Desde que Pablo Iglesias, dirigente espanhol, afirmou em 2022 que o Frente Amplio (FA) tinha muito a ensinar às esquerdas e aos progressistas do mundo, tenho me dedicado a entender o fenômeno dessa organização – que não é exatamente um partido – de maneira menos intuitiva e mais sistemática. O Frente Amplio não se enquadra no que entendemos por frente ampla no Brasil, como uma coligação ou federação partidária. Trata-se de uma organização política que, eleitoralmente, existe como um grande partido político, mas que reúne internamente diferentes partidos, agremiações e entidades da sociedade civil em torno de diretrizes comuns. Assim, para quem compara, a partir da experiência brasileira, o FA é e não é, ao mesmo tempo, um partido. Uma observação: não chamo de “a Frente Ampla”, por não ter traduzido o nome do partido e, com isso, estabeleço diferenças entre o que seria uma frente ampla no ideário brasileiro e o próprio partido uruguaio.
Parte do que os analistas brasileiros consideram como o triunfo de Yamandú Orsi e Carolina Cosse, neste segundo turno das eleições presidenciais, está relacionado ao forte movimento de base do FA, traduzido nos comitês de base, reconhecidos inclusive por Iglesias. Algumas experiências brasileiras, como as do MST, do MTST e de coletivos locais, como o Preta Velha, por exemplo, lembram a lógica dos comitês uruguaios, mas sua presença e extensão são, no Brasil, bastante pontuais – uma diferença fundamental. Essa estrutura é um exemplo claro do que se discute frequentemente na esquerda sobre “retornar às bases”. No entanto, entre outros pontos bem articulados, foi um fator essencial para a disputa de ideias na sociedade uruguaia, como veremos a seguir.
Os comitês de base no Uruguai pouco se assemelham ao que entendemos como “comitês” na política brasileira dos últimos anos. Enquanto aqui os comitês têm caráter predominantemente eleitoral, no Uruguai são espaços autogeridos, reunindo frenteamplistas de diferentes tendências ideológicas para atividades coletivas. É verdade, obviamente, que a maior parte das pessoas que circula no comitê tem uma tendência progressista, mas isso não é mais importante do que a vida comunitária, que, no Uruguai, é muito forte e entranhada no povo. Após a pandemia, por exemplo, os comitês organizaram as “ollas populares” (cozinhas comunitárias), que não surgem de uma lógica caridosa, mas de solidariedade, o que faz com que muitas pessoas do país a utilizem e também lá trabalhem. Assim, pessoas de diferentes orientações políticas participam dessas iniciativas, mesmo que não compartilhem das mesmas ideias.
Uma das causas apontadas pela derrota na majoritária em 2019, de acordo com a militância, foi o abandono desta proximidade, que, já em 2020, estava sendo retomada, especialmente a partir das necessidades que surgiram com a pandemia. Os comitês uruguaios vão além de um auxílio pontual à comunidade. Sua presença é marcante: hoje, há um comitê para cada sete mil habitantes. Além de espaços de assistência, funcionam como centros de convivência. No interior do país, é comum ver pessoas parando em frente aos comitês para tomar mate e conversar. O debate público, nesse contexto, está integrado à vida cotidiana. A política, no caso uruguaio, não é um evento partidário – embora seja – mas está diluída na vida compartilhada, de pessoas comuns. “Voltar às bases”, neste caso, ocorreu sobre uma estrutura que já existia, de modo que não foi necessário propor novos movimentos, coletivos ou arranjos, mas reorganizar e atualizar um padrão já conhecido.
Outra inovação do Frente foi a construção coletiva de seu programa de governo em 2023. Pela primeira vez, houve um esforço para ouvir não apenas os filiados, mas também a população em geral, inclusive aqueles que não votam no FA. Essa escuta permitiu a incorporação de demandas diversas, muitas vezes distantes das propostas tradicionais da esquerda, como ficou evidente no debate do segundo turno entre Yamandú Orsi e Álvaro Delgado. Esse processo demonstrou a disposição do Frente em ser a voz das pessoas mais necessitadas da política institucional. Como sua capilaridade nas comunidades é alta, os dirigentes foram, inúmeras vezes, confrontados e os desejos do povo foram sendo sistematizados. Ter dedicado um ano inteiro à escuta, à humildade da aproximação e de não falar apenas com quem tem simpatia pelo nosso campo foi um exercício fundamental para a vitória. Não à toa, Yamandú foi considerado, em vários veículos, o homem de diálogo entre os dois postulantes, ao contrário de Delgado, “chefe da casa civil”, ou seja, aquele que deveria, em tese, ter boa capacidade política.
Um desafio inicial foi a definição da chapa. Yamandú Orsi e Carolina Cosse, ambos com grande capital político, enfrentaram dificuldades para chegar a um consenso. No entanto, o FA transformou esse aparente revés em um trunfo ao realizar prévias abertas, que incluiu outro dirigente, também, Andrés Lima. Essa dinâmica estendeu a campanha ao longo de 2024, criando oportunidades para experimentação eleitoral e promovendo uma interação mais próxima entre os candidatos e as comunidades. Os candidatos iam juntos a todos os espaços do país: acompanharam debates programáticos e perceberam in loco como o programa que defenderiam foi construído. Esta dinâmica rompeu com a máxima de que divididos nos enfraquecemos, que tanto ouvimos entre as pessoas de nosso campo. Outro ganho importante é que o candidato a candidato que perdesse não seria por motivação de acordos internos ou de coligação ou de força de tendências, mas por motivação totalmente popular. Há, com isso, portanto, o pressuposto de que é a coletividade que pode, enfim, conduzir o Frente e não suas lideranças. Enquanto os demais partidos, de portas fechadas, estavam acordando suas chapas e apareciam como pequenas notas em jornais, Yamandú, Carolina e Lima estavam fazendo campanha nos comitês e nos comícios, criando notícias.
A campanha do FA foi marcada pela intensa mobilização militante. Bandeiraços, arrecadações, comícios e até ações como a organização de transporte para uruguaios residentes no exterior votarem contribuíram para um forte engajamento popular, que não desistiu até o último minuto de campanha. Mais do que um exemplo de cidadania, é um sentimento de comoção social que essas ações de apoiadores causam no coletivo; essa sensação também imprime uma beleza ímpar para a forma com que a militância conduz o processo eleitoral.
Além desses aspectos, há o ponto afetivo que Pepe Mujica marcou no pleito, potencializado por estar em despedida das campanhas eleitorais. Também por sua característica de gostar de estar com as pessoas, Pepe participou de algumas atividades de campanha, sempre com muita doçura e amor. Mujica, porém, não é a figura afetiva mais importante do triunfo frenteamplista, dividindo o posto com o saudoso Tabaré Vázquez, duas vezes presidente. Dois dos slogans mais emblemáticos de Tabaré, no comício de derrota do Frente, em 2019, “no te rindas” e “volveremos” (sobre a eleição de 2024) foram mencionadas inúmeras vezes, inclusive nos jingles de campanha – aliás, os jingles valem ser conferidos por sua beleza e por suas peças publicitárias emocionantes. Se Pepe foi um coadjuvante importante, não podemos dizer que Tabaré foi menor, tanto que a primeira fala de Carolina no discurso de vitória foi o seu nome. Sem menosprezar a importância de Pepe, que é imensa, sobretudo fora do Uruguai, a construção do FA sem Tabaré é totalmente impensada. Então, apesar de não ser errado dizer que Yamandú e Pepe são próximos e que a relação entre eles contribuiu para esta eleição, Pepe, sozinho, não conseguiria eleger um “pupilo”.
A relação do FA com a cultura também merece destaque. O carnaval uruguaio, com sua forte crítica política, funciona como um termômetro do sentimento popular. Lacalle Pou não esteve em nenhum evento relacionado ao carnaval da capital durante todo o seu mandato. Mesmo (duramente) criticados, os frenteamplistas, em contraponto, participam ativamente, reforçando sua conexão com o povo. Essa integração da política à cultura popular contribui para um debate público mais acessível e sensível, que dialoga com as emoções e o imaginário coletivo. A cultura é muito barata e descentralizada: qualquer montevideano tem acesso gratuito à cultura no seu bairro, vendo e ouvindo os mais importantes artistas de seu país, que ajudam a traduzir ao cidadão comum a política local através da música com humor, picardia e emoção.
A campanha de Delgado, representante da continuidade apresentou falhas estratégicas, como a incapacidade de aproveitar a (suposta) popularidade de Lacalle Pou e a falta de articulação com outros partidos de oposição ao FA. Esses pontos também foram explorados durante a campanha. Logicamente, o Uruguai não está alheio ao que se tem chamado de polarização mundial e o discurso de Álvaro Delgado, muitas vezes, conduzia para esse debate. Apesar de a vitória de Yamandú não ter sido folgada, ela foi resultado de ações planejadas e de uma leitura precisa do contexto político e social uruguaio. Se fosse diferente, não teria sido um sucesso. O que temos chamado de “polarização” política me parece um erro conceitual, já que apenas um dos pólos é, de fato, extremista.
Por fim, destaca-se, também, que o debate público no Uruguai mantém um nível de civilidade superior ao dos países vizinhos, favorecido pelo menor tamanho geográfico e pela forte tradição de diálogo. Evidentemente, é muito mais fácil que as instituições funcionem nesse ambiente. O Frente Amplio, com sua capacidade de renovação e proximidade com as bases, reafirmou, durante os últimos cinco anos, seu papel como uma esquerda moderna, comprometida e em constante evolução, sem nunca perder o orgulho nacional uruguaio: siempre bajo perfil.
* Janina Antoniolié professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo