Rio Grande do Sul

DIREITOS HUMANOS

UFRGS instala Comissão de Verdade no Dia Internacional dos Direitos Humanos

Iniciativa vai reunir e disponibilizar registros de violações dos direitos humanos na universidade durante a ditadura

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Evento realizado no Salão de Atos da UFRGS homenageou os mais de 40 professores expurgados pela universidade durante o regime militar - Foto: Divulgação Adufrgs

O Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrados nesta terça-feira (10), foi a data escolhida para a instalação da Comissão da Memória e da Verdade “Enrique Serra Padrós”, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A iniciativa visa reunir, organizar e disponibilizar registros relativos às violações dos direitos humanos ocorridas na universidade entre 1964 e 1988, durante a ditadura militar.

Entre as violações mais emblemáticas estão dois processos de expurgo em que foram aposentados compulsoriamente ou expulsos dezenas de professores, estudantes e técnicos da UFRGS. Ao final dos trabalhos do grupo, será produzido um relatório com a sistematização de todos os materiais e atividades da comissão e será criado um site a fim de hospedar os documentos digitalizados.

Com o Salão de Atos da UFRGS cheio, a cerimônia foi marcada por manifestações do público contra as violações cometidas pela ditadura militar e as recentes tentativas de golpe de Estado. “Sem anistia” foi um dos gritos entoados.

O evento iniciou com a nomeação dos integrantes da comissão. Na sequência, após manifestações da Reitoria, a mesa de depoimentos da cerimônia contou com a participação de Paulo Tomás Fiori, filho do ex-professor expurgado da UFRGS Ernani Maria Fiori, e de Suzana Guerra Albornoz, esposa do ex-professor expurgado da UFRGS Ernildo Stein. Ambos fizeram falas por diversas vezes aplaudidas pelo auditório praticamente lotado.

A "vergonha" dos expurgos da UFRGS

Paulo destacou que a UFRGS “carrega até os dias de hoje a vergonha de ter efetuado um julgamento de expurgo de seus professores e funcionários por comissão designada pelo reitor da época, composta e dirigida pelos próprios colegas professores. Situação única em todo o país”. A que até hoje, nunca houve um pedido formal de desculpas por parte da universidade “perante todos os atingidos por ato tão mesquinho e vergonhoso ao compactuar com aquela face que tantos danos produziu às famílias, aos estudantes e ao país”.


Paulo Tomás Fiori, filho do ex-professor expurgado da UFRGS Ernani Maria Fiori / Foto: Rafa Dotti

Sobre seu pai, que faleceu em 1985, disse que ele e outros intelectuais brasileiros de expressão emergiram “como faróis de resistência intelectual e ética”. “Ernani, sempre profundamente engajado com as questões do tempo e da existência, acreditava que a memória não é apenas uma ferramenta individual, mas um ato coletivo e político. Para ele lembrar é resistir à opressão, pois a ditadura militar, como qualquer regime autoritário, buscava controlar a narrativa histórica.”

Exilados levaram junto "a capacidade de pensar e agir"

Prossegue contando que “era um defensor intransigente da universidade pública, como um espaço privilegiado para o encontro entre memória, história e política” e que “acreditava que o papel da academia era formar cidadãos críticos comprometidos com a transformação social”, com uma educação superior “profundamente conectada com as demandas populares”.

Para ele, o exílio de intelectuais como Ernani e tantos outros representou uma perda para o Brasil. “Ao serem forçados a deixar o país, levaram consigo não apenas o seu conhecimento, mas também a capacidade de pensar e agir no contexto nacional. Essa ausência foi sentida especialmente no campo das Humanidades, onde a reflexão crítica foi substituída por uma educação tecnicista alinhada aos interesses do regime.”

Marcas da repressão e da perseguição

Suzana manifestou sua honra em ver a comissão sendo instalada. Para ela, o maior prejuízo à família foi o profissional. Mas ao longo de seu depoimento, recordou de fatos que demonstram a perseguição e a tortura psicológica do regime militar a Ernildo Stein, que hoje está com 90 anos.

