O Natal não é a maior festa de final de ano da Holanda. Nem o revéillon. A grande festa, o dia da troca de presentes, o dia das comilanças, dos enfeites, um grande feriado, é 5 de dezembro. É o dia de Sinterklaas, ou São Nicolau*, uma figura da tradição holandesa que representa um velhinho barbudo, até meio parecido com o Papai Noel, que traz presentes às crianças.
Sinterklaas aparece neste dia num barco, vindo da Espanha. É uma longa viagem. Dá quase uma volta na Europa. Mas não chega sozinho. Vem acompanhado dos seus ajudantes chamados Zwarte Pieten (Pedros Pretos na rigorosa tradução), que trazem doces, biscoitinhos típicos no saco e distribuem nas ruas ou nas casas das criançcas. Sinterklaas também tem um cavalo. Um lindo cavalo branco, que desde 1990 ganhou o nome de Amerigo.
A festa é realmente bonita, emocionante e cheia de significados. Por que os Zwarte Pieten são jovens negros? Há um grande movimento na Holanda para acabar com estes personagens pretos ou mudá-los para outra cor – amarelo, azul, rosa, ou qualquer outra. Chega da cor negra. Há queixas dos movimentos antirracistas. E a Holanda tem muitos destes movimentos.
As pessoas negras holandesas são originários do Suriname, da Indonésia, de países do Caribe colonizados pelos holandeses e passaram, ao longo da história, como subservientes, escravos, pessoas de categoria inferior. “Então, chega disso, não é?”, me disse uma amiga branca de Groningen, cidade universitária da Holanda.**
Com o rosto pintado de preto e roupas e brincos em forma de argola, que lembram um servil mouro, o personagem vem alimentando nos últimos anos uma avalanche de discussões. Seriam os Zwarte Pieten uma representação racista ou não? Ou seriam uma tradição sem intenções racistas? Seriam um símbolo da escravidão? Ou apenas felizes ajudantes com aparência de mouro, com o rosto borrado pelo pó das chaminés? Será que influenciariam a opinião das crianças ou colocaria a raça negra numa posição servil? São questões que surgem nesta véspera do festejo.
Na casa da filha desta amiga, por exemplo, no outro lado do país, na cidade de S’Hertogenbosch, ela decidiu comemorar este ano a chegada de Sinterklaas com outro espírito. Nascida na cidade peruana de Huancayo, mas filha de holandeses, hoje uma psiquiatra, resolveu comemorar o dia 5 de dezembro sem os tais de Zwarte Pieten pintados de preto. Vai ser de outra cor.
Polêmica
Na Holanda há muita discussão sobre a festa. Muitos acham que ela tem cunho racista por causa do personagem negro ajudando e sendo um empregado ou escravo do Sinterklaas branco, vestido de vermelho e branco, com uma espetacular barba branca e um cajado. Pessoas negras do país, também holandeses, sentem raiva e nojo desta festa por envolver pretos em posição inferior e indigna pela forma como são apresentados.
Há na Holanda, e me contam de lá, muitas famílias tradicionais que desejam continuar a festa como ela sempre foi – uma tradição que vem desde o século XIV –, sem questionar possíveis e supostas mensagens racistas. Outras pessoas, mais progressistas, querem acabar não com a festa, mas com a maneira que ela vem sendo comemorada, promovendo alterações. A polêmica está no ar. “Quando minha filha era pequena, a festa tinha diferentes cores para os auxiliares de São Nicolau. E é desta forma que ela pretende festejar agora”, diz a minha amiga. “Vai ser uma surpresa para os participantes, inclusive para o seu marido, filho de originários da Indonésia.”
Nicolau foi um bispo na Turquia, na cidade de Mytra, que foi santificado no século IX. Segundo a história era um bispo muito bondoso que ajudava a pobres e desamparados. A história foi se modificando e a lenda foi sendo criada. Hoje, para as crianças, ele é um bispo que vive na Espanha e todo ano pega o seu barco a vapor, em companhia dos seus ajudantes e seu cavalo e vai até a Holanda distribuir presentes para os meninos e meninas bem comportados.
A semelhança com Papai Noel é grande, mas Papai Noel na Holanda é na verdade o Kerstman ou Homem do Natal, aí no dia 25 de dezembro, mas sem o impacto do Sinterklaas. O Natal por lá é geralmente celebrado em família, mas a tradição dos presentes é muito mais forte no dia 5.
Sinterklaas em casa
As famílias também comemoram em casa. Crianças e adultos recebem presentes, que sempre veem acompanhados de pequenos poemas. Os presentes também podem ter surpresas cheias de humor. As chamadas ‘Sinterklaas surprises’.
Muitos mantém a tradição de vestir-se de Sinterklaas e Zwarte Pieten e visitam a casa de amigos para a alegria das crianças. Quando não há o Sinterklaas em pessoa, muitos pedem aos vizinhos para baterem na porta e deixarem o saco com os presentes. Assim como no Natal, existem músicas e comidas tradicionais. Os ingredientes mais usados são canela e especiarias, chocolate, amêndoas e marzipã.
Conforme o blog Bailandesa (uma mistura de baiana com holandesa), depois de muitos anos de discussões e protestos, o bom senso parece estar voltando e ganhando cada vez espaço. “Como um país que quer passar uma imagem de inclusivo e diz-se orgulhar da sua sociedade multicutural, não podemos continuar a impor uma figura que é ofensiva para uma parcela da sociedade”, afirma um dos seus colaboradores Mark Vletter.
“O que vemos é que a figura do Zwarte Pieten vai perdendo terreno nas celebrações e nas prateleiras. Consequentemente, muitas organizações, empresas e prefeituras vão retirando o Zwarte Pieten da sua comunicação ou vão mudando a cor da sua pele, adotando o rosto com manchas de fuligem e até em outras cores.
* O site do Vaticano diz que São Nicolau era filho de pais ricos, mas que ficou órfão ainda bem jovem e empregou toda a sua riqueza em ajudar os pobres e enfermos, tendo sua vida dedicada a auxiliar os necessitados – especialmente jovens e crianças. Nasceu na Grécia no ano de 270 d.C e morreu no ano de 343. A festa na Holanda é dia 5/12, véspera da data da sua morte. Muitos países europeus comemoram também o dia. É santo padroeiro da Rússia, Grécia, Noruega e de Beit Jala em Israel. É o patrono dos guardas-noturnos na Armênia e dos coroinhas na cidade de Bari, na Itália, onde estariam sepultados seus restos.
**Muitos holandeses não gostam de ver seus nomes na Internet. É o caso desta minha amiga que não tem rede social, salvo whattsApp.
*** Eugênio Bortolon é jornalista.
Edição: Vivian Virissimo