Rio Grande do Sul

ARTIGO

El que venga atrás, que arree* (Quem vier atrás, que pastoreie)

'Há coisas a dizer. Devemos celebrar a vida, falar aos jovens, aos despercebidos', pontua Mujica

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Mujica e Fabián Restivo no sítio do ex-presidente do Uruguai - Imagen: Gentileza

A primeira vez que ele me disse: “Estou a um passo de partir” foi há muitos anos. E ele riu. Estávamos sentados na cadeira com tampinhas de refrigerante. E na segunda, ele soltou a eterna frase “mais respeito por aquela cadeira, porque o rei da Espanha sentou ali!”, e em seguida o riso com uma malícia infantil nos olhos.

Era uma época fácil e tranquila, depois de uma vida de lutas e sobressaltos. Pepe vinha há anos resistindo aos ataques de morte, interpretando graciosamente a Verônica. E os corvos estavam longe. O suficiente para brincar entre piscadelas “estou a um passo de partir” mesmo pensando na possibilidade real, sem se importar. Só não poderia falar isso “quando a velhinha está por perto, porque ela fica brava. Veja como é. Ela não gosta disso. Ela, Lucía, o repreendeu com o olhar de quem desafia falsamente um filho.

Lembro-me de seus sapatos eternos, eternamente enlameados, talvez porque quase sempre eu ia no inverno, ou porque ele anda sempre na terra. Seria uma piada estranha dizer que o seu lugar na Terra é a terra. Estranho agora, onde transformaram quase tudo em finais citáveis antecipados, cujo destino parece ser esses pacotes de açúcar de merda onde fazem qualquer um dizer qualquer coisa que caiba em duas linhas de tamanho 8 em fonte suíça. Mas a verdade é que ele se definiu diversas vezes como um torrão com pernas.

Pepe ri muito e de quase tudo. Até a anedota da motocicleta com que chegou ao Congresso quando era deputado e a conversa com o segurança, porque “isso nunca aconteceu, mas estava tão bem escrito que não havia porque negar!” E a travessura permaneceu. No final, quando precisou, apostou a vida na sorte, ou na verdade, na chance de uma noite: “é que havia uma causa…” E perdeu. E contou anos depois, sem drama: “Fui preso porque corria devagar. Se eu tivesse corrido mais rápido, eles não me alcançariam.”  Y listo el pollo. (E o frango está pronto, expressão que significa está pronto, terminou).

Quando ele devia mandar alguém à merda, foi sem vergonha. Ele nunca teve, porque não queria ter, a habilidade para palavrões elegantes. E continua o mesmo. Mesmo sem o ímpeto do guerreiro, ele atira no que vem até ele, e quem vier atrás, pastoreie. Como diz um amigo (que não o ama muito): “O velho pegou anos de cana fodida e nunca falou, nunca traiu. Isso merece respeito. Se ele atirar uma pedra agora, teremos que lidar com isso.”

Há algum tempo, numa noite furtiva e chuvosa, fumando diante de uma garrafa de Espinillar que havíamos resgatado com o Urso, ele chegou a uma conclusão que me preocupou: “As novas sociedades têm novos conflitos. Aí estão os ambientalistas, o tema do feminismo, as variedades sexuais, os que lutam com convicção pelos direitos dos animais... Há muitos interesses novos que antes não existiam e agora existem, e não sei se os partidos representam essa universalidade, porque são causas distantes das ideologias tradicionais. Os partidos não estão conseguindo ler muito bem isso, eu acho.” Mas quando soube do câncer, disse que se a vida lhe desse a oportunidade de ver vencer a Frente Ampla de sua alma, tudo estaria mais do que pago. E a vida deu-lhe tempo.

Há algum tempo ele havia dito que se encontrasse a morte, planejava dizer: “deixe-me dar mais uma caminhada”. Não sei se a encontrou no galinheiro ou numa daquelas tardes de inelutável clarividência. Apenas com a certeza de voltar à cozinha para fazer uns mates com Lucía. Mas a questão é que, contra todas as probabilidades, ainda está lá. E ele pede que não incomodem com bobagens.

Hoje em dia penso mais em Lucía do que em Pepe. Sei da ferocidade quando se trata de cuidar de alguém. Fiquei sabendo em primeira mão quando há cerca de seis anos, me convidou para jantar e, como no passado, perguntei se ele pretendia ser candidato: “Não venha aqui com essas coisas! Este homem é velho, e se for se envolver na campanha não conseguirá chegar às eleições. Então não venha com isso. Temi pela minha vida nas mãos da faca com a qual ela cortava a pizza e não tive mais tempo de me desculpar. Mas, com o mesmo carinho, sabe fingir que não vê quando o velho fuma quase às escondidas. E entre lutas políticas e ordens diversas “sabe sempre onde deixei o chapéu ou os óculos, por isso sem ela a minha vida... não, não, deixa…”.

Certa vez, andando pela chácara, tentei colocar meu braço de falcoeiro para que ele atravessasse uma poça, mas ele rejeitou. “Pare de brincar. Vá em frente. Aí não, isso é um sulco! Você realmente não sabe nada sobre a terra. “Que bárbaro.” E ele ainda tentava me explicar a diferença entre uma nogueira e um carvalho. Até que a evidência o derrotou. E foi com uma risada de olhos pequenos: “Você tem que saber quando desistir.” Algo que não aconteceu com ele quando se viu no meio da luta entre as FARC e o ex-presidente colombiano Santos: “Porque depois as pessoas disseram uma estupidez, e a verdade é que falei primeiro com o Santos, para ver se conseguia ajudar a pacificar a Colômbia. Se pudesse ser usado para isso, por que não? Foi uma causa justa. A mesma coisa aconteceu quando trouxe para cá alguns prisioneiros de Guantánamo. Me contaram tudo, porque pessoas que não sabem nada, falam. Olhe na internet, se não, qualquer criança fala o que quiser.”

Quando decidimos escrever o livro, que ainda não foi publicado na Argentina, ele me pediu algo que aceitei prontamente: “Não quero falar de quando estive na prisão, de como fui preso, do que aconteceu depois . Há coisas a dizer. Devemos celebrar a vida, falar aos jovens, aos despercebidos. Há coisas como história e educação que são muito importantes e também divertidas e interessantes.” Não foi preciso nenhum esforço para não passar por ali, pois já conversávamos muito há muito tempo e quase não havia novidades. Apenas a revisão dos fatos do mundo e suas mentiras, que nos entretêm entre silêncio e silêncio, ora bebendo mate, ora uma cachaça que vale a pena. É por isso que também não há “citações citáveis” aqui.

No fim. Vamos de novo, ainda dá tempo. Basta servir, felicidades! E quem vier atrás, que pastoreie. 

* Refrão espanhol que significa que quem chegar de novo deve se esforçar para ficar no mesmo nível dos outros. usado para indicar que já foi feito um grande esforço. 

** Publicado originalmente no Página 12.


Edição: Katia Marko