A era discursiva acabou. Discurso exige esforço argumentativo e pressupõe o outro do ponto de vista racional. Essa capacidade está em vias de desaparecer. O outro praticamente não existe. Fundamentos lógicos e argumentos racionais são desnecessários. O mundo digital mudou tudo. Com o fim das relações dialógicas, as mídias sociais fecharam a janela que foi fundamental para a construção do pensamento desde o iluminismo até o início deste século.
Em 2024, quando falamos em fascismo, tem que se ter claro que o contexto é outro, distante do fascismo clássico do século 20. A lógica do totalitarismo é a mesma, colocar a classe média e o pobre contra o miserável, mas os remédios de antigamente não têm eficácia agora. O capitalismo digital criou anticorpos. Discursos sociológicos bem construídos caem no vazio existencial.
O debate político saiu da esfera pública e comercial da antiga comunicação de massa, das TVs, rádios e jornais, em que havia regras e éticas, concorde-se ou não com elas, para uma nova arena totalmente desregulada. Nessa nova estrutura, o controle é oculto, concentrado nas mãos de três ou quatro multibilionários do Vale do Silício.
É deles a chave que programa os algoritmos nas redes sociais. Nós, público consumidor, estamos fragmentados de acordo com as conveniências desse minúsculo clubinho. O recorte que eu vejo na minha rede social, sobre um mesmo tema, é diferente daquele que meu vizinho vê. Na maioria das vezes é antagônico porque o objetivo é a cisão social. Lembram do velho adágio dividir para dominar? Pois é!
Na era digital, a dominação se faz no momento em que liberdade e vigilância coincidem, explica o filósofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, no livro Infocracia (2022). “O telefone móvel como aparato de vigilância e submissão explora a liberdade e a comunicação”, afirma. A vigilância entra no cotidiano das pessoas disfarçada de conveniência, informação e lazer.
O capitalismo da informação é a mais recente ferramenta da dominação. As novas formas de comunicação, impulsionadas por dados coletados de cada usuário, influenciam não só o consumo, mas o comportamento eleitoral em níveis inconscientes. “No universo dataísta, a democracia dá lugar a uma Infocracia impulsionada por dados”, diz Han. Mais assustador: a partir de uma quantidade de dados, é possível gerar informações que excedem aquilo que a gente sabe sobre nós mesmos.
Quando o discurso dá lugar à coleta de dados no debate político e se desintegra em informações virais, significa que a democracia entrou em colapso. O que está em jogo já não é mais a verdade. A própria capacidade humana de diferenciação entre a verdade e a mentira foi anulada. O filósofo e professor teuto-coreano chama esse fenômeno de “novo niilismo”.
É a “crise da verdade”, que o autor discorre no último capítulo do livro. “Na era das fake News, desinformações e teorias da conspiração, a realidade com suas verdades factuais se extraviou. Passam a circular informações totalmente desaclopadas da realidade, formando um espaço hiper-real”, afirma. “Vivemos, assim, em um universo desfactuado.”
O absurdo risível de há poucos anos passa a ser possível. O ministro Alexandre de Moraes na figura de agente do comunismo não apenas é crível para milhões de pessoas, como leva um homem a se explodir na frente do STF em nome da liberdade. O argumento racional de que Moraes foi indicado ao Supremo por Temer, político de direita, depois de exercer cargos políticos em governos de direita, não faz sentido. O que vale é a ideia-força viralizada nas redes sociais.
A descredibilização das vacinas é outro exemplo dramático dos danos que a perda da verdade como regulador social pode causar. O Brasil já foi referência mundial em vacinação pública. Hoje, no entanto, doenças erradicadas como a coqueluche estão voltando e o país luta para recompor a cobertura vacinal porque muita gente deixou de tomar vacinas por acreditar nas fakes News disseminadas pelo ex-presidente da República.
Byung-Chul Han assinala, com razão, que as fake News na esfera política são piores do que a mentira pura e simples. “Quem mente de maneira consciente e se contrapõe à verdade, legitima esta última de modo paradoxal. O mentiroso não perde a referência à verdade. Quanto mais resolutamente mentir, mais a verdade é comprovada”, explica.
“Ao afirmar de modo inescrupuloso o que lhe convém, Donald Trump não é um mentiroso clássico que conscientemente retorce as coisas. Ao contrário, é indiferente perante a verdade factual. Quem é cego aos fatos e à realidade, constitui um perigo maior à verdade do que o mentiroso”, pontua o filósofo.
A eleição de Trump em 2024, dobrando a aposta na estratégia cínica que lhe deu a vitória em 2016, só reforça a tese de Han. O futuro presidente dos EUA volta turbinado pelo apoio ostensivo de Elon Musk, que terá carta branca para fazer o que bem entender se não for freado pela Justiça. Será? O Vale do Silício, ponto cardinal na nova constelação do neoliberalismo, acredita que não.
A voz de comando do fascismo vem pelo WhatsApp. No capitalismo digital, o poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso e controle da informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual. O uso supostamente livre e espontâneo das mídias sociais não tem nada de livre muito menos de espontâneo. O problema é que o submetido se supõe mais livre do que nunca.
* Marcelo Leal, jornalista aposentado, 64 anos, foi editor e repórter no site do Ministério da Cultura, onde atuou até 2018. Atualmente mora em Canela, Serra gaúcha.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko