“Todas as mulheres cubanas se alfabetizaram porque há uma coisa muito importante, a educação, para que ninguém nos manipule, engane ou vitimize. Para defender o progresso necessitamos educação”, indica a médica cubana Aleida Guevara. Ela foi uma das palestrantes do IV Encontro Nacional e Feira Camponesa das Mulheres do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), realizado entre os dias 3 a 6 de deste mês, em Salvador (BA).
A filha de Ernesto Che Guevara conversou com o Brasil de Fato RS, juntamente com Vanessa Nicolav, do site De Olho nos Ruralistas, e a integrante mirim do MPA Saira Nátila Moreira Rios. Na ocasião, Aleida enfatizou a importância da educação e da união dos povos para mudar a realidade.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS - Na América Latina, o machismo é um traço marcante. Como é essa situação em Cuba e como se trabalha a questão?
Aleida Guevara - É difícil porque é cultural. Durante séculos fomos educados com essa cultura sexista. Somos filhos de espanhóis e africanos e vocês de africanos e portugueses. O machismo é o mesmo, uma questão muito forte na cultura. E tivemos que lutar contra isso desde o início da revolução. Criou-se a Federação das Mulheres Cubanas para defender o direito das mulheres de aderir ativamente ao processo revolucionário. Foi uma das melhores decisões tomadas por Fidel Castro no início da revolução, embora desde o movimento revolucionário, o exército já contasse com um pelotão de mulheres.
José Martí dizia que todos temos uma fera dentro de nós e a única coisa que impede essa fera de sair é a educação
Uma das companheiras desse pelotão, chamada Teté Puebla (Delsa Esther Puebla Viltre), vive até hoje e é a nossa primeira mulher general do exército. É uma mulher excepcional. Aos poucos, a mulher cubana foi ocupando o lugar que lhe corresponde como formadora da sociedade. Porque, além do mais, a mulher tem algo que ninguém mais tem: é ser a oficina onde se forja a vida. Portanto, quando você decide lutar por ideais, você não está apenas lutando por eles, mas está lutando pelo fruto do seu ventre. Isso te dá uma força extraordinária. Faz com que um processo revolucionário tenha que ter mulheres de forma presente e contínua. Caso contrário, não funciona.
Aqui no Brasil tenho um exemplo que gostaríamos de ter em Cuba, que é o do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em todas as suas mesas diretivas, são 50% mulheres e 50% homens. Como lei. É brilhante. Neste sentido, o MST ainda leva vantagem, mas estamos caminhando, sobretudo na educação das crianças.
Sempre insisto nisso: o fundamental é a educação. Porque, dizia José Martí, todos temos uma fera dentro de nós e a única coisa que impede essa fera de sair é a educação. Portanto, o primeiro passo é educar o nosso povo para que tenha consciência de que o direito da mulher deve ser respeitado. Não é uma questão de ser cuidada. Não. Respeito significa considerá-la igual a você, estar em igualdade de condições.
José Martí também dizia aos meninos cubanos que um menino não pode bater em uma garota nem com uma pétala de rosa. Ah, isso é uma coisa muito bonita. E, além disso, vai se formando um princípio: tu não podes abusar de alguém, não podes bater em alguém. Tens que conversar, entender a pessoa.
Às vezes, a necessidade, a pobreza, o desespero também acarretam violência. Por isso, a mulher tem que ser muito firme em sua posição para dizer "Não! Basta. Em mim ninguém pisa".
A única coisa em que as pessoas acreditam sem tocar são as religiões. O resto precisam sentir
A violência contra as mulheres é um dos temas deste encontro. E o Brasil é o quinto país do mundo em que mais se mata mulheres pelo fato de serem mulheres...
A Argentina também tem um índice muito alto de mulheres que morrem todos os dias nas mãos de um homem. Nenhum homem pode ter o direito de machucar mulher nenhuma. Embora as mulheres, às vezes, possam ser impertinentes - vamos falar a verdade também, porque também tem isso - mas não te dá o direito de bater em ninguém. Ignore, olhe para trás, se quiser, mas não bata, não destrua a vida de alguém porque você acredita que é superior. Não é assim que funciona.
E aí onde entra a educação para as mulheres também saírem desse ciclo de violência...
O problema das mulheres também é serem capazes de serem autossuficientes. É por isso que digo que devemos procurar empregos nos quais as mulheres possam se desenvolver mesmo que não tenham muito nível cultural. Não importa. Você trabalha e contribui para a economia doméstica. Ninguém pode explorá-la, maculá-la. São coisas que temos que mostrar. As pessoas estão cansadas de ouvir coisas e não vê-las.
A única coisa em que as pessoas acreditam sem tocar são as religiões. O resto precisam sentir. Nossos movimentos sociais têm que abordar isso, mostrar do que estamos falando. ‘Bem, vamos fazer um grupo de mulheres protetoras, um grupo de mulheres que cozinham, um grupo de mulheres que costuram, procurar pequenas tarefas fáceis de fazer sem muito estudo`.
O embargo dos Estados Unidos contra Cuba dura mais de seis décadas. Neste momento qual a maior dificuldade que o país vive?
A situação é muito difícil. Ainda ontem, por exemplo, a eletricidade voltou a cair em todo país. porque um dos terminais caiu. E não temos peças de reposição. São velhas. Elas são normalmente fabricadas pelos Estados Unidos. E não nos permitem comprar peças de reposição devido ao bloqueio. Além disso, estão impedindo a chegada dos navios que transportam petróleo para Cuba e que compramos com muito esforço. Penalizam as empresas que nos vendem petróleo, as companhias de navegação que carregam alimentos para nós e outras coisas necessárias à vida. E as pessoas têm medo dos Estados Unidos porque eles têm muito poder econômico e podem prejudicá-las.
O bloqueio tenta fazer um país ceder por doença, por necessidade e isso não é humano em nenhuma parte
Cuba está sofrendo as consequências de um bloqueio criminoso mais forte do que nunca. As empresas que produzem eletricidade param primeiro por falta de peças de reposição mas também por petróleo. Quando não têm petróleo, todo o sistema entra em colapso. Temos tratado por todos os meios comprar petróleo e obter peças sobressalentes. Os russos, por exemplo, ajudaram muito nos últimos meses.
O bloqueio tenta fazer um país ceder por doença, por necessidade e isso não é humano em nenhuma parte. Lutamos todos os dias contra esse bloqueio. Ao mesmo tempo, conhecemos também os nossos verdadeiros amigos que quebram o bloqueio e nos levam petróleo. E que tentam nos ajudar a continuar a desenvolver. Por exemplo, estamos com um projeto para eliminar a eletricidade gerada através do petróleo para obtê-la de forma cada vez mais sustentável. Implica em um esforço tremendo do país porque são os painéis solares, por exemplo. Onde você vai colocá-los? Sobre terras férteis que deixam, muitas delas, de serem utilizadas para a produção agrícola?
Neste momento, o essencial é manter a eletricidade. Em 2030, devemos ter uma grande percentagem da eletricidade do país por conta de painéis solares. Veremos como vamos nos sair. Seria um alívio para a população. E a outra (intenção) é ingressar no BRICS e ter outra relação com o mundo.
Os Estados Unidos, que se supõe ter um certo nível cultural, têm as pessoas mais desinformadas do planeta
Como os cubanos estão vendo a eleição de Donald Trump?
Estamos tranquilos. É o mesmo cachorro com coleira diferente. Não muda muito. A única questão é que ele é louco, e como ele é louco pode ser como (o presidente argentino Javier) Milei na Argentina. De repente, ele dança como um bobo. E as coisas horríveis que ele diz? Deixam você com vontade de dizer: "Como foi que o escolheram?" Trump havia sido penalizado pelas leis e isso não importou.
Se isso chega a passar aqui no Brasil... Lula esteve preso e quanto custou para ele retomar o poder? Supostamente as leis o impediam mas a Trump, não. Os Estados Unidos, que se supõe ter um certo nível cultural, tem as pessoas mais desinformadas do planeta.
Além das conquistas nos campos da educação e da saúde, que outras conquistas relevantes tu entendes que a revolução cubana trouxe?
A primeira coisa para Cuba é ser dono do que produz. A terra não se negocia, pertence ao povo cubano. Não há nenhuma empresa de nenhuma parte do mundo que possua algum pedaço de nossas terras. Podem trabalhar nas nossas terras mas sabem que são nossas. Essa é a primeira conquista da revolução. Afinal, tudo que produzimos é nosso, pouco, ruim, bom, mediano. Mas é nosso e então podemos comerciar livremente, sem qualquer tipo de impedimento, e obter lucro para o povo. Assim como você explora o turismo, não?
Estive recentemente no Rio de Janeiro, em Maricá. Vejo com inveja, mas com uma inveja saudável. Aquele hospital do Che Guevara é um sonho (o hospital Dr. Ernesto Che Guevara foi inaugurado em 2020 em Maricá e, hoje, é referência em cirurgias de 15 especialidades). E a companheira que me mostrou o hospital disse "Porque o Che salvou muitas vidas". E, pensei, ela fala de meu pai, do hospital, como se ele fosse um ser vivo. Eles realmente têm isso de verdade. Com respeito ao ser humano, uma qualidade de atendimento extraordinária. Tenho muito orgulho daquele hospital.
Sinto-me realmente muito feliz que, neste país, um município que é rico porque tem petróleo invista seu dinheiro é em benefícios sociais para o seu povo. E é isso que você tem que fazer. Foi isso que sempre tentamos fazer. O que a revolução cubana consegue é que todos os benefícios que possamos obter sejam para as pessoas.
Um povo armado nunca será esmagado e somos a prova disso
Como manter os sonhos, a esperança de um mundo melhor em um contexto capitalista, machista e racista?
É difícil. Mas o importante é não pensar que está sozinho neste mundo. Você tem homens e mulheres por aí que vale a pena conhecer, sentir, como se vê no exemplo de Maricá. Não é um sonho distante, uma coisa imaginada. É realidade. Portanto, sim, podemos mudar. Quando os povos se unem, têm uma força extraordinária. O melhor exemplo que Cuba dá é esse: Não desaparecemos da face da terra por causa da unidade do povo, pela força que esse povo tem.
Dizemos que um povo unido nunca será derrotado. Um povo armado nunca será esmagado e somos a prova disso. Eu sou médica, salvo vidas, vivo para isso, para salvar vidas. Mas tenho boa pontaria, estou treinada para defender palmo a palmo meu território nacional. Todos podemos fazer algo se nos unirmos. A questão é não se sentir sozinho, olhar ao seu redor. Você tem um movimento aqui, ao qual pertenço há muitos anos, o MST que é impressionante pelos sonhos que realiza.
A terra é melhor do que eu e mesmo assim eu piso nela. Mas em mim ninguém pisa
Da primeira vez que vim a São Paulo foi impressionante. Não me deixavam nem abaixar a janela do carro porque havia medo dos assaltos. Fiquei impressionada. Fui a uma cidade próxima de São Paulo (Santos) onde o prefeito (David Capistrano Filho) era filho de um desaparecido político do Partido Comunista Brasileiro. Era do PT e construiu um hospital onde deu o nome do meu pai. E por isso fui inaugurar o hospital. Infelizmente quando se perdeu a prefeitura, também se perdeu o hospital...
Quando fui ao Rio Grande do Sul encontrei a história de uma mulher, Rose, que morreu defendendo um pedaço de terra para dar comida aos filhos. Rose não tinha a minha escolaridade ou a minha ideologia mas era mãe, assim como eu, e defendia o direito à vida. E é isso que lhe deu força. Para mim é um exemplo extraordinário demonstrando que, às vezes, não importa o nível cultural ou a própria ideologia. O que importa é que você perceba que tem o direito de viver com dignidade mas tem que conquistá-lo. Não cai do céu. Tem que ser conquistado através de todos os movimentos sociais.
Qual a importância de encontros como esse realizado pelo MPA e da ação das camponesas que defendem seu território, a água e a floresta?
Bem, antes de mais nada, é muito importante porque nos conhecemos. E do que estava falando: não se sentir isolado, saber que alguém passa por algo parecido. Em segundo lugar, nos conhecemos uns aos outros. E a solidariedade também sai nesse momento, não se rompe. O bonito desses encontros é que surgem soluções específicas. A outra coisa é a solidariedade. É uma das coisas que mais respeito no MST.
As mulheres têm que perceber a importância que temos como seres humanos. A religião influencia muito. Você vê que, na religião católica, ocupamos o último lugar nos livros. Mas sou eu quem dá a vida. Devemos educar as pessoas no sentido de conhecer a força que você tem como mulher e como ser humano. Minha tia me ensinou que a terra é melhor do que eu e mesmo assim eu piso nela. Mas em mim ninguém pisa.
Qual a sua visão da mulher do campo e do campesinato na construção dos processos revolucionários?
A camponesa tem duas funções, uma é dar a vida como todas nós, e a outra é sustentá-la porque produz alimentos para essa vida. A mulher campesina leva em si um peso extraordinário na sociedade. Muitas vezes não se percebe isso.
Em Cuba, quando a revolução triunfou, todas as pessoas puderam estudar nas universidades. Os camponeses não queriam que os seus filhos estudassem engenharia agrícola. Não queriam que fossem ao campo passar trabalho. Queriam que fossem médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, mas não agrônomos. Assim, no início da revolução, 80% da população cubana foi viver na cidade e percebemos que havíamos abandonado o campo. Sem isso, como você vive? Não tem como. Tivemos que voltar, claro, e começamos a trabalhar na melhoria da moradia dos camponeses.
