Quantas e quantes de nós nos vimos refletidaxs nas palavras de Vanessa, nessa história de horror
Na minha última coluna falei sobre o episódio de racismo acontecido na Academia Rio Grandense de Letras e os seus desdobramentos.
Agora quero escrever e pensar sobre um caso de violência patriarcal, do qual, felizmente, se está falando em todo canto do meu Brasil.
A panela de pressão estourou a partir de um podcast, Radio Novelo Apresenta: CPF na nota.
Quando no segundo ato: a anatomia de uma mentira, a escritora e jornalista Vanessa Barbara narra situações extremas de violência que sofreu no seu casamento com André Conti, sócio editor da Todavia.
Foi um casamento há mais de 14 anos, mas só agora que ele pede desculpas.
Vanessa relata que o ex-marido, e outros catorze homens, todas altas personalidades do meio literário e jornalista, tinham, na época, uma lista de e-mails, lá conversavam sobre diversos temas, porém, eles hoje reconhecem que a misoginia estava presente, e muito.
Em que se parecem esses dois casos? Em ambos, quem exerceu a violência, foram homens brancos, Cis, hetero, classe média ou abastada, urbanos e pessoas de poder.
E em ambos queremos manifestações não só do grupo oprimido, mas de toda a sociedade.
Há quinze anos, nós, já estávamos lá.
No 25 de novembro de 2010, alguns grupos feminiStas de Porto Alegre, tomamos as ruas do centro com uma consigna: 'Em briga de homem e mulher, a gente mete a colher'. Com o objetivo de desmanchar esse recado patriarcal de que a gente não pode se meter na briga dos outros. Não gosto do genérico masculino, elas, nos-outras, novamente ficamos invisibilizadas. Que coincidência, a linguagem patriarcal protegendo a eles e ocultando às vítimas. O recado sócio-patriarcal é deixa o omi agir, não te mete. Não! É por elas, é por nós-todas que temos que meter a colher e falar e gritar, se necessário, e continuar indo às ruas. E escrevendo.
Nesses dias que os grupos do zap estão a mil com o tema, uma colega disse: “Uma sobrevivente a uma relação com um macho abusador que fala, está prestando um serviço à toda a sociedade”. Disso se trata.
Quantas e quantes de nós nos vimos refletidaxs nas palavras de Vanessa, nessa história de horror.
Como escreve a brilhante jornalista feminista Milly Lacombe: “Tudo o que temos pedido aos supostos aliados - e aqui a palavra suposto está sendo empregada com esmero - é: metam-se. Metam-se ao perceberem o machismo passando por vocês. Metam-se. Metam-se pelo amor de Deus. Calem o amigo misógino. Interrompam o círculo de violências. Ajudem a gente a sair desse estado miserável de coisas.”
Alguns integrantes da lista de e-mails, nesses dias, estão dizendo que sim, estavam, mas que mal participavam. Então, o que queremos não é que se salve um – fato individual – queremos que os homens-todos aproveitem seu lugar de privilégio e furem seu espaço de poder para deter essas violências. Fato coletivo. Que quando escutem, ou vejam, que uma mulher está sendo tratada como objeto, reajam! Que aproveitem seu status e digam MACHISMO NÃO PASSARÁ. Em lugar de dizer: eu não fiz nada. FAÇA, SIM! FURE ESSA BOLHA!
Assim como pessoas brancas temos que fazer o mesmo quando alguém está sendo racista. Também queremos que as pessoas heterossexuais sejam cientes dos seus privilégios perante pessoas sexo-gênero-dissidentes e detenham essas violências também, como escrevi, na época.
Estamos falando de um feminismo intersecional, ou seja, transversal a todas as opressões. Eu sempre digo: uma única causa nunca vai me representar, mesmo sendo lésbica, ou feminista, ou de pessoas migrantes. Porque não é só sobre mim, mas sobre nós todxs. A prova está na minha luta, há anos, pela legalização do aborto.
Tem gente perguntando por que agora ela volta a falar de tudo isso, se o casamento aconteceu há mais de catorze anos.
Se só agora voo com tanta força a tampa da panela de pressão, foi porque o PÁ NELA não atingiu só a ela, a Vanessa Bárbara, mas a todaxs nós. A todos os grupos oprimidos.
Desde esse lugar, faz-se necessário acender uma luz e gritar não é por mim, é por nós.
Então, por que agora? Porque a pressão interna do trauma latente – seja na Vanessa, pessoa que não conheço, seja na sociedade patriarcal − era tanta que estourou a panela furando a bolha de uma elite.
Nesses lugares ainda se escutam comentários como que o interesse dela é monetizar o chifre. Eu fiquei muito feliz em saber que o livro dela teve um aumento de 13.800% nas vendas. Só fico triste de imaginar o lucro que também vá para os macho-capitalista da Amazon. Eu não compro dessa empresa.
Se a panela estourou antes e também agora foi porque não é um chifre, a violência foi tal que gerou traumas e o trauma é trauma porque não acaba, porque não deixa dormir, porque não dá respiro, porque a gente lembra a qualquer hora e em qualquer lugar, a gente passa a estar invadida, sendo perseguida pelo pesadelo. Por isso é um trauma e não um mau dia.
E quando a gente começa a ver que se fala dessa violência, tentando desmanchá-la, que a gente é ouvida, que o fato é registrado, aí tudo começa a tomar outra proporção.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Vivian Virissimo