Rio Grande do Sul

Coluna

Dandaras, soberania popular ou desumanização e fome

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O combate à fome, para ser efetivo e longevo, exigirá a reconstrução de projetos nacionais - MST
No mundo de hoje bilhões de pessoas não têm acesso à alimentação adequada

Em seu último relatório global sobre segurança alimentar e nutricional a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu sua incompetência para lidar com a fome: no mundo de hoje bilhões de pessoas não têm acesso à alimentação adequada. Apenas em 2023, cerca de 735 milhões de pessoas, uma em cada cinco daquelas que vivem no continente africano, passaram fome.

A ONU atribui esta situação a fatalidades como o aquecimento global, as guerras, o desvio de recursos subtraídos de atividades produtivas para mercados especulativos, a degradação dos solos, a escassez e poluição da água e tudo aquilo que estimula o êxodo a migração e a discriminação persecutória aos desvalidos.

Há fundamento nisso. Afinal entre 2015 e 2019, cerca de 40% dos lucros multinacionais gerados em cadeias produtivas indispensáveis às economias nacionais acabaram transferidos para paraísos fiscais. Ali desaparecem, agregados aos lucros das petrolíferas, dos bancos, das indústrias de armamento e de tecnologias de ponta, entre outras que, rigorosamente, vêm contribuindo para a destruição de bens comuns, para a privatização de serviços públicos, para a concentração de riquezas e para a apropriação de territórios. Isto dá base às migrações forçadas, à geração de guetos e à proliferação daquilo que hoje se entende como as modernas zonas de sacrifício.

Atendendo àqueles interesses, o fascismo avança, no Oriente Médio, na América Latina, na Europa e agora também nos EUA. Ontem Trump literalmente assumiu que pretende se apropriar de parte do Norte global. Querendo anexar aos EUA territórios menos afetados pelo calor, manifestou disposição de engolir o Canadá e a Groenlândia. E também disse que vai expulsar “não-americanos”, devolvendo os migrantes às suas regiões de origem.

Há nisso uma sinalização de que as formas abjetas de racismo evoluirão, ampliando a fome a miséria. Por estes e outros motivos se faz urgente discutir suas causas e possibilidades de enfrentamento.

Como limitações de espaço não permitem aqui detalhar esta discussão, vale lembrar que no Brasil os governos do PT  já retiraram este país por duas vezes, do mapa da fome. Na mais recente, 24,4 milhões de pessoas passaram a fazer refeições diárias (a insegurança alimentar severa caiu de 8% para 1,2% dos brasileiros). Apenas em 2023, perto de 8,7 milhões de pessoas saíram da situação de extrema pobreza, cuja proporção se reduziu de 5,9% para 4,4% da população.


Gráfico 1: Insegurança Alimentar no Brasil (2014-2023). Fonte: Mapa da Fome da ONU – O que é, Situação Atual no mundo e Brasil/ Reprodução

 


Tabela 1 - Avaliação de Programas de governo e casos de Insegurança Alimentar Grave e Moderada no Brasil. Fonte : Instituto Fome Zero - Evolução da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Indicadores macroeconômicos, preços de alimentos e perspectivas futuras. / Reprodução

Estes resultados se devem essencialmente à adoção de mecanismos de mercado, com a retomada de políticas compensatórias negligenciadas durante o governo Bolsonaro. Transferências de renda (Bolsa Família e outros), ampliação na oferta de empregos e elevação real no poder de compra do salário mínimo, além de investimentos da ordem de 18% do PIB. Nada de reformas estruturais ou de empoderamento da sociedade.  

Talvez por isso, ao final do segundo ano de governo, enquanto 35% da população percebe o atual governo Lula como ótimo ou bom, outros 34%, o considera ruim ou péssimo. Além disso, ao mesmo tempo em que “o mercado” e o congresso nacional se mantém ativamente empenhados em dificultar a implantação do projeto do governo, continuam sendo descobertos novos planos para assassinar Lula e outras lideranças fundamentais à recuperação de nossa democracia.

Resulta claro que, em não sendo acompanhados por processos de esclarecimento e politização da sociedade, quaisquer avanços obtidos por governos includentes tendem a ser transitórios. Deixando de ser percebidos como conquistas coletivas decorrentes de inflexão política tendente à construção de soberanias, não são defendidos pela sociedade.

Portanto, o combate à fome, para ser efetivo e longevo, exigirá a reconstrução de projetos nacionais apoiados em responsabilidades sociais soberanas, desenhadas em função do respeito aos direitos humanos e, neste sentido, anticapitalistas.

Na sua proposição, a Via Campesina resume esta questão no conceito de soberania alimentar. Trata-se de erradicar a fome através do empoderamento dos povos. A prática demonstra que, controlando os recursos produtivos, as comunidades camponesas tendem a agir de forma respeitosa às culturas alimentares locais, desenvolvendo práticas solidárias, de base agroecológica, coerentes com as particularidades dos ecossistemas e protetivas aos bens comuns da natureza. Em outras palavras, a soberania envolve tomada coletiva de decisões que conectam ensinamentos do passado com conhecimentos do presente, sem perder de vista as necessidades do futuro.

Se trata de mudança radical, que exigirá o envolvimento de mecanismos de comunicação social potencialmente capazes de contribuir para o fortalecimento da consciência e de demandas por um protagonismo social comprometido com a noção de soberania e ao mesmo tempo respeitoso aos direitos humanos e ao metabolismo do ecossistema planetário. Portanto, reclama alianças globais dos povos, em oposição à globalização dos controles impostos pelo capital, contra a vida em si.

Para começar, e trazendo o foco para o Brasil, em 2025 precisaremos reconstruir o desejo e o compromisso de avançar, entre aquelxs que ainda pretendam viver em uma sociedade pautada pela democracia participativa. Para isto, contamos com o indiciamento, julgamento e  punição das lideranças e dos financiadores da intentona de 8 de janeiro. Precisaremos, ainda, do desmascaramento e da execração pública dos criminosos, com o povo na rua dando sustentação ao que resta do governo Lula, de maneira a garantir sua sucessão, em 2026.

Para concluir, e retomando o olhar para a fome no continente africano lembrei da Lucy. Nosso ancestral mais antigo, Lucy carregava o DNA mitocondrial que neste momento está presente em todos os humanos.

Neste sentido, a fome na África, aqui ou em qualquer local e tempo, reflete a normalização de uma prática de abandono aos parentes, falha de caráter horrível, naturalizada em nosso estágio de desumanização.

Indica também a escassez e a impotência de homens e mulheres conscientes de que todos estamos aqui com a missão de agir, em conjunto e de forma soberana, para redução da infelicidade global.

Talvez também por isso se agigante entre nós o princípio da soberania alimentar. Afinal, como extensão do amor e dos cuidados femininos, ele emerge da Marcha Mundial das Mulheres, passa pela Marcha das Margaridas e, incorporando ações da Articulação Nacional de Agroecologia, da Associação Brasileira de Agroecologia, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, das Cozinhas Solidárias, entre outras instâncias, ilumina o fato do protagonismo feminino ser decisivo para a construção de um mundo melhor.

Uma música? Dandaras, filhas de Akotirenes. 

Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo