodrigo Pacheco. Então, não é só derrota para o Executivo, mas uma frustração para vários atores. Se esses quatro estados não entrarem, então vira um programa de mexer com dívidas pequenas e, enfim, cria uma lógica interessante para alguns estados. Mas não cria nada que modifique a dinâmica dos estados na Federação.
Se eles não entrarem, a questão é que Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro estão em situações muito insustentáveis com as suas dívidas. O Rio Grande do Sul, depois que terminar esse período da calamidade, ele retoma a dívida dele dentro do regime de recuperação fiscal, que só vai aumentando a dívida. Não tem nenhum perdão envolvido e está muito alta a cobrança de juros, comparado ao crescimento do estado. A estagnação, o não crescimento do estado está muito alto. Então o Rio Grande do Sul está numa situação muito complicada.
O Rio de Janeiro atualmente está à beira de ser expulso do regime de recuperação fiscal, tendo que pagar um monte de multas, porque ele não conseguiu segurar o teto de gastos e não conseguiu fazer várias medidas. O regime veio obrigando a fazer muita austeridade e o Rio de Janeiro está fazendo tanta austeridade que nem consegue mais.
Minas Gerais, enfim, também tem essa situação, a esperança era: vamos privatizar e resolver a nossa situação. Se não conseguir ter essa opção de privatizar e resolver a dinâmica da dívida, continua nesse impasse fiscal permanente.
Se não é o Propag, então tem que ter outra coisa ou você vai começar a criar uma situação muito insustentável
Então, com a não adesão ao Propag, com certeza vai ter uma nova rodada de judicialização, porque é o que tem acontecido desde 2016. Tá todo mundo indo pro STF. Minas Gerais, Rio Grande do Sul, como eu disse, viveram do regime de recuperação fiscal e com base em liminar. Rio de Janeiro é só liminar, tem liminar do ano passado.
Então o fracasso do Propag seria tanto um fracasso do governo e para vários agentes políticos, mas também cria uma situação que precisa ser resolvida imediatamente. Se não é o Propag, então tem que ter outra coisa ou você vai começar a criar uma situação muito insustentável dos compromissos não serem mais críveis. O estado não é mais obrigado a pagar porque ele entra no STF, aí você não tem nenhuma previsibilidade porque ano que vem ele pode ter liminar, e o STF tendo que atuar como esse mediador de questões fiscais, financeiras, federativas.
É super complicado, então vamos torcer que todo mundo adira ao Propag e se encaminhe alguma solução pra isso. Essa parte dos investimentos, de mudar a lógica, em vez de ficar obrigando a austeridade, tentar coordenar que o estado faça investimentos positivos é interessante para o país. Você tem que investir em educação técnica, você tem que investir em infraestrutura. Isso é mudar a lógica da dívida, do tratamento da austeridade fiscal no Brasil.
A União também tem o problema da sua dívida, que é só tratado com mais austeridade e mais austeridade. Se a gente mudasse essa lógica, frente à dívida, eu tenho que investir na minha economia pra conseguir pagar essa dívida, seria um grande avanço. Essas leis têm toda uma genealogia, elas vão herdando coisas da anterior, então o Propag foi uma mudança num sentido bem positivo para mudar essa lógica.
Edição: Katia Marko