O Feminismo Camponês e Popular se firma e reafirma nas lutas conjuntas das mulheres e implica na nova relação entre as pessoas e dessas com a natureza. Assim defendeu a segunda mesa de debate do IV Encontro Nacional e Feira Camponesa das Mulheres do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), realizada nesta quarta-feira (4). O encontro, que reuniu mais de mil mulheres prossegue até esta sexta-feira (6), na cidade de Salvador, Bahia. O debate foi conduzido por Noeli Taborda, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), e Maria Kazé, coordenadora do MPA.
A mística da região Sul abriu o dia debate, que destacou a importância da mobilização diante da investida da misoginia, violência, exportação, do sistema patriarcal e capitalista. “Coletivar a luta por terra, território, água, floresta, sementes, agroecologia até que todas estejam livres. A luta é diária, somos poesia, verso, ato e reverso. Somos a diversidade desse campo, desse nosso modo de ser, viver e existir, somos as guardiãs da semente crioula (..). Para mudar a sociedade do jeito que a gente quer, participando sem medo de ser mulher”, entoavam as participantes.
Integrante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Noeli Taborda deu início a sua fala trazendo uma visão geral sobre o Feminismo Camponês e Popular na América Latina. Apresentou uma retrospectiva dos espaços de luta ocupados ao longo dessa trajetória e destacou pontos importantes sobre como podemos construir esse movimento de forma coletiva.
Conforme explicitou Noeli, o Feminismo Camponês e Popular (FCP), tem raízes em uma prática de vida cotidiana das mulheres camponesas, indígenas, negras, que ousaram, organizaram-se e lutaram para construir outras perspectivas de vida e de sociedade. “Nesse processo, a partir da sua mais profunda intenção, podemos encontrar uma proposta alternativa e revolucionária para mudar essa sociedade capitalista, patriarcal e racista para uma sociedade socialista onde todas as pessoas tenham os mesmos direitos.”
De acordo com ela, o FCP nasce dentro da luta do movimento das mulheres caracterizando-se como um instrumental fundamental para emancipar, libertar e tirar as mulheres do processo de opressão. “O feminismo camponês é construído pelas mulheres do campo, das águas, das florestas, da classe trabalhadora. É um feminismo das mulheres, não é um feminismo da burguesia. E é marcado por diferentes processos organizativos e de luta.”
Construção do feminismo
“Construímos feminismo quando fazemos comida, semeamos, cultivamos a agroecologia. E com isso combatemos o capitalismo, no dia a dia”, destacou Noeli. Ao pontuar sobre a importância de ser mulher camponesa, destacou que mais de 90% de produção diversificada é trabalho das mulheres no mundo. “Trabalho realizado por nós. A mística é um elemento muito importante, da cor e beleza à nossa vida.”
Segundo ressaltou, há uma dívida histórica em relação ao reconhecimento e incorporação das lutas de povos indígenas e quilombolas. “Não é tarefa só das mulheres e sim de todas as pessoas que querem construir uma nova sociedade mais justa. É preciso reclamar o tripé de nossas organizações: organizar as mulheres; conscientizar, conquistar mentes e corações, lutar. Só vamos avançar na libertação dos povos e das mulheres se a gente lutar, e essa luta tem que ser coletiva. Construir unidade da classe trabalhadora do campo e a cidade.”
Também lembrou às mais de mil mulheres de todo o Brasil reunidas na plenária que “sair de casa e estar aqui hoje é construir um Feminismo Camponês Popular. Ele está em construção, na luta cotidiana, e somos todas nós.”
‘Na luta de classes ou a gente derruba o capital ou derruba o capital’
Maria Kazé reforçou a importância de construir e multiplicar o movimento nos territórios, com uma percepção que valorize os jeitos de ser e viver camponês. “Esse é um encontro de sonhos: derrubar o capital, a violência, derrubar o patriarcado, fim da opressão, da fome. Esse são os sonhos que nos trouxeram até aqui. Tudo isso só é possível com a derrubada do capital.”
Segundo comentou a coordenadora, o sonho dos capitalistas no Brasil é chegarem a um milhão de super-ricos até 2030. Em 2021 o país tinha 293 mil pessoas com mais de R$ 1 milhão, em 2023 esse número saltou para 413 mil. “Eles estão achando pouco. E quantos milhões de pessoas passando fome no nosso país? Um bocado. Ou a gente derruba eles ou a gente derruba eles. Porque a gente não pode permitir que eles nos derrubem. Se cada um dos cinco homens mais ricos gastasse seis milhões por dia, eles levariam 476 anos para gastar todo seu dinheiro.”
Quem alimenta toda essa riqueza somos nós a troco de muita violência, prosseguiu. Conforme pontuou, quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou a intenção de taxar em um valor de 10% os 100 mil mais ricos do país, algo que beneficiaria mais de 35 milhões de brasileiros e brasileiras, o capital se levantou. “Abriu as garras e começou a ameaçar de toda forma: aumentar o preço dos alimentos em função da pressão dos juros e a alta do dólar. Então a comida pode ficar mais cara, justamente porque é uma resposta do capital não aceitando que o Estado brasileiro taxe a riqueza dos mais ricos em beneficio dos milhões dos mais pobres.”
As mulheres são as mais atingidas quando o capital está em risco
Ainda durante a sua intervenção, a coordenadora pontuou o percurso das mulheres na conquista por direitos, como a luta da Previdência, na questão da reforma agrária, em que, de acordo com ela, levou-se anos para que a propriedade fosse colocada no nome das mulheres. “Somente em 2023 a gente conseguiu que os projetos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) fossem no mínimo 50% de mulheres. A desigualdade de salário continua sendo uma luta. Tudo isso é para ter ciência, a libertação das mulheres será obra de nós próprias”, acrescentou.
Cada vez mais aumenta a opressão das mulheres, prosseguiu Maria. De acordo com ela, quando o capital entra em crise quem é que tem que sofrer mais para entregar trabalhadores e trabalhadoras alimentados, higienizados, cuidados, para ir para o mercado de trabalho ou para ir para roça produzir alimentos? São as mulheres. “A Oxfam lançou uma pesquisa que apontava que em 2020 o capital e os estados economizaram 10,9 trilhões de dólares ou R$ 60 trilhões do trabalho feito pelas mulheres e não remunerado, o trabalho do cuidado que nós temos com toda a sociedade.”
Conforme defendeu a coordenadora, o plano camponês tem que ter centralidade nas mulheres e nas jovens. “Somos fundação, parede e teto, somos o coração desse pavimento e nada dele vai para frente sem as mulheres e sem a juventude.”
O Feminismo Camponês Popular, complementou Maria, incorpora nosso jeito de ser e de viver, com as campanhas como as sementes (Adote uma semente), basta de violência. "A soberania alimentar é norteadora da construção do FCP (..) É preciso que as que aqui estão cheguem em seus territórios e multipliquem encontros como este, nas suas regionais, nos seus estados. Somos mil, podemos fazer mais mil encontros dessas regionais.”
Por fim, reforçou que são as mulheres que fazem o movimento e trazem à tona as suas demandas. “Mas o conjunto das nossas organizações precisam assumir essas demandas, para que caminhemos mais depressa.”
Após o debate, mulheres presente ao evento fizeram intervenções. Também nesta quarta-feira ocorreram as rodas de conversa com temas que impactam a vida das mulheres como educação no campo, enfrentamento à violência contra as mulheres, povo e comunidades tradicionais, entre outros. À noite, além das atrações musicais, aconteceu o o lançamento do livro Questão Agrária no Capitalismo Dependente: Elementos da Questão Social e a Resistência do Campesinato Brasileiro, resultado da tese de doutoramento da autora Letícia Chimini.
Edição: Katia Marko