Como quando ambos descobriram que ele estava entre os expurgados da UFRGS, através de notícias no rádio de um táxi, enquanto iam para o aniversário de sua mãe. “Aquilo me foi um susto tão grande que eu passei a noite no Pronto Socorro e perdi uma gravidez. E não foi a única.” Anos depois, quando viajavam para Porto Alegre para fazerem exames, foram tirados “a ponta de fuzil de dentro do ônibus". “O susto foi tanto que eu perdi outra gravidez”, recorda.


No centro, Suzana Guerra Albornoz, esposa do ex-professor expurgado da UFRGS Ernildo Stein / Foto: Rafa Dotti

Com Ernildo impedido de atuar na docência de Filosofia, o jeito foi explorar outras possibilidades. Ele acabou atuando na área do Direito e ela como educadora. Por dois períodos, viveram exilados, o que também impactou na vida escolar dos filhos e, enquanto estavam no Brasil, eram frequentes os interrogatórios que duravam horas ou eram vigiados.

“Essas coisas aconteciam, mas eu não quero acentuar muito as nossas queixas, porque acho que nós somos gratos de que nunca sofremos como muita gente foi torturada até a morte”, afirmou. Em 1974, voltaram de vez para o Brasil. “Aí nos deu tempo de acompanhar e lutar pela anistia e o processo de abertura.”

Concluiu afirmando que enxerga muita capacidade de resistência. Ainda em 2016, após o impeachment sem crime do Congresso Nacional contra a ex-presidenta Dilma Roussef, Suzana disse que afirmava que o golpe não duraria muito tempo. “Nós já estamos com mais experiência e vamos poder resistir”, disse.

Comissões da UFPel e UFRGS têm muito o que trocar

O presidente da Comissão da Verdade da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Carlos Gallo, também integrou a mesa de depoimentos da cerimônia. Saudou a atual gestão da UFRGS pela criação da comissão e recordou com carinho do seu colega Henrique Serra Padroz, professor de História que dá nome à comissão e faleceu em 2021.

“O Henrique plantou uma semente. E essa semente continua, ano após ano, convocando cada uma e cada um de nós para continuar com essa luta e para fazer também esse movimento de memórias da verdade e justiça.”

Carlos falou também da Comissão da Verdade da UFPel, que devido à crise climática teve seu início adiado e começou, de fato, em julho deste ano. A primeira fase é a do mapeamento dos arquivos da universidade, trabalho que ele conta que poderá ser compartilhado com a UFRGS.

“Já temos alguns mapeamentos de documentos que vieram daqui da Reitoria da UFRGS que estão conosco. A gente precisa digitalizar alguns deles. Das comissões de investigação sumária, da perseguição a docentes na Universidade Federal de Pelotas, da perseguição a estudantes e técnicos. Recentemente foi encontrado meio que perdido num arquivo, documentos de estudantes que foram presos no Congresso de Ibiúna”, disse.

"O Estado, que deveria ter nos protegido, expulsou, expurgou, matou"

Nomeada presidenta da Comissão da Memória e da Verdade “Enrique Serra Padrós”, Roberta Baggio lembrou que, há exatos 10 anos, a Comissão Nacional da Verdade entregava ao Brasil o seu relatório final. “Sobre toda a sorte de arbítrios, perseguições políticas e crimes cometidos pela ditadura militar brasileira, que usurpou o poder de um presidente eleito democraticamente em 1964, permanecendo nas entranhas de nosso Estado por mais de 20 anos, com considerável apoio de uma parcela da nossa sociedade civil.”


Carlos Gallo e Roberta Baggio / Foto: Rafa Dotti

Entre as violações de direitos que constam no relatório, estiveram mais de 40 professores da UFRGS expurgados e muitos estudantes e técnicos perseguidos, continua a professora de Direito. “O Estado, que deveria ter nos protegido, expulsou, expurgou, matou, espalhou o medo e impediu o livre desenvolvimento de nossas universidades.”

