Nossos passos vêm de longe e é hora de seguir caminhando
O dia 20 de novembro é considerado o Dia da Consciência Negra. Não é, portanto, um dia para que as pessoas negras reflitam sobre o racismo. Elas já vivem a realidade do que isso significa, em todos os ambientes, em todas as dimensões de sua existência. Refletem sobre isso, querendo ou não, todos os dias.
O 20 de novembro é dia de dar maior visibilidade para o fato de que somos um país de pessoas racistas, de que a nossa cultura (capitalista, patriarcal, sexista) funda-se, aproveita-se, alimenta-se do racismo.
Em seu artigo Racismo e Sexismo no Brasil, Lelia Gonzalez trabalha com os conceitos de consciência e memória. A consciência, diz ela, é o lugar do “desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber”. A memória é o “não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade”. Não é difícil perceber a relação com o conceito de inconsciente da psicanálise.
A verdade “que se estrutura como ficção”, tem relação com nossa história pessoal, mas também com as múltiplas relações sociais que nos atravessam e, de algum modo, nos determinam, desde antes mesmo do nosso nascimento.
Lelia escreve que a consciência exclui o que a memória inclui. Na prática, é possível pensar nas situações mais corriqueiras do dia a dia e enxergar ali a expressão do que ela enuncia. Na minha história pessoal, que é a de alguém com pele clara e traços negros, uma mistura tão típica do processo de violência que se costuma chamar miscigenação, o cabelo crespo sempre foi uma questão. Afinal, cabelo liso é geralmente relacionado com a boa aparência e com a beleza. Isso fez com que eu adotasse a prática de alisar e fazer mechas, por pelo menos dez anos, talvez 15. E podia jurar que, conscientemente, fazia uma opção inocente, pelo penteado que mais me agradava. Ao recuperar a memória da infância, porém, o que encontrei foram piadas racistas, comentários violentos, comparações desnecessárias, formas de pentear os cabelos, que causavam dor.
A família costuma ser o primeiro local em que o racismo e o sexismo se reproduzem. Não é por falta de amor, nem pela vontade de ferir. Pelo menos, não sempre. A família é também o lugar em que aprendemos estratégias de sobrevivência.
Para proteger as crianças do que podem os mecanismos de opressão, meninos negros são ensinados, desde cedo, a andar sempre com documentos e, se forem parados pela polícia, não retrucar. Meninas são instruídas a não falar alto, não chamar atenção em ambientes de risco e a temer a violação de seus corpos.
Todas as pessoas, ainda pequenas, aprendem que devem obedecer, ser melhor que o colega na escola, e, de preferência, não exercer sua sexualidade com demasiada liberdade. Isso sem falar na naturalização da prática bizarra de passar a maior parte do tempo trabalhando, pelo salário que permitirá viver. Na escola, aprendem a brincar de fazer compras e de empreender. No trabalho, a obedecer, ser resilientes e gratas.
Os efeitos desse discurso dominante, que começam em casa, mas seguem sendo insistentemente reproduzidos na escola, na pracinha, na igreja, no ambiente de trabalho, ocultam a memória, impondo, como escreve Lelia, o que a “consciência afirma como a verdade”. E essa verdade é branca, masculina, heterossexual e proprietária.
Se os exemplos individuais, familiares, permitem perceber isso, tudo se torna ainda mais nítido quando refletimos sobre questões de abrangência coletiva.
Avanços da lei de cotas
Medidas como a lei de cotas e o protocolo recém-lançado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para julgamento com perspectiva racial, têm propiciado avanços importantes. Posicionam-se corajosamente, em relação a um tema ainda (infelizmente) em disputa. É preciso, portanto, preservá-las, honrá-las, compreender sua função. Mudar os corpos que ocupam os espaços de poder, dar acesso à educação, promover ações de conscientização e estimular uma visão que compreenda o que o racismo significa são medidas com potencial revolucionário.
Há um movimento importante, no meio acadêmico e no sistema de justiça, para visibilizar e enfrentar práticas racistas e sexistas. Muitas pessoas que ocupam postos de poder têm declarado sua simpatia pelo que chamam de pauta racial. Esse engajamento é fundamental.
Atuo no sistema de justiça e de ensino universitário há mais de duas décadas. É lindo ver o que as cotas produzem em termos de diversidade de pensamento, pesquisa, debates no âmbito acadêmico. O sistema de justiça é mais complicado, mas o movimento corajoso, que tem sido capitaneado especialmente por mulheres negras, tem obtido conquistas históricas.
É hora, então, de dar mais um passo. Problematizar exatamente a ocultação da memória, através de condutas que, se por um lado somam na luta por uma sociedade menos violenta contra corpos negros e indígenas, por outro, são também responsáveis pela manutenção e pelo aprofundamento do racismo e do sexismo.
As estruturas sociais que antes mencionei não estimulam apenas práticas do que Grada Kilomba chama racismo cotidiano. Também agem para manter o racismo como uma razão estruturante da sociedade capitalista.
Tudo o que aprendemos na infância e na adolescência nos convoca a performar posturas de adaptação, de aceitação à lógica capitalista. Tendencialmente, nos impede de perceber que justamente aí está o problema. O capitalismo é racista.
Nos dois ambientes, acadêmico e de justiça, esse racismo se insinua de forma muito nítida, na própria manutenção do vestibular como forma de ingresso; da matrícula provisória para cotistas ou da láurea acadêmica. Do mesmo modo, é cotidianamente reforçado por decisões que negam direitos fundamentais, banalizam a despedida ou estimulam conciliação que implica renúncia a direitos.
No campo penal, o número de pessoas negras encarceradas ou mortas pela polícia continua sendo significativamente maior. Mulheres negras, pobres, trans seguem sendo mortas de modo violento e a relação entre política antidrogas, jornadas extenuantes e violência doméstica sequer é posta em questão.
No campo trabalhista, as pessoas negras seguem realizando os trabalhos mais precários. A atividade doméstica remunerada, realizada por uma maioria de mulheres negras, tem um estatuto jurídico inferior àquele previsto na Constituição para o restante da classe trabalhadora. A maioria das pessoas terceirizadas é negra.
Isso nos indica não apenas que as medidas até agora adotadas precisam ser mantidas e aprofundadas. Indica também que é urgente começar a problematizar a presença do racismo lá onde ele parece não estar. Perceber sua relação íntima com o capitalismo e a forma como ele é naturalizado nos diferentes ambientes em que nos movemos ao longo da vida.
A questão racial sempre foi pauta no Brasil
Alguém pode pensar que ainda estamos no início do processo de desvelamento e problematização dessas questões, que é preciso esperar mais, dar tempo ao tempo.
Essa é uma meia verdade.
O Brasil, que nasce da invasão colonial destruidora, discute a questão racial desde que os primeiros corpos foram escravizados. O debate sobre a propriedade desses corpos foi decisivo na sessão parlamentar que, não sem resistência, aprovou a tímida e criticável lei do ventre livre em 1871.
A necessidade de eliminar esses corpos e branquear o Brasil foi discutida e registrada em textos jurídicos e acadêmicos, no período pós abolição. Cotas para filhos de fazendeiros existiram no Brasil, assim como lei impedindo que as pessoas recém libertas tivessem acesso à terra; a mesma terra cedida aos trabalhadores europeus que vieram para cá.
A questão racial, portanto, sempre foi pauta no Brasil. Faz tempo demais que estamos esperando que essa discussão se direcione à reparação e à alteração da violência radical contra pessoas negras e indígenas.
Esse tempo chegou.
Já é hora de dar mais um passo, até porque práticas como as que eu citei (mas também tantas outras) seguem eficientes para o aprofundamento das dificuldades na vida das mulheres, das pessoas negras e indígenas.
Por isso comecei com o texto de Lelia. As astúcias da consciência muitas vezes nos fazem não perceber quais são essas práticas ou mesmo reproduzi-las. Um bom exemplo disso é a terceirização.
Historicamente imposta aos corpos negros, nos serviços de vigilância e de limpeza e conservação, a terceirização segue sendo uma técnica eficaz de invisibilização e violência especialmente direcionada contra essas pessoas. Uma publicação, da qual participei, chamada Resistência III: o direito do trabalho diz não à terceirização, reúne cerca de 90 artigos capazes de demonstrar, de forma exaustiva, o quanto a terceirização é, em si, uma tecnologia de opressão.
A superexploração do trabalho
Os dados sobre raça, gênero e sexualidade de quem é obrigada a se sujeitar a esse modo de superexploração do trabalho permitem perceber, sem dificuldade, o que estou querendo enfatizar: permitir a terceirização, qualquer forma de terceirização, é manter o racismo e o sexismo como vetores estruturantes da nossa forma de viver juntas.
Outro exemplo importante, diz com o tempo utilizado para o trabalho assalariado. Oito horas de trabalho por dia, com possibilidade de compensação, sob a forma do perverso regime do banco de horas, como a própria expressão denuncia, é insistir na noção de trabalho como mera mercadoria. Do mesmo modo, admitir jornadas de 12h sem intervalo é negar a possibilidade de vida fora do trabalho.
As pessoas que atuam no sistema de justiça trabalhista costumam ignorar o fato de que profissões sujeitas à prática de 12x36 costumam ter mais de um emprego (exatamente porque recebem salários baixos) e, portanto, de que a folga simplesmente não acontece. Decisões que banalizam isso também contribuem para manter o racismo e o sexismo como elementos que estruturam e determinam o convívio social, pois nessas profissões, na área da saúde e da segurança, há uma maioria de homens e mulheres negras.
Negar vínculo de emprego, estimulando a ideia do empreendedor de si, também constitui um modo, bem eficiente inclusive, de manter uma estrutura racista e sexista. Aqui, a cooptação do discurso sedutor da consciência que oculta a memória é ainda mais fácil de ser percebido. O incentivo ao afroempreendedorismo desloca o foco: em uma sociedade de trabalho obrigatório, proteção social trabalhista é condição de possibilidade de existência digna.
A negação da proteção social determina uma existência mais difícil. A precarização das condições materiais de vida, aliada à necessidade que esse tipo de trabalho impõe, de muitas horas dedicadas todos os dias para a troca (único modo de a remuneração ser suficiente ao final do mês), interdita as possibilidades, inclusive, de pensar sobre outras possibilidades de conviver.
É de racismo que se trata, também, a prática de promover processo de gentrificação, alterando a arquitetura de regiões, expulsando seus moradores originários e facilitando tragédias ambientais, como a que ocorreu este ano em Porto Alegre.
Tantos outros exemplos podem ser citados: não distribuir alimentos; não distribuir terra; não promover democracia direta através de discussões nos bairros; permitir o uso de agrotóxicos e, com isso, a produção de alimentos envenenados; editar leis que negam direitos a categorias profissionais; privatizar empresas que prestam serviços públicos estratégicos; vedar acesso à justiça para quem é pobre; permitir que a suposta guerra a substâncias ilícitas, cujo uso é amplamente aceito socialmente, seja arma para o encarceramento e a morte de um grupo específico da população. A lista é bem maior.
Escrever sobre isso, decidir ou construir políticas públicas antirracistas, são medidas importantes, mas precisam estar aliadas a uma profunda mudança em nossas práticas.
Essa é minha exortação neste mês de novembro. Como escreve Jurema Werneck, nossos passos vêm de longe e é hora de seguir caminhando.
Não é mais razoável naturalizar a realização de horas extras, o regime de compensação ou a imposição de jornadas de 8h ou mais.
É preciso combater todas as formas de terceirização.
É urgente tornar universal o acesso ao ensino (inclusive em nível superior), o acesso à comida saudável, à saúde e ao trabalho protegido por direitos trabalhistas.
Precisamos honrar tudo o que foi feito até aqui
Nesse ponto, faço um rápido parêntese: não é racional que uma sociedade que se pretenda minimamente civilizada (uso aqui esse termo colonial, de propósito) vete acesso à faculdade, aos jovens que queiram estudar, através da tecnologia da seleção por vestibular, que movimenta toda uma rede de cursinhos preparatórios, mas que também produz adoecimento, estresse, sensação de fracasso, em pessoas, cuja aspiração é apenas seguir estudando. E as que mais são desestimuladas a seguir, são justamente aquelas que ao longo da vida enfrentaram dificuldades maiores, para se manter estudando.
A ausência de compromisso radical com essas pautas (e outras que o espaço deste artigo não permite elencar), especialmente por parte de quem se diz contra o racismo e o sexismo, é um modo eficiente de manter essas opressões, aliviando a (própria) consciência. Um modo perverso, diga-se de passagem, porque aparentemente essas pessoas são aliadas na luta antirracista e feminista. Talvez até elas acreditem que realmente são. De fato, porém, são exatamente aquelas que decidem, produzem lei, governam, as pessoas com maiores condições de alterar nossa realidade. Se não o fazem, não apenas falham, na luta antirracista e feminista. São agentes da manutenção da ordem em que essas formas de violência se perpetuam.
Precisamos honrar tudo o que foi feito até aqui e manter as iniciativas que concretamente permitem uma existência melhor para pessoas negras e indígenas. E precisamos seguir caminhando, tensionando, rejeitando, de modo radical e profundo, práticas que no subterrâneo do sistema capitalista operam para fazer falhar essas iniciativas, para acomodá-las a uma sociabilidade que tem causado tanto sofrimento.
Essa é a proposta que deixo: se queremos mesmo “amar e mudar as coisas”, como cantava Belchior, que seja hoje, que seja para valer!
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko