Carioca radicado no Rio Grande do Sul, Jeferson Tenório venceu o Prêmio Jabuti, em 2021, com seu romance O Avesso da Pele. Gaúcho de Porto Alegre, José Falero nasceu na Lomba do Pinheiro, na periferia da Capital. Sua estreia aconteceu com Os Supridores, onde conta a história de dois repositores de supermercado. Brasil de Fato RS aproveitou a Feira do Livro de Porto Alegre para uma conversa fecunda com a dupla permeada por temas como leitura, racismo, pobreza, machismo e outros.
Confira:
Brasil de Fato RS - Então, José Falero, mais um livro chegando?
José Falero - Menos um livro, se fala. Menos um. A gente vai se desfazendo dos livros que estão dentro da gente. Um já foi, agora falta mais outro, mais outro. Menos um livro dentro de mim que consegui jogar para o mundo.
Os Supridores, teu livro, fala muito do mundo do trabalho a partir da visão de meninos da periferia, mas, para mim, tem profundidade maior do que muitos trabalhos teóricos...
Falero - Pois é, tenho a impressão que as pessoas acham que estamos aptos a falar do nosso livro porque foi a gente que escreveu. Não me sinto assim. Estou aprendendo a falar desse livro novo, mas sobre Os Supridores tenho falado há algum tempo. Então, os leitores vão me ajudando a entender o que eu mesmo fiz.
Em nenhum momento pensei assim conscientemente ´Nossa, vou fazer esse livro dialogar com as questões de trabalho, de precarização do trabalho`. Não pensei nisso. Mas quando faço a escolha de determinados personagens, a galera das camadas populares, das periferias, elas acontecem de maneira espontânea, inclusive de modo a se entrelaçarem com a própria trama. Não foi um plano consciente.
E sobre seu novo livro, Vera, com principalmente personagens mulheres?
Falero - Estou menos apto a falar sobre ele. Estou aprendendo ainda. O que percebi é que, sim, tem mais personagens mulheres do que a maioria das coisas que escrevi. As mulheres ocupam uma posição mais central. Vera, inclusive, que dá nome ao livro, é a personagem principal. Mas, se considerarmos outras coisas que não só as pessoas, diria que o livro gira mais em torno da mentalidade masculina, patriarcal e de como isso oprime as mulheres.
Ia escrevendo e me percebendo pior do que eu pensava. Tem cenas muito pesadas nesse livro
E como foi escrever o livro a partir, enfim, de um corpo masculino?
Falero - Difícil. Espero que as pessoas entendam que não me considero uma exceção por ter escrito esse livro, sabe? Tentar olhar para a masculinidade tóxica de maneira crítica a partir do meu lugar de homem hétero não me faz diferente dos outros homens héteros. Foi um desafio. Primeiro, um desafio estético porque pensar como construir algumas subjetividades femininas de maneira profunda é difícil porque não tenho experiência social de mulher na sociedade.
Além do desafio estético, foi também um desafio no sentido de que, na medida que escrevia, o livro ia me jogando em crise porque acho que todos os homens ou sua maioria tem noção, até certo ponto, de que é opressor enquanto homem. Também tenho certa noção disso. Mas ia escrevendo e me percebendo pior do que eu pensava. Tem cenas muito pesadas nesse livro. Às vezes, pensei assim ´Cara, mas eu já fiz isso, já pensei isso`. Foi um troço de autodescoberta também, de se perceber pior do que pensava.
Tenório, teu novo livro De onde eles vêm não traz um tema simples. Como foi escrever sobre algo que você viveu também, a questão das cotas? De ser um dos primeiros negros a ingressar na UFRGS?
Jeferson Tenório - Concordo com o Falero quanto à dificuldade de falar do livro novo. E mesmo quando vou falar do Avesso da Pele, ainda aprendo com os leitores, a crítica, alunos, professores. E com De onde eles vêm, também estou aprendendo a falar sobre ele, justamente porque o livro acaba se completando no leitor. A gente escreve e depois é que o livro, de fato, começa a ganhar vida.
No mundo em que vivemos, as pessoas precisam que o livro tenha algum tema definido para que consigam entendê-lo até como mercadoria. No sentido em que o livro do Falero é sobre masculinidade tóxica e o livro do Jefferson é sobre cotas. Tem essa síntese para que ele chegue mais fácil nas pessoas.
Mas, tanto no livro do Falero quanto no meu, existem muitas chaves de entrada. De onde eles vêm se passa no período de implantação das cotas. São personagens negros que entraram pelo novo sistema. É a jornada desses primeiros cotistas. Mas o livro aborda outras questões que têm a ver com a formação de leitores, com a relação familiar, com o que seria uma ancestralidade. Trata ainda das questões educacionais no ambiente acadêmico. Ou seja, o mundo do trabalho também entra. O trabalho como impedimento para que as pessoas da periferia consigam estudar.
São temas que incomodam uma sociedade acostumada a subalternizar pessoas negras
Vocês dois trabalham na literatura com um mundo que a sociedade, digamos, burguesa não quer muito enxergar, mas que é obrigada a enxergar. Trazem essa visão como homens negros e do lugar de onde vocês vêm. E, ao mesmo tempo, os livros de vocês têm uma aceitação grande. Como se avalia isso?
Tenório - Talvez o que você chama de burguesia possamos colocar como branquitude, no sentido mais amplo. E branquitude não são pessoas brancas somente, mas uma estrutura social que não quer abordar determinados assuntos por vários motivos. O primeiro é o medo da perda do privilégio, depois o medo de uma revolta. Agora, com a questão do trabalho, dessa jornada de 6 x 1 que está em debate, também há um pouco desse medo. Os livros que temos escrito, como Os Supridores, do Falero, tocam nesse ponto de modo muito incisivo. No mundo do trabalho para quem tem uma jornada exaustiva e um trabalho muitas vezes precarizado. São temas que incomodam uma sociedade acostumada a subalternizar pessoas negras, a subalternizar pessoas de determinada classe social. Nos últimos anos, temos visto uma demanda grande por outras narrativas que, por acaso, são as nossas.
Quinze anos atrás, seria impensável livros como o meu, o do Falero, o da Eliane Alves Cruz, o da própria Conceição (Evaristo), fossem lidos como hoje. Alguma coisa mudou ou está mudando. E a mudança também tem efeitos colaterais, não é, Falero?
O contexto não dialoga com a sua vida, tipo o cara vai para Paris e conhece um novo amor. Poxa, quem é que vive isso?
Falero - Exatamente. Essa demanda por outras histórias é gigantesca. E se manifesta de maneira diferente em diferentes momentos históricos. Antes da literatura se tornar mais diversa, como tem se tornado, isso se manifestava com as pessoas simplesmente não lendo. Não lendo, está ligado? Em um país de 200 milhões de pessoas tem muita gente que não é aproximada ao livro em nenhum momento da vida. Principalmente nas periferias. Mas muitos fizeram essa tentativa: ´Poxa, dizem que é legal, vou ver`. Aí você abre o troço. Desde a capa não tem nenhum diálogo com a sua bagagem cultural. A linguagem não tem nada a ver. O contexto, as coisas, as circunstâncias não dialogam com a sua vida. É aquilo que a gente está cansado de dizer, tipo o cara que viaja para Paris, vai lá e conhece um novo amor. Poxa, quem é que vive isso?
As pessoas sentiam falta de se enxergar também nessa perspectiva do conteúdo. Das temáticas, mas também na forma, em como é elaborada a proposta estética do livro, que é, a meu ver, a mudança que tem acontecido. Eu e o Jefferson temos uma galera, muita gente que está tornando a literatura mais diversa nos últimos tempos, tem feito esse movimento. E aí é curioso porque o desconforto da galera hegemônica se dá em muitos níveis. Tem um que acho muito curioso, que é sentir o outro quando entra em contato com um texto meu ou do Jefferson. É uma sensação que já se conhecia, a vida inteira. A gente pegar o livro e pensar ´Vou acompanhar essa história`, mas isso aqui não sou eu, não é a minha família, não é a minha história. Eu sou o outro a partir do momento que entro aqui, sou o outro nessa parada aqui. E agora eles estão experimentando isso.
Tenório - Também tem outra coisa além da gente não se identificar: a violência de impor aquele modo de vida, aquele modo de linguagem, aquele modo de viver, como se fosse universal. Nossa literatura não é taxada de universal porque não é aceita como universal. É que nem aquelas cenas de duas pessoas negras no cinema que têm uma relação amorosa. Pessoas brancas não se identificam com aquele casal. Parece que tem que aparecer uma pessoa branca para que as pessoas brancas se sintam contempladas. O contrário não acontece. Então, se você tem na tela, vamos pegar o (filme) Titanic, por exemplo, pessoas negras, brancas e todo mundo se identifica com aquele casal branco porque é tido como universal.
Antes de ser escritor, vocês eram ávidos leitores. Hoje, porém, além da falta de acesso aos livros na periferia, as pessoas, de modo geral, inclusive as que tem acesso, não estão lendo porque o celular toma o nosso tempo e a nossa vida. Como despertar realmente, o gosto pela leitura?
Tenório - Na verdade, nós andamos lendo. Talvez tenhamos mudado o modo de ler. No celular, as pessoas estão lendo e escrevendo. É o que fazem nas redes. Não seria, talvez, uma escrita ou uma leitura qualificada ou estética, no sentido literário, mas elas fazem esse exercício. Há uma disputa muito grande pela nossa atenção que aí já é uma outra coisa. Por isso os podcasts fazem sucesso. Eles permitem que você ouça algum programa e, ao mesmo tempo, faça outras coisas, tipo lavar a louça...
O livro te pede um outro tempo, uma mobilização de praticamente todos os teus sentidos. Principalmente dos olhos, que é diferente de quem está escutando quando se pode olhar para outro lugar. O livro não. Você tem que fixar os olhos, blindar os ouvidos, a respiração tem que estar tranquila. Ou seja, precisa entrar num modo de leitura que é muito diferente de quando se está rolando lá a barra das redes sociais.
O que tem que se fazer é, primeiro, tornar o acesso ao livro mais fácil. Tem a ver com preço, com disponibilidade, com mediadores de leitura. Quem é o mediador de leitura? Professores, bibliotecários, livreiros, feiras de livros. Tem que se criar um sistema para que o leitor consiga chegar ao livro. Não que vá deixar o celular de lado, mas poderá mobilizar por mais tempo a atenção que o livro pede.
O livro te pede a mobilização de todos os teus sentidos
Falero - Essa mobilização dos sentidos do livro é o que faz dele tão especial. Uma preocupação que tenho é que quem não tem o hábito da leitura geralmente pensa que é só dar sem receber. Então, ´Não vou poder olhar para todo lado, não vou poder ouvir não sei o quê, vou ter que parar o que estou fazendo, vou ler, mas será que vale a pena?` Não. Mas acontece que esse movimento faz você entrar na parada de uma maneira que filme nenhum consegue, podcast nenhum consegue. Tem uma fruição que só o livro é capaz de proporcionar.
É muito difícil pensar essa problemática, ter uma noção dela como um todo e, muito menos, pensar em saídas, sendo bem franco. Tenho feito um movimento que talvez seja meio egoísta que é perceber que, talvez, eu nem tenha que me preocupar com isso. Tem muita gente qualificada se preocupando. Sou um escritor, sabe? Na real, o sistema do livro é complexo. E, nessa complexidade toda, ocupo um lugar onde sei, mais ou menos, trabalhar. De resto, não consigo apresentar uma solução, uma proposta.
