Pela 19ª vez a Embrapa Clima Temperado abriu as portas da Estação Experimental da Cascata (EEC), em Pelotas (RS) para debater, demonstrar e projetar a agroecologia e a sociobiodiversidade como segmento decisivo para o presente e o futuro da humanidade. O tradicional dia de campo da agroecologia foi ampliado e desenvolveu-se entre quarta (4) e sexta (6), mobilizando cerca de 1.500 participantes nos espaços de exposição, feira, oficinas, rodas de conversa, apresentações, seminário e ciranda.
“Nossa avaliação do evento foi muito positiva”, aponta João Carlos Costa Gomes, coordenador técnico da atividade, destacando o olhar consensual entre os presentes para a necessidade de estratégias para a resiliência dos sistemas agroalimentares e enfrentamento das crises climáticas. “A agroecologia vai além do sistema de produção, do manejo correto dos cultivos, ela pretende ser uma estratégia de conexão entre as pessoas e com seus territórios, com o modo de vida, com o saber fazer, com a cultura e com a organização social para melhorar o bem viver”, disse. “A produção de alimentos de qualidade representa uma forma de articulação entre Sociedade e Natureza”.
Costa Gomes apontou que o tema central do evento foi direcionado para a ideia da “recuperação e reconstrução com Ecologia, muito apropriado para a situação que nós vivemos no Rio Grande do Sul recentemente, onde os sistemas biodiversos mostram funcionalidade em oposição aos sistemas de monocultivo, valorizando a biodiversidade de plantas, de fauna, de insetos benéficos, de microrganismos, enfim a valorização da nossa agrobiodiversidade”.
O evento singelamente denominado “Agroecologia 2024” pelos participantes, se tornou ao longo dos anos um referencial para o encontro dos saberes tradicionais dos agricultores familiares e camponeses (representados sobretudo pelos guardiões e guardiãs de sementes) com as instâncias da ciência e da academia (representados por pesquisadores, professores e alunos vinculados a diferentes programas e organizações).
“Acaba sendo mais que um evento anual, mas um espaço ancestral revivido nesses tempos: o encontro das colheitas, das sementes, mudas, o intercâmbio de saberes, arte, tecnologias saudáveis dos povos, o reencontro de amigos que sonham”, aponta a participante Esme Molina, integrante da comunidade Vale Sagrado, da Nación Pachamama. “Nesse sentido o evento promove o fortalecimento das redes que sustentam o próprio sentido da agroecologia”, complementa.
“O evento foi bom, bem organizado, ele é extremamente importante para demarcar o território da Agroecologia no estado do RS e também chancelar as iniciativas da Embrapa neste espaço, de modo especial essa unidade, a Embrapa Clima Temperado, como uma instância de construção e estudo da agroecologia enquanto ciência”, apontou Josuan Schiavon, responsável pela Unidade de Beneficiamento de Sementes Crioulas Gilberto Tuchtenhagen, em Encruzilhada do Sul, vinculada à cooperativa Origem Camponesa.
Políticas públicas voltam através das sementes
Irajá Ferreira Antunes, um dos mais longevos pesquisadores do tema atuantes na EEC, sintetiza a importância dessa relação: “O nosso trabalho aqui, tem início lá com os agricultores e agricultoras, com esses guardiões e guardiãs que trazem até nós saberes milenares acumulados ao longo de gerações, temos uma responsabilidade grande de retornar até eles da mesma maneira”, enfatizou. Junto com os colegas Gilberto Bevilaqua e Eberson Eicholz, Antunes esteve a frente da terceira estação – Sóciobiodiversidade – onde foi realizada a troca de sementes crioulas realizadas com variedades da própria Embrapa e amostras de variedades mantidas pelos guardiões e guardiãs.
A organizadora desta atividade de troca, a pesquisadora Daniela Lopes Leite explicou que foram convidados os agricultores, guardiões de sementes crioulas, para fazer parte da dinâmica de amostragem e troca-troca entre eles de seus materiais. “Nós, da Embrapa, pedimos a eles que deixem uma amostra de cada exemplar apresentado no Troca-Troca para guarda da Empresa, pois essa dinâmica vai fazer com que melhore a biodiversidade entre eles, pois haverá a conservação e multiplicação do material”, falou.
Josuan Schiavon, ressaltou a boa participação de agricultores, reconhecendo a importância das redes de agroecologia que cumprem bem a função de mobilizar essa participação. “Podemos firmar como um momento importante, simbólico, essa retomada de políticas públicas representada pelo ato de assinatura parceria para compra com doação simultânea, entre a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Cooperativa Mista Origem Camponesa, que beneficiará mil famílias de agricultores familiares, indígenas e quilombolas ligadas ao Instituto Cultural Padre Josimo e à Secretaria de Desenvolvimento Rural do RS. Foi aproveitado o momento para realização da entrega simbólica de sementes crioulas de milho e feijão e de ramas de mandioca a um quilombola e um agricultor familiar. Todos os agricultores familiares e camponeses que participaram do dia de campo tiveram a oportunidade de levar consigo ao final do dia um pacote de sementes.
Rogério Neuwald, coordenador de Relacionamento Parlamentar da CONAB, fez um breve relato dos desafios que tem sido enfrentados pela Companhia, apontou conquistas e situou os próximos objetivos a serem construídos, notadamente citando a necessidade de engajamento de todos e todas nas implementação do Programa Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica “para que possamos efetivamente avançar na nossa pauta nas políticas públicas”, citou ainda a constituição do Programa Nacional de Abastecimento Alimentar “que precisa efetivamente ser implantado para fazer com que o alimento saudável chegue mais barato até quem de fato precisa”, e por fim a projeção de ao longo de 2025 promover a implantação de 30 espaços públicos de abastecimento popular de alimentos.
A Agroecologia faz com que ciência e tradição caminhem juntas
Roziéle Lüdke, do grupo Flores(e)Ser Agroecológico, de Paraíso do Sul, aponta a atividade realizada na EEC como “fundamental para a construção do conhecimento agroecológico”. Com um pé na produção – Roziele é camponesa e guardiã de sementes – e outro na academia – é Mestra em Agroecologia –, destaca que a programação representa “um dia em que a Embrapa abre suas portas e coloca à disposição das pessoas as experiências que realiza a partir de sua estrutura ao acesso daqueles que buscam compartilhar experiências agroecológicas nas diferentes estações temáticas”.
No tocante ao tema das sementes, Roziéle ressalta que é tão importante ao agricultor e à agricultora que a Embrapa abra o acesso aos seus bancos de germoplasma, quanto é para a empresa pública que os guardiões e guardiãs de sementes crioulas abram para os pesquisadores o acesso às suas casas de sementes. “A Embrapa está numa ponta, os guardiões e guardiã na outra, e os movimentos sociais e demais organizações fazem essa interlocução, resultando no que aconteceu ali, foi um momento muito rico, que fortaleceu a agroecologia e o campesinato.
Costa Gomes apontou como destaque na programação a valorização da agrobiodiversidade e a importância deste elemento para a recomposição da capacidade de produção de alimentos no RS depois das recentes tragédias ocorridas por conta das mudanças climáticas – e que podem se repetir tanto em nível local quanto em outros territórios: “pela presença de variedades de cultivares desenvolvidas historicamente pelos agricultores e que funcionam melhor em ambientes alterados ou que não foram desenvolvidas com finalidades específica para condições ideais como o melhoramento genético convencional exige, o que os Guardiões de sementes vêm melhorando e preservando são materiais que tem mais resiliência e nós precisamos de resiliência dos sistemas agroalimentares face a às mudanças climáticas.
A valorização dos serviços ecossistêmicos, bem como a produção e distribuição de insumos também foram lembrados dentro do mesmo contexto, “enfim tudo isso que a gente tem que cuidar de uma maneira muito mais intensiva, muito mais amorosa do que vem sendo cuidado nos sistemas intensivos de produção”.
Cisternas garantem água e fomentam organização
Uma novidade apresentada durante a programação do Agroecologia 2024 na EEC em Pelotas foi a implantação pelo Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ) e Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) de uma cisterna de captação da água da chuva. Tecnologia social de acesso a água bastante comum no Nordeste brasileiro, o programa Cisternas do Governo Federal vem sendo implanta com sucesso pelo ICPJ na região Sul do RS em parceria com consórcios intermunicipais nos territórios onde á dificuldade de acesso à água potável e a incidência de períodos prolongados de estiagem.
Conforme destacou Frei Sérgio Görgen, dirigente do ICPJ, já foram construídas mais da metade das 500 unidades previstas e as ações seguem a pleno vapor com duas equipes atuando junto aos consórcios do Extremo Sul (contemplado com 200 unidades) e da Bacia do Rio Jaguarão (contemplado com 300 unidades). As equipes foram capacitadas pelo próprio iCPJ, utilizando mão de obra local, fomentando ainda a participação dos municípios e famílias beneficiárias nas ações de construção e orientação pedagógica para o uso correto da água.
Darlan Gutiérres, técnico vinculado ao ICPJ e responsável pela organização de uma das equipes, explica que “no contexto atual, das mudanças climáticas, precisamos saber que existem possibilidades, tecnologias que de forma organizada podemos alcançar”. O que as equipes tem presenciado nos territórios onde as primeiras unidades já foram entregues é motivador: “A cisterna transforma a vida dos camponeses, que tanto carecem de água, em pleno século XXI não é mais admissível que as famílias continuem sendo abastecidas com caminhão pipa”.
Na apresentação da estrutura, instalada ao lado da unidade administrativa da EEC, os presentes puderam interagir com as equipes de construção, fazer perguntas e obter esclarecimentos tanto do processo construtivo quanto da utilização da tecnologia. “Os resultados tem sido muito positivos, por trás de tudo isso tem muito trabalho, muita dedicação, muito empenho para que a coisa aconteça. Além de implementar uma política pública, a gente aproveita para conversar com o povo, dialogar com as pessoas, para avançar na compreensão das dificuldades que temos no campo e na organização para a superação destas dificuldades. A cisterna é um instrumento revolucionário, é política pública que leva água, leva saúde, vida e esperança”, completou Gutierres.
Seminário lança bases para uma “rede das redes”
No terceiro dia de programação representantes das diferentes organizações participantes do evento reuniram-se para debater os rumos da Agroecologia a partir da perspectiva da formação de redes, avaliar o apoio das agências públicas no fortalecimento destas redes e e a proposição de um calendário norteador para eventos e ações dos participantes ao longo do ano de 2025 de modo que possam se fortalecer e não concorrer entre si.
“Nossa maior fortaleza são as parcerias que nos apoiam”, afirmou Costa Gomes, utilizando a própria Embrapa Clima Temperado como exemplo e relembrando como foi importante a estrutura ter sido “abraçada” por inúmeros parceiros quando esteve sob ataque.
“Nós percebemos nas nossas andanças que existe uma grande possibilidade de fortalecimento das redes a partir do intercâmbio entre elas”, apontou. E a Embrapa – por sua capacidade de interlocução com diferentes atores - pode representar o primeiro ele na corrente para a formação de uma “Rede das Redes”, mostrando que é possível “construir uma agenda comum, um calendário unificado e fortalecer todos os nós dessa rede de modo que como todo ganhe mais resistência”.
Luiza Pigozzi, presidenta da cooperativa camponesa Cooperbio, de Seberi (RS), considerou o espaço de debates do seminário importante por “reunir diferentes sujeitos que já trabalham e estudam agroecologia, visando fortalecer os processos de cada um e construir coletivamente no estado, juntando suas capacidades e incidindo no debate”. Vinda da base do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Pigozzi garantiu que tanto militantes quanto organizações que compõem o movimento “se somam nesse processo, contribuindo com a teoria e a prática do papel do campesinato na promoção da agroecologia para a transição do sistema alimentar”.
Um novo encontro dessa “Rede das Redes” ficou pré-agendado para a data de 14 de março de 2025, em Seberi, véspera da VIII Festa da Semente Crioula e III Feira de Ecosol. Até lá serão intensificadas as conversas e melhor formuladas as diversas propostas que foram apresentadas em Pelotas. Entre os presentes ficou “apalavrado” o compromisso de se fazerem presentes nos eventos, feiras e seminários realizados pelos demais companheiros e companheiras durante o ano.
Avaliação final
Para Costa Gomes, a proposta da agroecologia é o uso de tecnologias mais amigáveis com o meio ambiente. Sintetizando a avaliação a partir do que foi demonstrado nas estações temáticas, deixou em evidência a relação entre a reflexão – vide o tema central do evento “Reconstruindo com Agroecologia” – e a prática demonstrada em cada setor: “Os serviços ambientais são os recursos hídricos, as matas ciliares… contaminar ou desmatar cria condições para os efeitos climáticos. Tecnologias de revegetação, de cuidado com o ambiente, diminuem a possibilidade do aumento desses efeitos. Na agrossociobidiversidade, trabalhamos com variedades crioulas, mais adaptadas às condições de clima, o que contribui para o enfrentamento da mudança climática. Na questão dos insumos, um conjunto de tecnologias que fortalece a saúde da planta ou que aumenta a microbiologia do solo aumenta a biodiversidade no ambiente. E os sistemas biodiversos, com muitas culturas no mesmo espaço, umas protegendo as outras, melhoram a condição ambiental e a presença de microrganismos e de insetos benéficos, fortalecendo a resiliência dos sistemas. Por isso, esse conjunto de estratégias faz da agroecologia um modo de se enfrentar a mudança climática”, explica.
O chefe-geral da unidade local da Embrapa, Waldyr Stumpf Jr., exaltou a necessidade de construir com os próprios agricultores propostas de trabalho, de pesquisa e de políticas públicas que venham atender as reais necessidades do setor. Já o diretor de Pesquisa e Inovação, Clenio Pillon, falou do grande espaço e da oportunidade do evento promover pesquisa e inovação para a Agricultura Familiar. Lembrou dos grandes desafios que a Embrapa tem junto aos agricultores em disponibilizar tecnologias para enfrentar eventos extremos, em propor tecnologias para promover segurança e soberania alimentar.
Edição: Katia Marko