Roberta também destacou que o trabalho que a comissão vai desempenhar, que tem por trás uma recomendação de 2022 do Ministério Público Federal para a sua criação e também a vontade política da atual Reitoria, tem uma longa jornada. “Esta comunidade acadêmica, há décadas, tem se articulado e reivindicado uma comissão da verdade, muito antes da própria existência da comissão nacional.”

Segundo ela, existiram grupos de trabalho e projetos de ensino, pesquisa e extensão que avançaram em temas como o dos expurgos de docentes e também na retirada dos títulos honoris causas de ditadores. “Não à toa, a Comissão da Verdade da UFRGS, instaurada hoje, leva o nome de um dos protagonistas dessa história, o professor Henrique Serra Padroz”, destacou.

Resgate do compromisso da universidade com a democracia

Em sua manifestação, na mesa de abertura, a reitora da UFRGS, Márcia Barbosa, saudou a instalação de comissão. A iniciativa, para ela, vai “constituir essa história fundamental de identificar todos e todas que foram perseguidos por este momento da ditadura”.

Segundo a reitora, isso é o resgate do compromisso da universidade com a democracia. “Democracia que foi violentada inclusive nesta casa em tempos recentes, quando docentes, estudantes, técnico-administrativos em Educação e terceirizados eram impedidos e impedidas de falar sobre política partidária”, disse, em alusão à Reitoria anterior, que não venceu a eleição, mas foi a nomeada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e teve uma gestão marcada por conflitos com a comunidade acadêmica.

Ressaltando a importância de revelar o passado, lembrou que a vigilância segue necessária nos dias atuais. “Num passado muito recente, num piscar de olhos, perdemos os nossos direitos trabalhistas. Num piscar de olhos, poderíamos ter perdido a democracia nas manifestações golpistas.” E finalizou convidando os presentes ao grito: “Sem anistia”.


Mesa de abertura: Roberta Baggio; reitora Marcia Barbosa; vice-reitor Pedro Costa; procurador regional dos Direitos do Cidadão da Procuradoria da República no RS, Enrico Rodrigues de Freitas / Foto: Rafa Dotti

O vice-reitor, Pedro Costa, disse que a comissão é mais que o compromisso da atual gestão da Reitoria. “Eu acho que ele é um compromisso da universidade enquanto uma autarquia, enquanto uma instituição pública, uma instituição de Estado que gosta de autonomia, graças a uma Constituição cidadã, que foi também o resultado de luta muito árdua desse país, e que a gente tem que lutar para manter a autonomia dessa universidade.”

Ele também lembrou que o trabalho inaugurado conta com passos anteriores. Destacou o livro Os expurgos da UFRGS : memória e história, produzido pelo Coletivo Memória e Luta – UFRGS, do qual é integrante, e lançado em 2021. Também que esse coletivo foi quem iniciou o movimento de “revogar os títulos honoríficos que tinham sido concedidos a ditadores e a violadores de direitos humanos durante a ditadura militar pelo Conselho Universitário”.

A comissão

A comissão nomeada é composta por: Roberta Camineiro Baggio, professora da Faculdade de Direito e coordenadora-geral; Lorena Holzmann, professora aposentada do Departamento de Sociologia do IFCH e vice-coordenadora; Carla Simone Rodeghero, professora do Departamento de História do IFCH; Cristina Carvalho, professora aposentada da Escola de Administração; Dóris Bittencourt Almeida, professora da Faculdade de Educação; Frederico Bartz, técnico-administrativo da Faculdade de Arquitetura; Letícia Wickert Fernandes, graduanda do curso de Arquivologia da Fabico; Maria Conceição Lopes Fontoura, técnica-administrativa da Faculdade de Educação; e Regina Célia Lima Xavier, professora do Departamento de História do IFCH.


Edição: Katia Marko