A comunidade do município de Santo Antônio da Patrulha tem enfrentado dias difíceis desde a decisão tomada pela empresa AEGEA e amparada pelo Poder Judiciário, de despejar esgoto tratado em um de seus principais corpos hídricos, a Lagoa dos Barros. Desde que foi privatizada a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) pela AEGEA, a empresa privada passou a administrar boa parte dos recursos hídricos do Rio Grande do Sul e, aparentemente tem tido um poder de decisão no mínimo questionável sobre o direito de acesso e utilização da água pela população gaúcha.
É interessante contextualizar para os leitores sobre o que está acontecendo no Litoral Norte gaúcho. O aumento da população da região tem feito com que as decisões sobre o que se executa em termos de saneamento básico sejam tomadas de forma acelerada pelo Poder Público, sem a realização de estudos adequados e consultas à população. Decisões autoritárias têm sido frequentes, aquela que chamou mais atenção nos últimos meses provavelmente foi a de se transportar o esgoto tratado dos municípios de Capão da Canoa e Xangri-lá para o Rio Tramandaí, em local pertencente ao município de Osório e próximo dos centros urbanos de Imbé e Tramandaí, o que deixou a comunidade local revoltada e mobilizada.
Santo Antônio da Patrulha é um dos quatro primeiros municípios a serem fundados no Rio Grande do Sul e é delimitado em uma de suas faces pela Lagoa dos Barros. Lagoa histórica que é bastante conhecida no estado, pois em sua margem passa a Freeway, por onde milhares de carros transitam diariamente, da região Metropolitana em direção ao litoral, e vice-versa. Através de manifestações públicas, a comunidade litorânea tem se mostrado contrária ao autoritarismo exercido pela empresa AEGEA. Diversos pareceres técnicos, incluindo um pronunciamento do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) da UFRGS, no caso do esgoto no Rio Tramandaí, divulgam os riscos do despejo de esgoto tratado nos corpos hídricos do Litoral Norte gaúcho.
No dia 30 de novembro a comunidade se reuniu à beira da Lagoa dos Barros para protestar diante da decisão. Associações, organizações e centenas de pessoas estavam presentes. No momento foram realizadas intervenções de técnicos, artistas e moradores.
A Lagoa dos Barros faz parte de uma condição singular do ecossistema no mundo, pois é uma das maiores lagoas do RS, tem características próprias e é um dos reservatórios naturais de água indispensáveis para a vida tanto da própria natureza como das pessoas.
A Lagoa dos Barros é um sujeito de direitos, não é um bem particular e como tal não pode ser utilizada para fins particulares, privados e que visem apenas extrair da natureza, visando o lucro e os demais benefícios que o mercado sustenta.
Essa Lagoa tem características especiais que a distinguem das demais lagoas costeiras do Litoral Norte do RS, tanto devido à sua origem e processo de envelhecimento como devido à sua produtividade limitada pela luz com baixa transparência influenciada pelas ações dos ventos sobre materiais suspensos e dissolvidos em suas águas, sendo uma lagoa isolada, fechada em relação às demais lagoas.
Está localizada entre o litoral e municípios que abrigam milhares de pessoas, tem seus usos para a cultura e o lazer, como balneário que no verão atende pessoas e famílias que vêm se banhar em suas águas, é utilizada para as lavouras de arroz, contém em seu espaço um parque de preservação integral e é parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica é está inserida em uma das paisagens mais lindas do litoral do RS.
Importância cultural e ambiental
A Lagoa faz parte de um folclore de lendas e histórias (muitas em virtude de suas características ecológicas especiais), e é um ser vivo, sujeito de direitos que atualmente está ameaça devido ao despejo de efluentes da Estação de Tratamento de Osório – ETE Osório (da Corsan, que agora se encontra administrada pela empresa AEGEA) ao qual atualmente está submetida.
Além de tal estação de tratamento estar construída e operando a partir de estudos incompletos, imprecisos e que não garantem o mínimo de proteção à Lagoa, além da existência de inúmeras ilegalidades, da falta de um estudo completo e preciso de impacto ambiental, além da inexistência de licença ambiental para que estivesse operando como está atualmente, as próprias características desta lagoa não possibilitam que a ela suporte mais quantidade de elementos químicos sem que seja poluída, como ocorreu em 2020.
Em 2020 a Lagoa dos Barros, após ser gravemente poluída pelo despejo de esgoto tratado da ETE Osório, onde suas águas foram feridas pela produção excessiva de algas e pelo surgimento das tóxicas cianobactérias, que resultaram no total esverdeamento, ela foi completamente interditada, tornando-se inutilizável para qualquer uso, sendo sequer impossível que uma pessoa tocasse em suas águas sem que corresse riscos de contrair doenças infecciosas.
Ações judiciais resultaram em decisões que determinaram a suspensão das operações da ETE Osório entre 2020 a 2024. Porém, em 2024, mesmo permanecendo um quadro técnico, científico e jurídico de imprecisão, de insegurança e de ilegalidade, o Poder Judiciário, com apoio do Ministério Público e da Fepam, determinou a retomada das operações da ilegal, danosa e poluente estação de tratamento, colocando em risco, mais uma vez, a lagoa, o Parque de preservação integral e parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Hoje a Lagoa dos Barros está sofrendo com o despejo de efluentes da ETE Osório que sem licença ambiental, sem um estudo preciso e que cumpra as exigências legais mínimas, em violação expressa aos princípios ambientais da prevenção, da precaução e de que na dúvida sempre se decidirá pelo meio ambiente, resultará num dos mais graves “acidentes” ambientais de todo o Litoral Norte do RS, transformando-a num grande esgoto tratado a céu aberto.
É importante dizer que há previsão no plano municipal de Saneamento de Santo Antônio da Patrulha para que a Lagoa dos Barros seja utilizada como fonte de água para o abastecimento de toda a população do Município, assim, a luta pela defesa da lagoa, primeiro porque é um ser, um sujeito de direitos, mas em seguida está fundamentada na luta para termos uma reserva de água para bebermos no futuro.
Todos somos favoráveis à política pública de saneamento básico, mas desde que essa seja compatível com a preservação do meio ambiente, sendo que a Lagoa dos Barros não suportará o despejo dos efluentes da estação de tratamento sem que seja destruída, sem que seja morta como ser vivo e como sujeita de direitos.
Precisamos romper com o modelo antropocêntrico que fundamenta uma relação extrativista e de exploração da natureza como uma coisa, um bem privado que existe apenas para satisfazer o ser humano, o mercado, o consumo e o ser humano como centro de tudo. Precisamos romper com nossa visão viciada, buscar o inter-ser, a integração com todos os seres para que possamos, quem sabe, sobrevivermos.
* Tiago Dominguez, médico veterinário e ativista socioambiental; Luciano Amorim, advogado e procurador do município de Santo Antônio da Patrulha.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko