A Universidade Federal do Rio Grande do Sul está completando 90 anos em 2024, mas sua história já tem mais de um século. A linha do tempo da universidade mostra o desafio de contar a sua trajetória no Rio Grande do Sul, desde a fundação das unidades autônomas que a formaram, no final do Século 19, até a consolidação da instituição como uma das melhores do Brasil.
Uma história de muitos avanços científicos, educacionais, culturais e, em 2024, a abertura para novos tempos com a mudança de orientação da Reitoria. A UFRGS também teve comemorações especiais dentro da sua história, como o Novembro Negro, que tem encerramento esta semana. Foram cursos, palestras, apresentações artísticas, musicais e tantas outras atividades que engrandeceram o seu espírito público e as suas ações multirraciais.
Um destes momentos do mês foi a entrega do título de Doutora Honoris Causa à professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, brindado com falas que afirmaram a resistência e a luta do povo negro, e também com a sabedoria da homenageada, cujo discurso, afetivo e inclusivo, convidou toda a comunidade da universidade a se engajar de forma assertiva na luta contra o racismo e a desigualdade.
A reitora Marcia Barbosa destacou a importância do título, "um sinal de completude de carreira e de impacto”. A homenagem foi aprovada pela Resolução nº 132, de 12 de julho de 2024, pela qual o Conselho Universitário aprovou a proposição da Faculdade de Educação de concessão da honraria à Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.
Marcia destacou a importância da presença negra nos espaços de poder e de conhecimento. Em sua visão, o ser e o estar dos negros nesses espaços já é revolucionário. “Mas a professora Petronilha foi além, utilizando um terceiro verbo: fazer. Nos anos 1980, ela entrou nesses espaços e começou a construir uma teia, ensinando que, para aprender, temos de ter raízes e nos manter fiéis a essas raízes; que aprender não é se apropriar do conhecimento do outro, mas é partir do seu próprio conhecimento, da sua história, construindo uma formação”, lembrou.
A reitora acrescentou que a professora Petronilha construiu essa teia de uma forma delicada, sutil e persistente. “Ela nos contaminou com esse vírus da sensibilidade e da sensibilização, e hoje a UFRGS se sente honrada em reconhecer esse caminho que começou aqui nesta casa, quando ela como uma menina de 11 anos simplesmente exerceu o ser e o estar – e isso já foi revolucionário.”
Também aproveitou a oportunidade para convidar a nova Doutora Honoris Causa a contribuir para estabelecer a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade, cuja criação será apreciada pelo Conselho Universitário nas próximas semanas.
No evento, realizado dia 21, a professora Dandara Dorneles, da Faculdade de Educação, ressaltou a condição dos negros no Brasil, lembrando que, em 2023, a cada quatro horas uma pessoa negra foi morta pela polícia. Também apontou o que é ser uma pessoa negra no Rio Grande do Sul, “estado historicamente caracterizado por processos de extermínio e exclusão da população negra", e, finalmente, o que é ser mulher e negra, “em uma região embranquecida, em um país violento, em um mundo hostil, racista, machista, elitista, autodestrutivo, capacitista e excludente”.
Dandara ressaltou os desafios enfrentados por Petronilha ao longo de sua carreira como estudante, docente e pesquisadora na UFRGS e, posteriormente, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo. Conforme a oradora, Petronilha, chamada carinhosamente de Petrô, afro-gaúcha, carrega em sua corporalidade, memória e experiência, vivências suas e dos seus.
Nascida em 1942, na antiga Colônia Africana de Porto Alegre, onde hoje se situa o bairro Rio Branco, Petronilha teve a infância e a juventude marcadas pela influência da mãe, Regina Gonçalves e Silva, professora da rede pública estadual de ensino que, não por acaso, foi a primeira docente negra a receber o título de Professora Emérita do Estado do Rio Grande do Sul em 1988.
A trajetória de Petronilha na UFRGS começou em 1954, depois foi professora em escolas noturnas de bairros populares e em regiões de difícil acesso no RS. Na década de 1970, participou de um estudo do Instituto Internacional de Planejamento da Educação da Unesco, trabalhando com professores de todo o mundo. Ao retornar ao Brasil, assumiu uma função no Gabinete de Coordenação e Planejamento da Secretaria de Educação e Cultura do RS, onde foi responsável pela elaboração do II Plano Estadual de Educação, que orientou as políticas educacionais do estado.
No seu discurso, Petronilha fez uma série de agradecimentos, principalmente ao Movimento Negro de estudantes, professores e técnicos administrativos da Universidade. “Costumo dizer que parte do que penso, organizo, proponho e sou foi construído com pessoas com quem tive a chance de conviver dentro desta instituição”, garantiu.
Nesse sentido, citou a frase “Eu sou porque nós somos”, para dizer que esse pensamento – atribuído ao povo Zulu – revela o sentido de sua vivência e construção em meio à comunidade da UFRGS. “Gostaria que as pessoas que aqui estão se sintam parte não apenas desta instituição, mas também de um projeto de sociedade que estamos, há anos, nos esforçando em construir juntos. Projeto esse que tem fortes raízes nesta universidade e que tem trazido contribuições importantes para outras instituições de ensino”, afirmou.
Ao final da cerimônia, foram chamados ao palco do Salão de Atos os projetos vencedores do edital que selecionou uma série de atividades culturais em alusão ao Dia da Consciência Negra. Apresentações de grupos de dança e música, além da leitura de poemas, marcaram o final da manhã, culminando com o convite para que professores, estudantes, técnicos administrativos e terceirizados negros subissem ao palco para a já tradicional foto UFRGS Negra.
Cursos pela Plataforma Lúmina
Outros grandes momentos do Novembro Negro foram proporcionados pela plataforma Lúmina. Ela proporcionou novos cursos da série formativa antirracista "Descontruindo o racismo na prática: Uniafro*/UFRGS", que tem como objetivos principais promover o letramento racial, o enfrentamento do racismo e o reposicionamento do olhar social da população negra brasileira. Os cursos Diáspora, história, corporeidade e combate ao racismo religioso e Movimento negro brasileiro, mídia e branquitude foram acompanhados pela comunidade por canais interativos da Internet.
O Centro Cultural da UFRGS também realizou atividades como uma apresentação cultural de encerramento da 12ª edição da Semana da África. Trata-se do "Afriká no Sul: Laços da Origem", sarau artístico-cultural com participação de artistas africanos, exposição e compartilhamento de aspectos culturais de países, povos e culturas originárias, com a participação de Ìdòwú Akínrúlí (Nigéria), Loua Pacom Oulai (Costa do Marfim), Kizua Trindade, Ana Muanza Voca, Cristina Bige (Angola) e Deonesa Alberto Mango (Guiné-Bissau).
A Semana da África é realizada na UFRGS desde 2013 pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), com as parcerias do Departamento de Difusão Cultural (DDC) e Centro Cultural e representa a diversidade e interculturalidade que torna a universidade espaço de excelência acadêmica e potência no processo de desenvolvimento Sul-Sul.
Nesta quarta-feira (27), das 16h30 às 18h, dentro da programação do mês, será realizado no miniauditório Sala Luís Otávio Aquino do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS, mais uma edição da série Encontros com a Antropologia, com o professor da Unicamp Mário Augusto Medeiros da Silva.
O palestrante falará sobre o tema "Pensamento Social Brasileiro e Modernidade Negra". Grande referência na área, Mário foi finalista do Prêmio Jabuti em duas ocasiões (2014 e 2020) e atualmente dirige o setor de Publicações da nova gestão da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs (2025-2026). A atividade se insere na parte final do Novembro Negro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Mostra de cinema na Sala Redenção
Nos dias 28 e 29 de novembro, a Sala Redenção recebe a mostra Transatlântidas: a terceira raiz africana. Realizada pelo Instituto Cervantes em parceria com o Festival de Cinema Africano de Tarifa-Tânger (FCAT), a programação apresenta uma seleção de quatro filmes que retratam as realidades das comunidades afrodescendentes da América Latina.
Em um jogo de palavras que mistura o adjetivo "transatlântico" e o lugar mítico de Atlântida, o título da mostra evoca a imagem da ilha como um espaço físico real; mas também como uma realidade metafórica que simboliza os afrodescendentes na América Latina, isolados em seu próprio ambiente.
A programação busca problematizar e refletir sobre esta realidade, a partir de filmes realizados em três países diferentes: Breve miragem de sol, do Brasil; A largada, de Cuba; e Mal de cana e Vale de Santo Domingo, da República Dominicana.
A programação tem entrada franca e é aberta à comunidade em geral. O cinema da UFRGS está localizado no Campus Centro da Universidade, com acesso mais próximo pela Rua Eng. Luiz Englert, 333.
* Uniafro é programa do Ministério da Educação e tem a intenção de contribuir para a superação dos preconceitos e atitudes discriminatórias do racismo por meio da aplicação de práticas pedagógicas qualificadas nesses temas nas escolas de educação básica no Brasil.
Edição: Katia Marko