O direito à fala nos foi roubado juntamente com nossos corpos desde antes dos navios
Eliane Marques segurava seu merecido prêmio, mão trêmula, voz embargada no microfone, podíamos obviamente perceber do lado de cá da tela. Foi educada em seu discurso, falou baixo e pausadamente, como a branquitude gosta.
Pronto, chega de violência, deve ter pensado enquanto engolia pregos, sapos, sal e charque. Não sou tua igual pode ter sussurado em silêncio minutos antes do abraço, engolindo o choro como ensinaram nossas mais velhas.
O cidadão antes de se dirigir ao microfone correspondeu ao abraço trazendo com veemência o mesmo discurso racista de minutos antes.
Inocência? Ignorância? Crueldade? Puro racismo?
O direito à fala nos foi roubado juntamente com nossos corpos desde antes dos navios.
Alguém me diz com um olhar silencioso:
- Esquece isso, foi ano passado, a poeira já baixou.
- Baixou para quem?
Para nós é que não foi. Falaremos até que a morte (espero que de causa natural) nos cale.
Somos nossas próprias advogadas e juízas porém quem bate o martelo é a branquitude, sistema criado exatamente para oprimir e calar.
- Mulher, o caso foi com aquela moça lá, é tua parenta?
Sim é parenta, todas somos parentas não sabia?
Aquela moça lá sofreu um ataque racista. Aquela moça lá tem nome, endereço título e profissão aquela moça lá estava naquele lugar representando todas nós.
Não, a poeira não baixou. Não irá baixar. Não permitiremos.
O fato ocorrido em doze de dezembro de 2024 irá reverberar em todas nós até que se faça justiça.
A voz do cidadão branco e sendo assim se achou no direito de criar uma história própria baseada em quê não sei, mas sobre nós, se viu no direito de mostrar o quanto ignora a realidade cultural brasileira e afro-gaúcha.
É certo que ainda estamos em busca da liberdade que nos foi prometida, prometida e assinada como lei, assinada e espalhada aos quatro cantos do mundo.
Onde está essa liberdade?
Sem justiça social impossível ser livre.
Onde estamos errando?
Seria no fato de imaginar que avançamos?
Cidadãos brancos comandam o país, o racismo estrutural enquanto projeto tem dado certo.
É necessário em pleno século 21 tratar destes assuntos no formato de aulas online? Descrevendo sentimento de revolta a cada fato novo contra nossos corpos pretos?
Nós, mulheres negras, sabemos como e onde a sociedade racista gostaria que permanecêssemos e que palavras gostariam que saíssem de nossas bocas, e principalmente o que na visão deles deveríamos estar fazendo.
Por muitas vezes em espaços ditos de “poder” através de olhares silenciosos gritam: “aqui não é teu lugar”.
- Ai, tudo para vocês é racismo.
- Enquanto for racismo sim.
Diz aí quando não é.
Aprendemos nossa história, estudamos nossos direitos, despertamos nossos silêncios.
Sim. Fomos estudar, aprender línguas, conhecer o mundo, publicar livros, ganhar prêmios.
Máscaras de flandres caíram ao chão, vozes se libertaram.Racistas viram. Que vejam também nosso levante em silêncio prestando muita atenção. Aprendam sobre racismo com quem é vítima do próprio a cada 23 minutos de cada giro de relógio.
“...Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Penso nos feminismos negros como sendo este estilhaçar, romper, desestabilizar, falar sobre os orifícios das máscaras”, disse Conceição Evaristo, em entrevista para Carta Capital.
Quem faz parte do movimento antirracista, precisa se conscientizar, criar estratégias para combater toda essa violência direcionada milimetricamente.
Cansamos de de sofrer racismo.
Como cidadã mulher negra afro-brasileira digna de todo respeito, assim como todas nós, confesso, carrego imensa curiosidade palpitando aqui dentro desde sempre. Me interessa saber o que sente uma pessoa racista vendo todos os dias que é maioria em certos espaços privilegiados? Total maioria, quase cem por cento maioria.
Olha para os lados e vê apenas seus iguais.
Como se sente? Orgulhoso de fazer parte da minoria com poder?
Assunto como esse deve ser debatido entre pessoas brancas antirracistas que aos montes erguem bandeiras e punhos fechados.
- Ai, não começa a achar que todo branco é racista...
Prove que não, nos ouvindo, nos respeitando, nos defendendo como não fez a maioria presente na Academia Rio-Grandense de Letras (ARL), na cerimônia de entrega do prêmio a autora do romance Louças de Família.
Eliane Marques é poeta, romancista, ensaísta e psicanalista, entre outros títulos. Sua obra mais recente, Louças de Família, primeiro romance, recebeu o prêmio São Paulo 2024, também foi premiado na ARL, evento onde o presidente da associação, também autor de vários títulos, usou seu espaço de fala para um discurso racista.
O acontecido foi noticiado, a fala dela, muito replicada nas redes o vídeo gravado pela também escritora Laís Chaffe nos proporcionou ver o quanto o racismo continua forte, e o quanto continua dando certo para “eles”, os donos de tudo.
É necessário prestar atenção e logo conversar mais seriamente sobre esses atos.
O que conversam essas pessoas quando não estamos próximos?
Ainda montam planos de extermínio assim, naturalmente enquanto descascam uma banana?
Mais um alguém diz:
-Deixe quieto, a poeira baixou. Para muitos baixou mesmo, para outras mais, caiu no esquecimento. Será mais uma página virada no livro de história, história contada e recontada por eles desde sempre?
O que nos falta tenho absoluta certeza é uma longa conversa, voltando assim a espaços mais profundos buscando talvez a verdadeira consciência humana.
Quando repetimos a metáfora FOGO NOS RACISTAS, estamos afirmando o quanto somos quentes e verdadeiros em nossas ações, lotando as universidades com todo direito.
Jamais desperdiçaríamos um palito de fósforo sequer. Nossa luta é limpa.
Fogo nos racistas é sorrir de modo sincero, é saudar o 20 de novembro feriado nacional, respeitar nossa origem, saudar os orixás, dançar um samba bonito no asfalto e tudo o que existe de mais bonito neste país que nos pertence legalmente.
“Eu me levanto, eu me levanto, eu me levanto”, disse Maya Angelou.
Quantas pessoas brancas se erguerão contra o racismo?
* Fátima Farias nasceu em Bagé (RS). É cozinheira, poeta, compositora e educadora social. Reside na zona Leste de Porto Alegre. Participa de coletivos e saraus. Com três títulos publicados pretende seguir em frente com seus livros: Mel e Dendê-Poemas 2020 libretos/ Um Poema por Dia-Poemas-Iel/Santasdecasa-Prosa/libretos. E-mail- [email protected].
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo