Rio Grande do Sul

COMUNICAÇÃO

Tição faz lançamento especial sobre a resistência do movimento negro

Evento será dia 28 na Biblioteca Pública do Estado, entrada livre e shows de Maguerite Silva Santos e Naiara Oliveira

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
O nome Tição foi dado ao periódico por influência do professor Oliveira Silveira - Foto: Divulgação

A Revista Tição é um marco na história, a pioneira no movimento negro brasileiro. É muito mais do que uma revista. É um grupo de pessoas que age, atua, defende e guerreia para apresentar a sua voz. Nasceu há quase 50 anos. Foi notada, falada, comentada, não só dentro da comunidade negra, mas em vários setores da sociedade gaúcha. Depois do grande sucesso da exposição de junho/julho de 2023 na UFRGS e de alcançar prestígio nacional e internacional, agora ocorrerá no dia 28 de janeiro, a partir das 18h30, na Biblioteca Pública Estadual do RS, uma nova ação do grupo: “O Lançamento da Tição Especial – 50 anos de resistência”.

Idealizada por um grupo de jornalistas negros, Tição se propunha, naquele momento de ditadura militar, em 1978, a ser um brado contra a discriminação racial, a violência policial, e denúncia da falta de mercado de trabalho, do racismo e, ao mesmo tempo, de exaltação da descoberta da negritude, dos valores afro-brasileiros, da estética e cultura negras, afirmam Emílio Chagas e Jeanice Ramos, editor e jornalista responsável da publicação.

Na liderança estavam os fundadores Jorge Freitas, Emílio Chagas, Jeanice Ramos, Vera Daisy Barcellos (ex-presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS), grupo ligado ao jornalismo, ao qual se somaram outros três fundadores históricos: o poeta e pesquisador Oliveira Silveira*, o sociólogo Edílson Nabarro e o militante Walter Carneiro. Já o jornalista e escritor Jones Lopes, autor do livro sobre o craque Escurinho, uma lenda colorada dos anos 1970, passa a integrar a equipe a partir da segunda edição.

Para Emílio Chagas, 75 anos, publicitário, jornalista e produtor cultural, a revista Tição trouxe ao debate temas que seriam recorrentes ao futuro movimento negro, que se organizaria no país a partir de 1978, durante o poder militar.

“As perspectivas da Tição eram de combate, enfrentamento e denúncia, buscando formar consciência e sentimento de pertencimento na população negra. Neste tempo, embora a sua situação de exclusão e discriminação, em essência, seja a mesma. É importante registrar que naquela época não havia nenhuma entidade oficial/governamental que contemplasse ou representasse a comunidade negra. Os negros nos cursos superiores eram raros, e as políticas afirmativas e cotas, então, inimagináveis – assim como ministério, secretarias ou políticas públicas para o povo negro. A sua visibilidade restringia-se aos clássicos, permitidos e limitados espaços: futebol, música, carnaval, entre outras poucas coisas”, afirma.


Emílio Chagas / Foto: Beto Rodrigues

A última publicação sobre questões raciais era dos anos 1930, 1940, O Exemplo. Foi, portanto, a partir do Rio Grande do Sul que partiu este brado, buscando a ideia de identidade negra (nada a ver com identitarismo, segundo esclarece Emílio), já que a autoestima do negro era baixa, acentuada pela discriminação, pela desigualdade racial, exclusão de mercado e sem visibilidade na hoje chamada “grande mídia”. Ou seja, primeiro a conscientização étnica, depois a ação – uma espécie de letramento racial da época.

“Levantamos bandeiras até então inéditas há quase 50 anos”, relembra o editor do Tição. “Fomos procurar nomes de jornalistas nas redações, rádios, tvs, e não encontramos nem 10 deles. O que era para ser uma revista, tornou-se um movimento, com exaustivos debates e discussões sobre pautas e abordagens. A nossa questão era abrir espaço para as especificidades e singularidades negras, assim como o feminismo e a questão ambiental que eram ignoradas pela pauta geral da esquerda. Hoje, quase cinco décadas depois, percebemos que as pautas continuam válidas e atuais. Por isto, resolvemos voltar e prosseguir na luta antirracista. Ainda tem um longo caminho pela frente, pois o racismo ainda está aqui”, enfatiza Emílio.


