Depois de um ano fechado, o Hospital Colônia Itapuã (HCI) mergulha no esquecimento. Cercados de mata nativa, os edifícios que compõem o complexo estão reféns do abandono. As memórias do local, que já foi espaço de dor, estão desaparecendo com a morte de seus antigos guardiões.
O hospital foi inaugurado em 11 de maio de 1940, em Viamão (RS), a 48 quilômetros de Porto Alegre, para isolar compulsoriamente pessoas diagnosticadas com hanseníase, doença antes conhecida como lepra e que, na época, não tinha cura. Assim como nas outras 38 colônias brasileiras, a prática do isolamento obrigatório somente foi descontinuada em 1968 pela lei nº 5.511. Ameaçada pela deterioração do patrimônio arquitetônico, essa história pode se perder. E, com ela, a memória dos 2.474 pacientes que passaram por lá, internados com hanseníase.
Há 84 anos, o Hospital Colônia Itapuã recebia os seus primeiros residentes. Alguns deles jamais sairiam de lá. "O Hospital Colônia sempre foi o lugar onde os pacientes não teriam alta, as altas seriam somente celestiais", afirma Rita Camello, enfermeira no HCI por 17 anos e especialista em hanseníase, que dedicou a vida ao cuidado e à memória de seus pacientes. “A história viva de quem pode te contar algo não é o que um livro nos diz, é quem viveu”, afirma.
Através de um processo de desinstitucionalização de pacientes pela prefeitura de Viamão, em novembro de 2023, o hospital encerrou as atividades como aparato de saúde.
Da política de limpeza ao preconceito
O isolamento de doentes do convívio social revela uma política de limpeza de sociedade, que também se refletia nos nomes dados aos espaços do HCI. A “zona limpa”, para funcionários, e a “zona suja”, para pacientes, simulavam uma cidade, possuíam escola, refeitório, cadeia, salão de festas, cemitério, praças e igrejas, além da enfermaria. Rita relembra que, para incentivar a adaptação, um bordão era proferido na época aos moradores: “Se o destino é a colônia, o caminho é a resignação”. Para estimular a permanência, as tarefas eram exercidas pelos próprios pacientes e o casamento entre eles era estimulado.
Nasceram 153 bebês dentro do Hospital Colônia Itapuã. Alguns, nunca conheceram os pais. "Foram criados como órfãos de pais vivos", destaca Andrei Soares, coordenador geral de pesquisas, dados e informações da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Ao nascer, os bebês eram separados dos pais e levados até o educandário Amparo Santa Cruz, localizado no bairro Belém Velho, em Porto Alegre, onde passariam suas vidas até completarem a maioridade.
Em 1949, iniciou-se o tratamento com o antibiótico dapsona. Somente a partir da década de 1950 os pacientes tratados poderiam sair do hospital, mas o medo sobre a doença ainda permanecia na sociedade. "No momento que tu tenta buscar estornar este paciente para a família, a família não o quer", afirma Rita. E, assim, acuados pelo preconceito, muitos pacientes retornaram ao hospital para viverem o restante de suas vidas.
O Brasil é o segundo país no mundo com mais casos de hanseníase, atrás apenas da Índia. O preconceito e o estigma invisibilizam a doença. Em 2023, havia 22.773 brasileiros infectados, sendo 71 gaúchos, segundo dados do Ministério da Saúde. A transmissão ocorre pela respiração ao conviver por mais de cinco anos com um doente sem tratamento. No Brasil, o tratamento é gratuito. “A hanseníase tem cura e preconceito também”, destaca Andrei.
Os patrimônios do hospital
O HCI era o único no Rio Grande do Sul que abrigava pacientes com hanseníase. Todas as pessoas diagnosticadas no estado eram levadas até ele para passar o restante de suas vidas isoladas da sociedade. O historiador e pesquisador Everton Quevedo afirma que o hospital é um exemplar importante da trajetória da saúde pública, pois a história da hanseníase no estado está lá. “Essas marcas não podem ser apagadas”, afirma.
O local é o retrato de uma época. Em 2014, o Memorial do hospital, localizado em um antigo prédio do complexo, foi organizado para reunir arquivos e objetos. Pacientes, funcionários e a comunidade de Itapuã, distrito de Viamão, construíram o espaço conjuntamente. Cada um doou o que acreditava ser importante para contar a história do hospital e a sua própria. Rita foi uma das organizadoras do espaço: “Cada objeto que tu tens ali tem uma história de vida associada a quem ali viveu”. Hoje, o espaço está fechado e as histórias isoladas dentro dele.
Os edifícios do complexo são dos anos 1940 e 1950. Parte deles foi construída pelos próprios pacientes. Destaca-se a Igreja Evangélica, a última obra do arquiteto Theodor Wiederspahn, o mesmo que projetou a cervejaria Bopp (hoje Shopping Total) e o Hotel Majestic (hoje Casa de Cultura Mario Quintana), ambos em Porto Alegre. O edifício é o único bem tombado do Hospital Colônia Itapuã, processo que também protege os 600 metros ao redor da igreja. Isso impede que todo o complexo seja derrubado ou descaracterizado. Hoje, porém, a igreja está em ruínas. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), não há previsão para obras de restauração.
O HCI, no entanto, não representa somente uma época. Ele também conta a história de todas as pessoas que foram afetadas direta ou indiretamente pela política isolacionista. Segundo Everton, é importante contar essas histórias para que as trajetórias dessas pessoas não tenham sido em vão. Esses indivíduos foram excluídos da sociedade somente porque estavam doentes.
Para Helena Medeiros, museóloga e pesquisadora, o patrimônio material não significa nada se também não tiver um significado humano. “Se a gente não tratar todas essas histórias como histórias de seres humanos, elas não vão fazer sentido”, diz.
Importância da preservação
A preservação desses espaços é uma das ações de reparação defendidas pelo Movimento de reintegração das pessoas atingidas pela Hanseníase (Morhan). “É o direito à memória”, diz Artur Custódio, assessor do Morhan Nacional. Mas, segundo ele, a preservação de patrimônios históricos ainda é vista como impedimento de desenvolvimento, pois o tombamento proíbe a destruição dos bens culturais, colocando-os sob supervisão do Estado. “Parte da saúde do ser humano é a cultura”, ressalta Helena sobre a importância da conservação de espaços de memória.
O patrimônio do HCI conta histórias e recupera memórias. “Esse patrimônio nos lembra quem somos. Muito mais no presente do que propriamente no passado”, explica Everton. Não preservar significa perder as referências do passado e, como consequência, esquecer a história e a memória: "A preservação do HCI demonstra o que a sociedade é capaz de fazer com os seus próprios membros", afirma Helena. "A grande questão que dá sentido pra existência dele, que dá sentido pra preservação da história e memória dele são as vidas das pessoas", completa.
Afeto não é apenas um substantivo, de um sentimento de carinho. É também um verbo, uma ação. É o ato de marcar alguém. “Todo patrimônio vai ter sentido a partir do afeto”, diz Helena. "O afeto é a construção da nossa história." A história do hospital confunde-se com a trajetória das pessoas que foram afetadas por ele. Everton observa a preservação do HCI como garantia de respeito à memória desses indivíduos. "São espaços portadores de uma trajetória e de uma memória que precisamos ter, que precisamos manter e que precisamos lembrar em memória das pessoas que sofreram."
Os futuros
Em novembro de 2023, o último paciente foi retirado do hospital e, desde então, o local segue sem uso. “Não existe preservação histórica sem utilização”, diz Artur, que defende que o estado faça projetos de uso e ocupação do espaço. Para Helena, se ele não for transformado em algo utilizável, pode sucumbir ao tempo e ser destruído. “Nada é preservado se não é usado”, afirma. Até o momento da publicação, a Secretaria Estadual de Saúde, que administra o hospital, não atendeu ao pedido de informações da reportagem sobre a utilização futura do complexo.
Para investigar as questões patrimoniais e de memória do Hospital Colônia Itapuã, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) instaurou um procedimento administrativo de acompanhamento de políticas públicas. Em 2022, a historiadora do MPRS, Cíntia Souto, foi enviada ao HCI para realizar uma vistoria sobre os bens do local. “A minha primeira preocupação era: eles vão esvaziar e esse material vai para onde?”, questiona. A resposta para essa pergunta ainda é incerta.
Segundo o Iphae, os bens móveis ainda são mantidos dentro do complexo, mas não há definição sobre o seu destino. “Haverá estudos para a criação de espaço específico para sua salvaguarda”, diz o instituto. Cíntia destaca a possível inviabilidade de conservar todo o hospital, devido a quantidade de recursos necessários, mas ressalta a importância da existência de lugares de memória, para que essa história não seja apagada ou esquecida.
Atualmente, o procedimento administrativo está concentrado na regularização fundiária do HCI, pois a área ocupada pelo hospital é indefinida. Para o MPRS, a regularização é a primeira ação a ser realizada para dar seguimento às discussões sobre o patrimônio do hospital. A identificação e análise das inconsistências territoriais estão sob responsabilidade da Secretaria Estadual de Habitação e Regularização Fundiária.
Em novembro de 2023, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou a inclusão do Hospital Colônia Itapuã nos patrimônios históricos e culturais do estado. Cíntia reconhece a patrimonialização como um movimento importante para dar visibilidade ao local, mas contesta a efetividade da ação. “São medidas declaratórias, não são medidas que asseguram realmente alguma proteção”, diz.
Em âmbito federal, o novo Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência prevê o tombamento de cinco hospitais colônia no Brasil. O de Itapuã está entre eles, segundo Andrei. Ele esclarece que a função da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é elaborar materiais que subsidiem o pedido de tombamento em 2026. Para isso, será contratado um organismo internacional – provavelmente a Unesco – para fazer a produção técnica necessária.
“Como a decisão não é nossa, a gente pode contratar os melhores dos melhores em cada área para fazer um estudo técnico robusto que justifique a ação de tombamento”, diz Andrei. A decisão sobre o tombamento é do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O Hospital Colônia Itapuã, no entanto, está invisível aos olhos do mundo. A distância dos centros urbanos, que em 1940 servia para isolar os pacientes, hoje contribui para a invisibilidade do hospital. “Por ser um local longe é difícil mobilizar pessoas”, afirma Cíntia. A indefinição sobre o seu futuro não está deixando as estruturas mais novas ou conservando-as. O tempo não para. Os edifícios se deterioram, as histórias do hospital se perdem e a memória dos seus pacientes desaparecem. “Preservar o HCI é uma questão de resistência”, reflete Helena.
Edição: Marcelo Ferreira