Essa pergunta tem povoado minha cabeça deste 2018. A questão é complexa, reconheço. No entanto, na prática de eleições nas sociedades burguesas, essa possibilidade sempre está colocada. Para os democratas fica a pergunta: apenas seriam justas as eleições que resultam na vitória de candidatos de centro ou de esquerda? E vemos nas eleições a força do grande capital. É certo que o capital manda, no entanto, com o financiamento público, essa diferença se equilibrou um pouco. Mesmo nos EUA, a candidata democrata, Kamala Harris arrecadou valores muito acima do eleito, Donald Trump. O desequilíbrio agora é nas redes sociais com a dinâmica dos algoritmos, sempre em busca de novos cliques. Quanto mais polêmico e perverso, melhor.
Apesar disto tudo, na luta política, culpar o outro é uma demonstração de que se desconhece as verdadeiras causas da derrota. Escolhemos a explicação mais fácil e ponto final. Isso porque, convenhamos, a realidade é sempre muito complexa. Como explicar que mulheres negras de periferia votem em Bolsonaro que, explicitamente, defende a supremacia branca? Como explicar que, majoritariamente, homens latinos declarem votos em Trump que pediu para ser eleito com carta branca para fazer uma repatriação em massa dos imigrantes latinos? Mas antes de condenarmos as eleitoras e eleitores que votam na extrema direita, em tese, contra seus próprios interesses de classe, precisamos tentar entender o porquê destas escolhas.
Em minha concepção de democracia, sempre coube a hipótese de eleição de projetos de direita. Agora me pergunto: será que cabe a eleição de projetos de extrema direita? Esta é a questão de fundo a ser analisada. Em nossas atividades de planejamento participativo, na montagem do Mapa Estratégico, propomos um momento da discussão sobre os valores do grupo. Valor é aquilo que se acredita e que se pratica. Valor sem prática, não é valor. A democracia seguiria sendo um valor se ela condicionasse quais os pensamentos que poderiam ser apresentados e votados pela população?
Lembro, por exemplo, do plebiscito realizado em 1993 para decidir sobre a volta da Monarquia no Brasil. Isso mesmo que você leu. Para avivar a memória das gerações mais antigas e informar as gerações mais novas, após o fim da ditadura foi realizada a Assembleia Nacional Constituinte entre 1987 e 1988. A nova Constituição, nas disposições transitórias, delegou ao povo brasileiro a decisão sobre a forma e o sistema de governo através do voto popular por plebiscito. Para isso, em 21 de abril de 1993, a população brasileira foi convocada a decidir sobre a forma de governo, ou seja, República ou Monarquia, e sobre o sistema de governo, se Presidencialismo ou Parlamentarismo. O voto era facultativo, mesmo assim, compareceram às urnas mais de 74% das eleitoras e eleitores e, por maioria de 66% decidiram pela manutenção da República e por maioria de 55% pela manutenção do sistema Presidencialista.
Vejam que, caso fosse aprovado o retorno da Monarquia, o poder deixaria de ser exercido exclusivamente pelo povo através do voto e retornaria, em grande parte, às mãos da família real, no caso, os Orleans de Bragança. A questão é, neste caso, essa escolha seria antidemocrática?
Para buscar respostas, me recorro ao saudoso filósofo baiano Carlos Nelson Coutinho que ajudou a minha geração e tantas outras a compreender as concepções de Gramsci sobre democracia, para ele, um valor universal e, portanto, estratégico. Em um famoso ensaio publicado (COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal. Ed. Salamandra, SP, 1984) ainda durante a ditatura militar (1979) ele afirmava que:
“É a própria reprodução capitalista, enquanto fenômeno social global, que impõe essa crescente socialização da política, ou seja, a ampliação do número de pessoas e de grupos empenhados politicamente na defesa dos seus interesses específicos.”
E dizia ainda:
“A essa socialização objetiva da participação política deve corresponder, em medida cada vez maior, uma socialização dos meios e dos processos de governar o conjunto da vida social. Nesse sentido, o socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, uma socialização tornada possível pela prévia socialização do trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; ele consiste também numa progressiva socialização dos meios de governar, socialização tornada possível pela crescente participação das massas na vida política, através dos sujeitos políticos coletivos que as vicissitudes da reprodução capitalista — sobretudo na fase monopolista — impõem às várias classes e camadas sociais prejudicadas pela dinâmica privatista dessa reprodução.”
Veja-se que, ao estudar a concepção da democracia como valor estratégico, é possível concluir que a complexidade da vida democrática, mesmo nas sociedades capitalistas, é decorrência direta do processo de centralização monopolista da acumulação capitalista. Quanto mais classes e camadas sociais forem sendo excluídas do acesso as condições básicas de reprodução da vida, mais a participação política se fará presente.