Foto: Divulgação

Primeiro número

O primeiro número da revista circulou em março de 1978, exibindo na capa a imagem de um menino negro, enquanto o segundo, em 1979, estampava a fotografia, as cores, de um amalá de Xangô. Eram afirmações da realidade e do imaginário da negritude. Em 1980, circulou a última edição, em versão jornal, com apenas quatro páginas. A vendagem era típica das publicações alternativas da época: espaços culturais, estudantis, redutos negros, e uma precária comercialização em bancas de jornais e revistas.

Criando grande expectativa na comunidade negra de Porto Alegre, o grupo, além da edição das revistas, também acabou se envolvendo em outras atividades, principalmente de cunho cultural, como Mostra de Cinema Negro e o espetáculo Música Negra do Sul, no Clube Náutico Marcílio Dias – uma tentativa de aproximação com a grande “maioria silenciosa” da sociedade negra porto-alegrense.

A publicação começou a ser gestada em meados dos anos 1970, quando a ditadura militar mostrava sua face mais cruel. Mesmo assim, a Tição teve a coragem de abordar temas cruciais (que permanecem até hoje) e bandeiras históricas – sem, contudo, deixar de exaltar e tratar das demais questões sob a ótica da negritude como educação, música, literatura, estética, carnaval, política, história, religião, futebol, entre outros. O contexto da época ainda trazia reflexos do movimento negro dos Estados Unidos (EUA) – a onda Black Power e os Panteras Negras; os movimentos de libertação do colonialismo das nações africanas, como Guiné Bissau, Angola e Moçambique e a influência de sociólogos como Florestan Fernandes e Clóvis Moura.

O surgimento da revista contribuiu para a formação do movimento negro contemporâneo a partir daí. Objeto de estudos e pesquisas acadêmicas, entrevistas dadas à revista, nesses seus quase 50 anos, continuam atuais em sua temática, mesmo com as alterações no quadro da realidade racial existente. Há hoje outra conjuntura, mas na essência a luta antirracista continua a mesma, agravada pela exclusão social e o recrudescimento do racismo. Mercado de trabalho discriminatório, desigual e excludente; violência policial institucionalizada; genocídio da juventude negra, entre outras realidades, mostram que o resgate da revista, enquanto documento e registro histórico, e a sua volta, são fundamentais para prosseguir na denúncia, no enfrentamento e na luta antirracista.


Jeanice Ramos / Foto: Beto Rodrigues

Jornalismo

A Revista Tição vem preencher uma lacuna no jornalismo local, reforça Jeanice. “Pautas significativas envolvendo temas do nosso cotidiano. Um olhar aguçado às problemáticas que envolvem as diferentes comunidades. Um filtro rigoroso frente à nossa realidade”, diz. O lançamento do dia 28 de janeiro, afirma ela, trata-se de uma releitura da Revista Tição de 1978/79. Um grito de resistência às modificações do status quo. “A comunidade pode se sentir reconhecida nas diferentes pautas abordadas. A contemporaneidade premia com diversos textos que não apenas registram como se manifesta a sociedade negra, como pretende vislumbrar novos caminhos”, lembra.

O nome Tição foi dado por influência do professor Oliveira Silveira, um dos membros do grupo da revista/jornal. Oliveira foi um grande mediador de todas as edições, pois era hiperconectado, fazendo ponte entre contatos da área da literatura e jornais de abrangência nacional. De forma política, os integrantes traziam diferentes trajetórias e militâncias identitárias, pautando assuntos pouco debatidos e abrindo caminho para algumas conquistas do povo negro, como a Lei de injúria racial, os direitos assegurados pela Constituição e, mais recentemente, a Lei das Cotas. 

“Éramos jovens e rebeldes. Queríamos ser a mídia negra contemporânea. Para isso nos reunimos periodicamente para tratar destes rumos. Foi muita conversa, muita reunião. Para discutir uma pauta podíamos demorar semanas”, recorda Jeanice. Ela lembra que a gestação da revista foi cheia de percalços. “Muitos ficaram sabendo do grupo de trabalho e se agregaram, mesmo sem ter formação. A revista finalmente saiu como nós queríamos, com pautas instigantes. Nos clubes negros éramos muito bem recebidos. Era algo novo. O nosso calcanhar de Aquiles foi a distribuição, que era centralizada em apenas duas na cidade. Uma vez mais escolhemos assumir a tarefa. Tínhamos o compromisso de dar certo”, afirma, acrescentando que na época a equipe recebeu cartas de todo o Brasil e do exterior, como Espanha, França, Suécia.

“As pessoas estavam impactadas com a revista. Ela tinha pautas super atuais, pertinentes, que deveriam ser tratadas há muito tempo. E as pessoas tinham um envolvimento muito grande com a revista. Era um carinho pelo produto, porque as pautas foram tremendamente discutidas para chegar naquele ponto que chegou. Levamos meses para discutir pautas”, conta. A maioria das matérias da revista não são assinadas, porque elas foram feitas em conjunto, com várias mãos. “Muita gente circulou e participou, encantada com o projeto”, aponta. 

“Posso dizer que a Tição – com exemplares no formato revista e outros como jornal – hoje distanciado pelo tempo, foi um marco na imprensa gaúcha. E com um significado muito especial, diria um valor na minha vida profissional, considerando a jovem mulher que estava à frente desta iniciativa empresarial, como jornalista responsável e com o desafio de se apresentar aos censores da época, levando os textos da revista ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), prédio localizado na Avenida Paraná”, lembrou a jornalista Vera Daisy Barcellos, uma das fundadoras do periódico e ex-presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS e com uma militância de dezenas de anos pela causa.

Atualmente o grupo se reestrutura e busca fazer uma releitura dos exemplares da Tição. Agrega jovens que também querem ver um exemplo de comunicação negro bem sucedido. Além de significar um resgate importante da publicação, a reedição histórica da Tição é também uma contribuição à luta antirracista neste momento de recrudescimento da discriminação racial no Brasil, em especial no RS, um dos estados potencialmente mais preconceituosos do país. 

Responsáveis

Emílio Chagas – Coordenador Editorial
Jeanice D. Ramos – Coordenadora Institucional
Contatos: [email protected]
Ou telefones/WhatsApp (51) 991173390 (Jeanice Ramos)  e (51) 992148911 (Emílio Chagas)
Nereidy Alves – Produtora
Contatos: [email protected] ou telefones/WhatsApp (51) 991173390 
Editor: Emílio Chagas, Jornalista Responsável: Jeanice Dias Ramos, Repórteres: Cíntia Colares e Jones Lopes da Silva, Designer Gráfico: Eduardo Soares, Rebranding: Paulo Corrêa, Consultor Editorial: Edílson Nabarro, Fotógrafos: André Gomes, Beto Rodrigues, Marco Nedeff, Produtora Executiva: Nereidy Alves, Revisora: Carol Prola, Social Mídia: Andreia Ramires, Articulistas: Iv na Braz e Walter Pernambuco.

Patrocinadores e apoiadores

Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ADUFRGS, Centro dos Professores Gaúchos/CPERS, Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras/FETRAFI, Selo Canela Preta e Coleção Diáspora/UFRGS, Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul/SINPRO e Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul/BPE.

* Oliveira Silveira: Nascido em 1941 na área rural de Rosário do Sul, Rio Grande do Sul. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente de português e literatura no ensino médio. Atividades jornalísticas. Ativista do Movimento Negro. Idealizou o 20 de novembro, publicou 10 títulos de poesia e colecionou inúmeras homenagens em vida e depois de sua morte em 2009. Intelectual militante negro brasileiro que, em sua trajetória, expressou e propôs outras possibilidades do negro ser e estar no mundo e no Brasil.


Edição: Katia Marko