Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

'As novas gerações não sabem o que é não viver em democracia', adverte Roberta Baggio

Presidenta da Comissão da Verdade da UFRGS diz que o debate sobre a memória tem que chegar na juventude

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A professora de Direito Constitucional da UFRGS Roberta Baggio preside a Comissão da Memória e da Verdade Enrique Serra Padrós - Rafa Dotti/Brasil de Fato

Quarenta professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foram perseguidos, impedidos de lecionar e perderam suas cátedras sob a ditadura civil-militar de 1064. Agora, dez anos após a instalação da Comissão Nacional da Verdade, a UFRGS acaba de implantar órgão similar para fazer uma varredura nas arbitrariedades cometidas no período no âmbito da universidade.

O Brasil de Fato RS conversou com a professora de Direito Constitucional Roberta Baggio, que preside a Comissão da Memória e da Verdade Enrique Serra Padrós. Contrária ao perdão para quem atenta contra o Estado Democrático de Direito, ela afirma, por exemplo, que as consequências da Lei da Anistia de 1979, que deixou criminosos impunes, podem ser verificadas na tentativa de golpe de Estado arquitetada pela cúpula do governo Bolsonaro e no episódio de 8 de janeiro de 2023 em Brasília.

Roberta adverte que o trabalho da comissão que dirige terá que chegar aos jovens, lançando uma ponte entre o passado e o presente.

Brasil de Fato RS: Em dezembro, a UFRGS instalou a Comissão da Memória e da Verdade Enrique Serra Padrós, que iniciará seus trabalhos em 2025. Qual a trajetória dessa iniciativa?

Roberta Baggio: Essa Comissão da Memória e da Verdade é um pleito muito antigo da comunidade universitária. Foi articulada por um grupo de professores há mais de uma década. Esse pleito, então, sempre existiu, e o Ministério Público Federal, no âmbito de uma ação civil, recomendou em 2022 que a UFRGS efetivasse a existência de uma comissão da verdade. Assim então, em dezembro, a reitora Marcia (Barbosa) assinou a portaria designando e instaurando a comissão.

Quais os objetivos dessa comissão, qual seu foco e o que ela deve revelar?

O que ela vai revelar ainda não sei mas queremos que possa reconstruir a dinâmica de perseguições da ditadura na universidade naquele período. Devemos ter duas grandes fontes. Primeiro, que a gente vá atrás das fontes documentais. Algumas já existem. É esse mesmo grupo que trabalhou nessas décadas todas aqui na universidade. Tem vários resultados sobre a perseguição docente, por exemplo. Temos, inclusive, publicações sobre os professores expurgados. E aí, então,tentaremos, a partir dessa documentação e do Arquivo Público Nacional, levantar essas histórias.

As universidades foram um

grande foco desse expurgo

Por outro lado, também vamos contar com sessões públicas de testemunhos de todas as pessoas que quiserem falar. Para contarem as suas histórias que, à época, presenciaram ou ficaram sabendo. Para que possamos juntar essas duas fontes e termos, num relatório final, a descrição não só dos fatos, mas da conjuntura política e das dinâmicas que foram estabelecidas dentro da UFRGS naquele período.

Você falou nos expurgos. O que foram e quantos professores foram expurgados?

Tivemos dois momentos no país que se refletiram na UFRGS, quando professores foram retirados da universidade. Chamamos de expurgo exatamente devido à ideia de que foi uma ´limpeza` que o regime ditatorial fez. As universidades foram um grande foco desse expurgo.

A primeira leva na UFRGS aconteceu em 1964 logo após o golpe. Uma segunda leva aconteceu depois do AI-5, em decorrência do decreto 477, no início de 1969, quando temos mais uma leva de docentes expurgados.

A gente tem 40 professores expurgados. Pode ser que esse numero aumente ou pode ser que fique nos 40.


Estudantes acompanham ato de lançamento da Comissão da Verdade da UFRGS / Foto: Rafa Dotti

O trabalho da comissão vai envolver a comunidade e os estudantes?

A comissão entende que tão importante quanto fazer um relatório que consiga demonstrar o que aconteceu na universidade nesse período é como fazer isso. E esse ´como`, de modo que consigamos envolver a comunidade universitária, sobretudo a juventude, para que, de fato, seja uma comissão da memória, em que se consiga fazer essa ponte entre o passado e o presente.

Ao não enfrentarmos o que aconteceu,

seguimos alimentando esse fantasma

Para que a juventude consiga, primeiro, colocar-se no lugar de quem sofreu essa perseguição, gerar empatia por quem passou por isso. E identificar que isso não é tão distante da sua realidade e que esse perigo é um perigo iminente no nosso país. Que nós, ao não enfrentarmos o que aconteceu, seguimos alimentando esse fantasma e ele segue crescendo.

Então, a ideia é que a gente possa, nessa ponte, responsabilizar a juventude pelo compromisso que ela tem que ter em relação ao próprio regime democrático.

A gente toca, então, na relação entre tudo o que ocorreu durante o regime militar com o que ocorre atualmente no país. Tempo de investigações sobre plano de golpe tramado dentro do aparelho do Estado e que, depois, teve também um momento que envolveu parte da população, que estava em frente aos quartéis, e que terminou naquele 8 de de janeiro de 2023, com a invasão às sedes dos três poderes. Qual a importância de não esquecer e de colocar esse debate para a juventude?

Bem, veja, sou professora de Direito Constitucional. No nosso processo de transição, deixamos de olhar para todos os crimes cometidos, para o próprio processo de usurpação do poder com o golpe de 1964, e não responsabilizamos as pessoas que fizeram isso. E não conseguimos debater de modo mais profundo, ao longo do nosso processo transicional, o que significou o Estado, que deveria proteger as pessoas, interromper o curso das suas vidas. Por um lado, interrompendo as suas carreiras, como aconteceu aqui na UFRGS, mas por outro lado até mesmo exterminando pessoas por fora do devido processo legal e do Estado de direito.

Esses temas estão conectados.

O que aconteceu com o

golpe de 1964 e o golpe recente

A chegada de uma nova Constituição trouxe a possibilidade de um marco constitucional para a retomada da democracia. Mas também trouxe o discurso de que a gente poderia virar a página da nossa história e seguir adiante sem fazer esse enfrentamento. E esse enfrentamento bateu na nossa porta, não é?

Essa ausência dessa tarefa de casa bateu à nossa porta muito recentemente. E aí, bom, a gente vê a tentativa de um golpe de Estado orquestrado explicitamente, dentro das estruturas da presidência da República, do Estado brasileiro, e que culminam com os atos do dia da infâmia, em 8 de janeiro. A gente percebe que o debate sobre o autoritarismo tem que ser feito com as gerações de hoje. Elas não alcançam a totalidade, ou nem sei se seria possível alcançar a totalidade, mas elas não compreendem o que significa não viver em democracia.

Eu mesma sou de uma geração que já nasceu na redemocratização. Nunca vivi a ditadura de perto. Mas o que significa, então,não poder acordar de manhã e viver a sua vida como você decidiu? É disso que se trata. E se não fizermos com que esse debate chegue nas gerações atuais, a nossa democracia só vai se fragilizar cada vez mais.

Esses temas estão conectados. O que aconteceu com o golpe de 1964, as atrocidades cometidas pelo próprio Estado, as perseguições que o Estado ocasionou e o golpe recente. A tentativa de golpe recente é a própria violência, o negacionismo e um discurso autoritário. Eles estão conectados e a nossa democracia, portanto, ela é uma democracia em risco.

Não me espanto que esse discurso (da anistia) tenha voltado.

O que me espanta é que a gente

não consiga barrá-lo de uma vez por todas

Há setores que estão pedindo anistia para os atos antidemocráticos recentes. Sobre a anistia na redemocratização, existe a reflexão de que ela foi o possível naquele momento. O que acha da anistia, tanto no final da ditadura quanto agora?

Anistia é um grande equívoco político. Veja, a anistia se constitui historicamente na América Latina como um instrumento chamado de pacificador. Mas essa pacificação não enfrenta os equívocos cometidos, os crimes. Portanto, a anistia de 1979, especificamente falando da anistia do regime de 1964, é uma auto-anistia. Ela se configurou, se estabeleceu no tempo histórico como uma auto-anistia. A ideia de que quem cometeu crimes não precisa ser responsabilizado por isso.

A anistia, portanto, nos impede de fazer esse enfrentamento, e ela está enraizada historicamente no modo como tratamos as nossas crises políticas. Não me espanto que esse discurso tenha voltado. O que me espanta é que a gente não consiga barrá-lo de uma vez por todas, e não consiga perceber, diante dos últimos fatos, que não tem anistia para criminosos. Que não tem anistia para quem atentou contra o Estado democrático de direito, que é o nosso valor maior, pensando dentro de uma dinâmica de uma sociedade saudável e que consegue politicamente divergir sem exterminar.

O que acontece nas ditaduras é que quem diverge e quem não concorda é exterminado. Não podemos alimentar esse discurso. Portanto, chegou a hora, de uma vez por todas, de dizer 'Não' para essa anistia e para todas as outras que, por ventura, venham a existir no sentido de impedir que enfrentemos o nosso legado autoritário.


Reitora da UFRGS, Marcia Barbosa, durante ato de lançamento da Comissão da Verdade / Foto: Rafa Dotti

O que dizer mais sobre a tarefa da comissão?

Quero frisar que o trabalho da comissão não começa agora. Ela tem inclusive o nome do professor Padrós, que foi um grande protagonista desse processo ao longo de décadas. Portanto, ele e todos os professores e grupos que trabalharam com esse tema na UFRGS, deixam um legado que é um ponto de partida. E é um ponto de partida sólido.

Só poderemos trabalhar com confiança porque esse trabalho anterior já existe. Portanto, quero colocar a responsabilidade que essa comissão tem, o comprometimento público que está fazendo com essa luta que existiu até agora, com a promessa de, daqui a dois anos, entregar um relatório e ter  um caminho de envolvimento da comunidade universitária. Que seja, de fato, um divisor de águas na nossa história.


Edição: Ayrton Centeno