Fui cortar cana uma vez na vida e, a partir daquele momento, beijo o chão por onde passa um canavieiro cubano
Há ainda há muito o que fazer em Cuba. Nos descuidamos muito nesse aspecto, mas trabalhamos nisso, fazendo casas mais confortáveis, criando um videoclube para os jovens, para não migrarem. Bem, buscando soluções que as pessoas voltassem para o campo. Agora, são os camponeses que vivem melhor.
As pessoas da cidade deveriam passar um tempo no campo. Aconteceu comigo quando era estudante de medicina e sempre conto. Fui cortar cana molhada e cana seca e cana queimada uma vez na vida. Um dia na minha vida e, a partir daquele momento, beijo o chão por onde passa um canavieiro cubano. Porque cortar cana-de-açúcar é uma das coisas mais brutais que existe. Mas que nos deu vida durante anos. A cana foi a primeira base para o avanço da revolução. Posso ser médica, mas sem esses canavieiros não teria conseguido estudar toda minha carreira de graça. Nem sonhando.
Minha função social é ser médica mas devo a eles o que sou hoje. É algo que temos que incutir nas novas gerações. José Martí dizia: "Se você tem o privilégio de se educar, você tem o dever de compartilhar essa educação". É uma coisa linda. Quando os meninos que estão na universidade vão trabalhar no campo e percebem quanto custa realmente esse trabalho, têm mais respeito pela vida, pelos companheiros que trabalham na cidade, que trabalham no campo.
A crise climática também impactou, não?
Tratamos por todos os meios fazer agricultura orgânica mas é muito difícil sustentar isso. Pelas coisas que faltam e que não chegam. Mas se quer que a agricultura em Cuba seja o mais orgânica possível. Praticamente não somos mais produtores de açúcar porque retiramos todos os canaviais de monocultura para fazer a rotação (de culturas). Isso afetou a produção de açúcar mas está tudo bem porque estamos defendendo a nossa terra. Não temos muito açúcar agora, mas podemos ter mais alimentos diferentes. Isso é equilíbrio. Mas é preciso garantir que esse equilíbrio respeite a natureza porque, se não, perdermos. O planeta já mostrou que, quando você maltrata, ele reage e reage fortemente.
O negócio seria cuidar dele, protegê-lo. A maior mina de ferro a céu aberto do mundo fica na Amazônia brasileira. Cada centímetro que essa indústria cresce, são árvores ancestrais que deixam de existir. Falam sobre reflorestação, mas como você vai recuperar uma árvore que existe há 100, 200 ou mil anos? Não é possível. O homem pode viver sem ferro, mas não pode viver sem oxigênio.
Se perdemos a Amazônia brasileira, não será só o Brasil mas o mundo que sofrerá. As pessoas têm que estar atentas. Temos que falar e voltar a falar sobre isso. Quando Fidel começou a falar sobre essas coisas, sobre meio ambiente, falaram "Ai, olha, o velho", e disseram um monte de coisas. Fidel estava mais do que claro, tinha ido ao futuro, tinha-o visto e vinha nos contar e nos avisava que se não cuidarmos do planeta deixaremos de existir.
Qual a importância do processo revolucionário na vida das crianças?
Educar é sempre mostrar com o exemplo. Os filhos normalmente imitam os pais. Então, se os pais mostrarem o que fazer, como fazer, os filhos poderão seguir esse caminho muito melhor do que você dizendo: você tem que fazer isso. Se você mostra pelo exemplo, como essa criança deve viver, essa criança vai seguir esse caminho.
A primeira função de um líder não é só a de liderar as massas mas de educar com seu exemplo. A questão é como você mostra as coisas para que as crianças aprendam valores mais importantes, como a honestidade e a solidariedade. Há um pequeno livro que escrevi com um amigo italiano, chamado Che Guevara, Aleida Guevara, los valores que me enseñó mi padre (Che Guevara, Aleida Guevara, os valores que meu pai me ensinou, em tradução livre).
Meu pai não teve tempo de me educar. Foi mesmo minha mãe quem me educou. Mas me educou com o exemplo do meu pai. Conseguiu fazer com que meu pai, mesmo não estando com a gente por muito tempo, fizesse a gente sentir o amor desse homem que amava e respeitava muito a vida.
Edição: Ayrton Centeno