Não há como não relacionar este pensamento aos dias de hoje. Apesar do crescimento do pensamento individualista em nossas sociedades, nunca se discutiu tanta política e nunca tantas pessoas reivindicaram o direito de tomar para si o direito de decidir sobre tudo.
Importante reconhecer que, pela experiência prática das massas, o poder de escolher Trump é o mesmo poder de escolher Sanders. E, apesar da defesa em tese da volta da ditadura, é inimaginável que, neste momento da humanidade, algum governo europeu, asiático ou latino-americano se perpetue sem alguma forma de processo eleitoral.
Retornando a Gramsci, o aprendizado que precisamos exercitar é a famosa guerra de posições, onde, as concepções e valores de uma sociedade socialista, devem ser disputadas em todas as instituições estatais e não estatais. É essa guerra de posições que cria base social consistente capaz de alterar a correlação de forças em favor dos valores socialistas, e não a imposição do socialismo pela força. Questões que já havia me referido em artigo publicado em abril de 2015 sob o título: Gramsci avisa: PT está perdendo a guerra de posições.
Como nos lembra, Denis de Moraes (MORAES, Dênis, Comunicação, Hegemonia e Contra-Hegemonia: as contribuições de Gramsci. DOSSIÊ COMUNICAÇÃO E POLÍTICA. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 54-77, jan.-jun. 2010.55), segundo Gramsci, a hegemonia é obtida e consolidada em embates que comportam não apenas questões vinculadas à estrutura econômica e à organização política, mas envolvem também, no plano ético-cultural, a expressão de saberes, práticas, modos de representação e modelos de autoridade que querem legitimar-se e universalizar-se. Portanto, a hegemonia não deve ser entendida nos limites de uma coerção pura e simples, pois inclui a direção cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a destruição e a superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo.
Dito isso, não me parece correto concluir que a eleição da extrema direita pelo voto popular seja prejudicial a democracia. Pelo contrário. A prática democrática é sempre um exercício positivo porque reafirma o princípio ético de que todo poder emana do povo e cria a possibilidade da reflexão e do embate de projetos, tão necessário para o amadurecimento das massas.
É lógico que não sou ingênuo de pensar que, estando a frente do Estado, um governo de extrema direita não possa tentar corromper a própria democracia, vide Bolsonaro e sua turma. No entanto, nesta hipótese, caberá a luta pelo respeito aos princípios democráticos, assim como fizemos por mais de duas décadas contra a ditadura militar no Brasil que, como sabemos, foi derrotada pela força do povo nas ruas e assim como temos feito contra os arroubos antidemocráticos de alguns militares e seus asseclas.
Finalizando com o mestre Nelson Coutinho:
“Em outras palavras: o socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo; elimina também — ou deve eliminar — a apropriação privada dos mecanismos de dominação e de direção da sociedade como um todo. A superação da alienação econômica é condição necessária, mas não suficiente, para a realização do humanismo socialista: essa realização implica também a superação da alienação política.”
No capitalismo, a eleição muda o síndico, o sistema segue dando as regras. Quando se é de esquerda, vale a pena ser governo para mexer nas estruturas do próprio sistema. O problema não é de gestão do capital e sim, de modelo de vida. E isso nós todas aqui sabemos há décadas. Nossas estratégias devem ser no sentido de acumular forças para fazer as mudanças estruturais. Só a superação do capitalismo pode produzir uma sociedade sustentável, igualitária e democrática. Não há como mudar a vida das pessoas sem mudar o sistema. A questão é essa. A democracia representativa tem se resumido a luta política em processos eleitorais, sem capacidade de mudanças reais na correlação de forças. É preciso criar as bases para esta mudança.
Em relação a isso, fico pensando que, em 1980, vivíamos em plena ditadura militar, a maioria do povo brasileiro não queria saber de política, éramos uma minoria que, nas eleições gerais de 1982, fizemos em todo Brasil apenas 3,5% dos votos para Câmara Federal. Mesmo assim, acreditávamos na possibilidade de mudanças estruturais. Hoje, somos uma das maiores forças de esquerda do mundo, vencemos as eleições presidenciais por cinco vezes, Lula derrotou Bolsonaro com mais de 60 milhões de votos e, apesar disso, a maioria de nós está desesperançada com o povo brasileiro. Me pergunto: a realidade mudou ou fomos nós que mudamos?
* Advogado socioambiental, educador popular, consultor da Usideias, Diretor Executivo do Instituto de Direitos Humanos – IDhES, membro do CAMP – Escola do Bem Viver, consultor da União Europeia (2003-2009), membro do Conselho Internacional do FSM desde 2013.
Edição: Katia Marko