Mas imagino que muita gente que não lia, leu Os Supridores.
Falero - Sim, pode ser. Embora não consiga apresentar uma solução, tem coisas nas quais fico pensando. Tem muita gente lendo nos Kindle da vida. Tem uma rede social de livros, o Wattpad, que ninguém conhece, mas tem milhões de acessos. As pessoas estão lendo ali e não é simplesmente as mensagens das redes sociais. É, inclusive, trabalho estético mesmo, de elaboração literária. Quando chegou esse contexto tecnológico, tinha outros países onde a tradição de ler livro já estava muito bem estabelecida. E aí, a internet também chegou. Então, é diferente o impacto que vai ter ali daquele que terá em um país como o Brasil. Modificar isso me parece difícil. Percebo um ciclo, e assim, falando de maneira bem abstrata, se a gente conseguir quebrar esse ciclo de alguma maneira, ótimo.
Pegando a minha própria experiência social, o livro não era um troço presente. Meu pai não lia, minha mãe não lia, meus (irmãos) mais velhos não liam, meus contemporâneos não liam. Não havia livros. Percebo alguns sintomas que não ajudam a resolver o problema. Tipo assim, não tem livraria na Lomba do Pinheiro (bairro populoso da periferia de Porto Alegre). Tem as bibliotecas comunitárias, um esforço muito nobre que pessoas fazem para formar leitores, mas, cara, não é um bom sintoma não haver uma livraria num espaço de 100 mil habitantes. E tem muita gente que considera que o que tem valor mesmo você tem que pagar. A lógica é essa. Não é um lugar onde se retira o livro de graça. Tem que estar à venda. É um problema que faz parte de outro bem maior porque lá não tem teatro também, não tem cinema, não tem parque, não tem lazer.
Tenório - A análise do Falero é precisa. A França, por exemplo, é um dos países com mais leitores, uma média em torno de 20 livros/ano que os franceses leem, enquanto no Brasil são cerca de dois por ano. Só que a França é a França há muito tempo. E o Brasil é o Brasil há quanto tempo? Aqui só no século 20 é que foi começar a ter universidade. A entrada de pessoas negras...
Falero - E só podia branco fazendeiro...
Tenório - Principalmente as cotas para os brancos fazendeiros. Os negros começam a entrar a partir da década de 1970/80, numa educação ainda básica. A entrada mesmo começa a ter nos anos 2000 com as cotas raciais. É muito tempo. É óbvio que vai ser diferente de outros países porque o celular, num primeiro momento, parece ser muito mais atraente do que o livro. O celular pode trazer a sobrevivência de modo muito mais rápido do que o livro. Você posta lá um negócio, daqui a pouco ganha curtida, começa a ganhar dinheiro com isso. São realidades diferentes para pensarmos no livro. E estamos falando de tempo também.
No debate sobre a jornada de 6x1, você, Tenório, disse que lutar por um dia de descanso coloca em xeque essa sociedade escravocrata...
Tenório - Uma herança escravocrata. O debate surgiu num momento importante porque pode ser a porta para avaliarmos a nossa relação com o trabalho em si. Essa ideia do trabalho ser medido pelas horas que você trabalha e não pela entrega. Nos ambientes subalternizados, ficar parado é como se fosse uma falta, uma advertência. Você não tem o direito de ficar parado.
É o negócio de ser dono do tempo da pessoa e ela não pode ficar parada
“O que você está vagabundeando aí?”
Tenório - Exatamente. Um cara que trabalha no supermercado – eu já trabalhei em supermercado – o cara que fica parado não tem mais serviço. Ele já fez o que tinha para fazer. Mas se o teu supervisor vê você parado... É a colonização do seu tempo em tempo integral. E essa colonização começa não quando ele bate o cartão, mas quando se levanta da cama. Tudo o que ele tem que fazer, todo o trajeto que ele faz está mobilizado para que ele vá para o trabalho. Não pode fazer outra coisa. Deveria ser incluído também nessas horas que ele gasta nesse deslocamento que, às vezes, é de duas ou três horas. E as pessoas da periferia moram longe de onde trabalham. Não me sai da cabeça que todo milionário ou bilionário só ficou assim porque oprimiu muitas pessoas. Ninguém fica milionário sem oprimir e explorar outras pessoas.
Falero - Nenhuma riqueza é inocente.
Exatamente.
Falero - Queria comentar um negócio que o Jeferson falou. Teve um dia em que postei que são uma bosta essas batatas fritas pré-congeladas. E que as que se descasca e corta são melhores. Devia ser só assim. Aí apareceram dizendo ´Mas as pessoas iam trabalhar mais. Devia ser menos prático lá na cozinha`. Fiquei pensando assim: ´Velho, só diz uma bobagem dessa quem nunca trabalhou numa cozinha`. Se alguém está trabalhando numa cozinha descascando batata e, de repente, começam a comprar o pré-congelado, você acha que sobrou tempo? Não, vão te botar a limpar banheiro. Alguma coisa você vai ter que fazer. É o negócio de ser dono do tempo da pessoa e ela não pode ficar parada.
O livro A Sociedade do Cansaço (do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han) traz esse debate. Nossa vida – e com o celular mais ainda – está sempre recebendo demandas. Nosso tempo está cada vez mais sendo sugado.
Tenório - Na verdade, a fronteira já foi borrada entre o mundo privado e o mundo do trabalho. Ou seja, é a capitalização da privacidade. O WhatsApp é essa porta que permite que outras pessoas entrem em contato com você em qualquer momento. E você trabalha sem se dar conta que está trabalhando. Pior: quando chega o final do dia, você tem a impressão de que não fez nada. É quase uma naturalização dessa exploração do trabalho na vida privada. É uma tática, uma sofisticação da exploração. Que é a exploração de si mesmo, o que o Byung-Chul Han fala em A Sociedade do Cansaço. Você se auto explora. Já não é mais seu chefe que está dizendo para fazer. É você mesmo que te impõe essas metas. Te põe nesse lugar de produzir cada vez mais. E nunca é suficiente.
Tudo aquilo que é nebuloso, meio estranho, o capitalismo dá um jeito de codificar para conseguir ter controle
Falero - Será que é uma sofisticação? Tanto para a uberização como para essas pessoas que trabalham remotamente, que mexem muito com o WhatsApp. Sabe quando surge um troço novo e, por um tempo, é meio terra sem lei? Mas dá um jeito, dá um tempo, pelo menos essa é a minha esperança, que se regulamente as paradas. Lembro quando surgiram as redes sociais. Tinha uma galera bombando com as músicas e os perfis de stand-up que faziam em casa. Naquele momento, era meio terra sem lei. Essas pessoas ficaram milionárias fazendo música de maneira caseira, às vezes. Só que, rapidamente, a indústria controlou essa parada. Hoje em dia, você não consegue mais. Foi uma janela de tempo. Não tinha ninguém controlando. Fico me perguntando se esse contexto não é temporário. Por enquanto, essas empresas estão abusando dessa janela que se abriu. Então, fazemos as pessoas trabalharem no WhatsApp, gravando um vídeo aqui, outro ali, a uberização, essas paradas todas, mas que, em algum momento, vai se regulamentar. Ou não? Não tem essa perspectiva?
Com a inteligência artificial vindo aí?
Tenório - O capitalismo precisa das coisas bem decodificadas. Tudo aquilo que é muito nebuloso, que é meio estranho, o capitalismo dá um jeito de codificar, colonizar, identificar, nomear, para que, aí sim, conseguir ter controle. Enfim, é o que acontece com nossos livros. Como os nossos livros têm muitas camadas de subjetividade, como é que vendo isso? Vendo como um livro de cotas e um livro de masculinidade tóxica. Tem uma codificação muito rápida para você...
Na questão dessa auto exploração, daqui para a frente, a tendência é que isso piore. Não consigo ver melhora. Cada vez tem menos pessoas com carteira assinada. Há uma ideia errada de empreendedor, aquele que vai empreender alguma coisa. Mas vai empreender desde que tenha condições. Que trabalhador tem condições de fazer isso? ´Vou tentar isso aqui, mas se não der certo, eu volto`.
E a desigualdade está crescendo...
Falero - Teve uma época em que eu queria ser um bom funcionário. Acreditava em algo que já era falácia desde aquela época, tipo eu vou e daí viro chefe, daí viro sócio em algum momento, vou crescer aqui dentro. Então, eu trabalhava - imagina, olha a ingenuidade – abastecendo os corredores de bebidas. Lembro de um dia em que me puxei muito, deixei tudo, poxa, muito cheio. Todo o meu trabalho tinha sido feito. E aí fiquei contemplando aquilo. Sabe qual foi o meu prêmio? Tinha um cara que era preguiçoso, no corredor do lado, e o dele estava com todo o trabalho por fazer. Aí tive que ajudar ele. ´Acabou o teu aqui, vai lá.`
Nada mais dialoga tanto com essa herança escravocrata quanto as trabalhadoras domésticas
Tenório - Ou seja, não tem escapatória. Teu tempo está para ser feito naquelas horas, tua mão de obra. É uma herança escravocrata. Esse sujeito está sendo pago para não ficar parado. Não está sendo pago para produzir coisas. Mesmo se você não fosse ajudar, eles iam inventar alguma coisa. Conta quantas garrafas tem aqui, faz um relatório, não sei o que. É por isso que gosto tanto daquele livro do Bartleby (personagem do livro Bartleby, o escrivão, do escritor norte-americano Herman Melville), o Prefiro Não Fazer. Quando ele prefere não mais acatar as ordens do patrão. O mundo do trabalho seria esse Prefiro Não Fazer. Bartleby não oferece nenhuma solução, mas é um protesto contra esse mundo opressor do trabalho.
Falero - Tem uma história real – está no meu livro de crônicas – que tem muito isso. A gente foi trabalhar em um lugar que tinha que destruir uma casa. E estava destruindo os tijolos com martelinho. Aí o cara explicou: ´Beleza, amanhã vai vir a máquina para terminar de demolir`. E eu: ‘Não, tu não fez a gente ficar aqui com o martelinho?’ E ele: ‘Não, mas é que não tinha o que fazer’.
Ele botou a gente o dia inteiro martelando a casa e, no outro dia, vinha uma máquina para demolir. É uma coisa absurda. Mas é exatamente essa a mentalidade. Também tem as mulheres que... Nada mais dialoga tanto com essa herança escravocrata quanto as trabalhadoras domésticas. É uma coisa que nem existe em outros lugares. Países de classe média, tipo Portugal, você não encontra isso, as pessoas sabem limpar sua casa. Tem muito a ver com a nossa tradição, com a nossa história, que é racista. Lembro da minha mãe, dos trabalhos que ela passou. Tipo assim: ´Vai vir limpar a minha casa amanhã`. Então, eles deixavam o mais sujo de propósito. Ela vem limpar e vou deixar o máximo de louça.
Tenório - Em De onde eles vêm tem uma cena do Joaquim que vai trabalhar num call center. Depois de sofrer muito, porque não se adapta, decide que vai ser um funcionário exemplar. E começa a atender, falar as frases aquelas, nos gerúndios, vou estar atendendo. Até que, escolhido Funcionário do Mês, ganha duas raquetes de frescobol. E aí fica olhando. O que vou fazer com essas raquetes? Ele nem pode ir à praia...
Falero - Vou ter que contar uma outra história porque essa é sensacional. Onde trabalhei, lá no supermercado, era o contrário. Eu estava me esforçando, mas nunca ganhava. Quem ganhava eram os caras que já estavam naquelas... que eram os que me mandavam embora e faltavam, se atrasavam. Quando comecei a sacar isso, fiquei muito puto. Aí, como sempre acontece comigo em todos os trabalhos, chegou o momento em que eu também estava avacalhando. Chegava atrasado. E eles faziam no depósito, no supermercado, tipo um adivinha, que nem de amigo secreto. Tipo, o funcionário do mês é um cara assim, um cara assado. E eu já estava avacalhando. Fizeram essa parada e vi que era comigo. ‘Um cara assim, assado.’ Pensei ´É para mim que vão dar esse bagulho.` E aí: ´É o José e tal.` Falei ´Não quero, obrigado.` Criei um climão. E a gerente: ´Olha, que brincalhão.` Não, eu não quero. Sério, pode ficar aí. ´R$ 30,00 e uma estrelinha no quadro, ah para.` Para incentivar a gente a trabalhar mais.
Era um absurdo. Quando me mandaram embora foi engraçado. Sempre vinha o cara da matriz demitir as pessoas. Só vinha para demitir. Teve um dia em que era para entrar a uma da tarde e cheguei às três. Ele falou: ´Bate o cartão aqui.` Eu não bati e fui para o refeitório. ‘Acho que vão me demitir`, fiquei conversando com os caras lá. Fui bater o cartão lá pelas 18h, fiz ele esperar que já estava de gravata. Tinha vezes que eu passava e ele já tinha afrouxado o nó da gravata, suando. Aí bati o cartão e ele falou ‘O senhor é o José?’ Sou eu mesmo.
Tenório - Esses momentos de resistência são muito bons. Você vai me demitir, mas vai ser quando eu quiser.
Neste ano tivemos uma curadoria de literatura negra na Feira do Livro de Porto Alegre, algo inédito. Houve ainda um evento chamado Preto Sou. Foi uma festa bonita. Como vocês estão vendo esse momento?
Falero - Se fizerem mais vezes isso, vão mandar a Feira lá para a zona Norte, como fizeram com o Carnaval. Antes disso, essa região (central) toda branca de Porto Alegre empretecia. Era a coisa mais linda. Muito foda. Então, é necessário ter bem claro: estamos em território inimigo no Brasil, mas no Rio Grande do Sul de maneira particular. A gente acha lindo, mas tem um movimento que é capaz das piores coisas contra essas medidas. Outra coisa é que a problemática do racismo e da falta de diversidade faz parte de um pacote maior.
Um problema social gigante tão complexo que tem que ser atacado em duas frentes. Uma a longo prazo e uma de maneira mais paliativa para melhorar as coisas agora. O que seria o ideal? O ideal é você ter diversidade, pessoas negras, mulheres, pessoas trans, pessoas gays, nos espaços de poder. Então, os donos das editoras são essas pessoas, os curadores sempre, essa diversidade está presente o tempo todo. Aí você vai ter livros mais diversos, público mais diverso, toda uma gama de diversidade. Mas isso é uma coisa quase utópica de pensar hoje em dia. Então, ter uma curadoria voltada para isso, como foi esse ano, é um bom paliativo. Mas o que queremos, como sociedade diversa, é um problema que se resolve só a longo prazo.
De migalhas da branquitude estamos cansados. Há muitos anos estamos pedindo espaço
Tenório - Não vi nada de inovador. Inclusive, acho que chegou com um delay. Na década de 1990, Ronald Augusto, junto com Oliveira Silveira, fizeram artigos pedindo mais autores negros e negras na Feira. Pulamos para 2012/2013 quando eu e o Ronald fizemos uma série de artigos falando também da ausência de pessoas negras na feira. Em 2020, me tornei o primeiro patrono negro da feira. E, em 2024, tivemos duas feiras. Uma feira de literatura e cultura negra e a feira. Acho essa divisão bastante problemática. No mundo ideal, queremos uma naturalização da presença negra em todos os espaços. Lilian Rocha (curadora de literatura negra) fez um trabalho incrível. Chamou pessoas com grande reconhecimento. Acho que a Lilian tinha que ser, na verdade, a curadora da feira. Que aí é outra coisa. Porque, assim, migalhas – não digo que a programação é uma migalha – mas de migalhas da branquitude estamos cansados.
Há muitos anos estamos pedindo espaço. Então, assim, você colocar autores negros num gueto, que me parece que foi a programação, não me parece a melhor saída. Seria a melhor saída 10 anos atrás quando a questão estava começando. Aí, seria inovador. Agora, em 2024, seria muito melhor que os autores negros e negras fizessem parte da programação como modo geral. Para que as pessoas se acostumassem a ver essas pessoas em todos os lugares, em todas as discussões. Se um autor negro quiser falar sobre qualquer outra coisa que não seja de racismo, negritude, ou se quiser falar também sobre isso, não tem problema. Mas ele precisa ter o direito de escolher o que quer falar e onde quer estar. Fiquei bastante incomodado quando vi a feira e seus cards também. Pessoas brancas na feira e pessoas negras na feira de literatura negra. Olhem as outras feiras, o que está acontecendo. Qual é o tipo de discussão que está sendo feita. Me parece que é uma programação que está sofrendo um delay e que não tem acompanhado as discussões que estamos fazendo no mundo contemporâneo.
Falero - Não tinha percebido que tinha essa segregação, que é terrível. Mas eu tenho a impressão que isso acontece país afora também. Aqui tiveram a capacidade de separar a programação, o que é um absurdo.
Tenório - Demos uma entrevista em que a gente, eu e você, reafirmou justamente isso: a ideia de simplesmente ser escritor. O que não significa que, na nossa fala, não vão vir questões como racismo, preconceito, porque, enfim, faz parte da nossa vivência e parte do que a gente escreve. Mas a obrigatoriedade de te colocarem nesse lugar e que a gente não tenha o direito a escolha, acho que é uma nova forma de violência. A Feira do Livro deveria repensar, na verdade, a programação para justamente naturalizar as pessoas negras. Por que não colocar pessoas negras e brancas para falar sobre negritude? As pessoas brancas também precisam falar sobre isso. Também precisam e sem se colocar naquele lugar, assim, ´Ah, não estou no meu lugar de fala, então não vou dizer nada`. Gente, não é por aí. Não podemos silenciar.
Bom que você traz essa questão. Para fazer diferente na próxima vez. E, Falero, já teve algum homem que leu o seu livro e ficou incomodado?
Falero - Não, ninguém me deu feedback ainda. Poucas pessoas leram e todas mulheres. E eu estou ansioso dessa vez, de maneira especial, porque tenho muito medo de certas coisas que são medos particulares desse trabalho. Por exemplo, eu apresento umas paradas que gostaria muito que as pessoas percebessem, homens também, mas principalmente as mulheres, que eu estou criticando. Tenho medo que se faça uma interpretação tipo ´O mundo é assim e paciência`. Não, é uma crítica.
A resposta que foi dada com O Avesso da Pele foi muito contundente
E você, Tenório?
Tenório - O livro acabou de sair, mas tenho sentido que as pessoas entenderam a proposta. Que não era para falar sobre o processo das cotas, mas justamente fazer uma análise mais complexa da jornada intelectual desses alunos que entram pelo sistema de cotas, a dinâmica na universidade, como funcionam as estruturas de poder na universidade entre professor e aluno.
Não falamos sobre a censura que você sofreu com O Avesso da Pele. Teme sofrer novamente com esse novo livro?
Tenório - Espero que não. E toda vez que acontece a censura acaba reforçando essa ideia autoritária, uma ideia de impedir o acesso a determinados conteúdos. Espero que a gente já tenha amadurecido. A resposta que foi dada com O Avesso da Pele foi muito contundente.
Confira a íntegra da entrevista:
Edição: Ayrton Centeno