O passado, que reinventamos através da memória, deve estar à frente, orientando nossas escolhas
Finalmente, fui assistir ao filme Ainda Estou Aqui. Estava relutando em fazer isso, porque pensava ter a noção exata do que acontece quando vejo filmes ou documentários que retratam realidades vividas durante guerras e ditaduras. Em geral, as histórias me perturbam, sofro com as personagens, mas sempre de uma perspectiva de quem assiste à dor do outro. Nesse caso, foi diferente.
Além de me surpreender com a qualidade do filme, o modo sensível como a história foi contada e a atuação realmente brilhante de Fernanda Torres, me vi atravessada por sentimentos mais fortes. Há, sem dúvida, responsabilidade da atriz, em sua qualidade de atuação. Ela nos oferece a possibilidade de compartilhar o medo, nas cenas em que os agentes do Estado levam seu marido; permanecem dentro da sua casa ou a conduzem para um interrogatório. Assim como propicia, também, a possibilidade de compartilhar a alegria, quando insiste para que os filhos façam a foto sorrindo ou os leva para tomar sorvete, mesmo ciente de que seu marido havia sido assassinado.
A questão é que essas e outras cenas do filme não me causaram, desta vez, apenas uma sensação de empatia. Algo mais forte ocorreu. Foi como reavivar a memória; ser confrontada com o retorno a uma experiência vivida. Uma memória que eu não posso ter. Ao menos é o que me dirão todas as pessoas, cuja perspectiva de pensamento sobre isso for ocidental, cartesiana. Afinal, eu nasci em 1975. Meus pais não foram presos, em razão de atuação política. Então, o que poderia explicar a nítida sensação que tive de relembrar física e emocionalmente o pânico, o desamparo de quem foi diretamente atingida pela brutalidade do regime militar? Ou de compreender, como se eu também estivesse lá, a insistência em apostar na vida e não se deixar carregar pela pulsão de morte que anima governos autoritários?
Ainda estava pensando sobre isso, quando comecei a ler o livro de Silvia Rivera Cusicanqui. Em Um Mundo ch’ixi é possível, Silvia se refere ao tempo, como um conceito que, para a cultura indígena aimará, não é linear. Há um “futuro-passado habitado simultaneamente a partir do presente”. Como ela escreve, o presente é a única coisa que efetivamente conhecemos. O passado, que reinventamos constantemente através da memória, deve estar à frente, orientando nossas escolhas, nos ensinando. O futuro deve permanecer às costas, pois é um “poço de preocupações” que, se posto adiante, “não nos deixa viver, não nos deixa caminhar”.
Para o pensamento aimará, portanto, pensar é estar conectado com o aqui-agora, mas também com tudo o que já aconteceu e ainda está aqui. Não se trata apenas de um redimensionamento de nossas percepções sobre o tempo, mas de compreender efetivamente que o passado nos habita. Segundo Silvia, para o pensamento aimarásomos parte de uma comunalidade e o que essa comunalidade experimentou ainda está impresso em nós. Um pouco do que Lelia discute em texto que comentei aqui. Não é uma perspectiva idêntica. Lelia coloca a memória no registro do inconsciente e a perspectiva indígena aimará parece fazer algo para além disso. Reconhece a memória como experiência vivenciada: o futuro-passado habitado pelo presente. Nós fomos queimadas na fogueira, levamos as chicotadas, perdemos nossos filhos, sofremos o estupro, fomos torturadas. Nós insistimos na alegria, parimos crianças, amamos, lutamos. É um modo radicalmente diverso de compreender a temporalidade, mas também o que nos constitui como sujeitas.
O cotidiano da realidade capitalista, em regra, nos impede de perceber isso.
Nossa cultura nos convoca a valorizar experiências atuais, de preferência vividas a partir de nossa subjetividade. E, com isso, nos desconecta das pessoas com as quais convivemos, daquelas que nos antecederam e de todos os demais seres viventes. Prestamos atenção apenas no que acontece nesse intervalo entre nascer e morrer. Quanto à memória, mesmo quando a honramos, é geralmente desde uma ideia de não-repetição dos erros do passado. Da perspectiva aimará, esses erros também são nossos.
Enquanto pensava no assunto, lembrei novamente do filme. Não sei o que me habilitou a ter uma experiência tão intensa, de presentificação do passado, como a que senti enquanto o assistia, mas o livro de Silvia deu pistas importantes para uma elaboração a esse respeito. Em outro trecho, ela refere ter sido convidada, na academia, a não “mergulhar nas feridas do passado”. Naquele momento, afirma, percebeu que as feridas coloniais ainda doíam, ainda vertiam sangue. Compreendi, então, que a sensação de que já havia vivido o desespero suportado em razão das escolhas políticas que conduziram à ditadura, era mais do que o medo de que tudo se repita ou o resultado da minha capacidade de ter empatia pela dor alheia. Era o passado presente.
As torturas e as mortes, as vidas e as famílias destruídas pela experiência de violência radical do autoritarismo militar financiado e apoiado por parte da sociedade civil constituem uma realidade que ainda está em nós. É parte do que somos. Reavivá-la é algo necessário. Importante para que não se repita, como dizem todas as pessoas que se engajam no processo de preservação da memória coletiva, mas sobretudo para que compreendamos a presença ativa dessa experiência de dor. Claro que pesa sobre nós o medo do futuro, do que ainda está no horizonte dos discursos autoritários que seguem alimentados pelo ódio à diferença. Estou me referindo, entretanto, a algo diverso: a essa sensação de pertencer aos corpos que tiveram a experiência direta da fogueira, do açoite, da tortura. E de compartilhar, igualmente, a teimosia em apostar na vida, o riso, a solidariedade, a pretensão de construir um mundo diferente. Afinal, o que nos faz resistir a formas autoritárias e violentas de Estado é exatamente essa vontade de uma vida colorida, com pessoas diferentes entre si, para as quais o signo do convívio não seja a tolerância, mas o amor ao que me é estranho, inapreensível, como escreve Luce Irigaray.
Uma aprendizagem possível nesse encontro de mundos que a abertura para os pensamentos indígenas e africanos nos concede: compreender a partir do sentir. A famosa frase da filosofia ubuntu, eu sou porque nós somos,não se refere apenas às possibilidades de atuação e engajamento coletivos, mas à existência que se perpetua; às marcas que permanecem, com as quais precisamos nos confrontar.
Assim como a ferida colonial, a ferida autoritária ainda sangra. Talvez não seja possível curá-las, nem seja esse o caso. Se essa violência ainda está aqui, ainda está em nós, elaborar o trauma passa não apenas por escolher não repetir, mas sobretudo por compreender como nos implicamos nessa história. Passa por compreender o que resta em nós dessa força, que fez Eunice Paiva cursar Direito, já viúva e mãe de cinco filhos; o que a fez defender os povos indígenas; seguir sorrindo.
É exatamente aí que o Direito do Trabalho encontra minhas reflexões.
A violência cotidiana de quem precisa trabalhar para sobreviver não é algo com o que devamos ser empáticas. É, isso sim, a experiência de corpos, com os quais compartilhamos a existência. É o nosso trauma, portanto, porque todas vivemos em uma sociedade, na qual somos impedidas de ter acesso direto ao alimento, em que a vida passa a ser vivida aos soluços, nos intervalos entre o cumprimento de uma meta ou a resposta a uma mensagem de trabalho. Também porque cada pessoa sem trabalho, sem casa, sem comida, é uma vida em sofrimento que nos atravessa, da qual somos parte, queiramos ou não. Mas também é nosso - e isso é o mais importante - o sorriso na foto da família Paiva; a alegria das reuniões subversivas e das ajudas que seguiam sendo dadas de forma clandestina, durante a ditadura. Também são nossas todas as experiências individuais e coletivas, passadas presentes, de resistência, de radical compromisso com a vida. É nossa, portanto, a escolha de assumir uma postura de preservação da vida, de todas as vidas; de sensibilidade com a dor, com todos os tipos de sofrimento.
Tenho pensado muito sobre isso. Talvez eu esteja indo longe demais nessa reflexão. O pensamento às vezes pode tornar-se atrevido e voar para onde quiser. Ainda assim, quero insistir: compreender que o passado está presente em nós e que as experiências de pessoas, com as quais sequer convivemos, podem (e devem) ser sentidas como nossas, é talvez uma chave bem melhor para criar laço social, do que o conceito ideal e problemático de humanidade. Na capacidade de experienciar a dor e a alegria alheias como nossas reside a possibilidade de impedir o sofrimento desnecessário, inclusive para nós mesmas.
Afinal, o que nos une a pessoas como Eunice Paiva é a “estranha mania de ter fé na vida”, a intransigente vontade de viver em uma verdadeira comunidade, na qual o destino do outro me interessa, porque é também parte do que sou.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo