A 70ª edição da Feira do Livro está terminando às 20h desta quarta-feira, Dia da Consciência Negra. Vendeu milhares de livros. Teve público extraordinário, contado aos milhares. Os livreiros estão felizes, como me disse um deles, já que o 14º salário está garantido, apesar dos prejuízos incalculáveis provocados pelas enchentes.
Autores, escritores, personalidades, palestras, conferências, sessões de autógrafos e entrevistas sempre foram bem-sucedidas. A mídia se esbaldou na concessão de espaços. Uma pena que a dedicação à literatura destes meios dure poucos dias, salvo algumas exceções. Dois personagens estão presentes lá, sempre, 24 horas por dia, enfrentando sol, chuva, vento e até enchentes. Na pandemia, alguns até colocaram máscaras nos dois grandes heróis da literatura.
Eles são dois imortais da literatura e estão em bronze e foram, mais uma vez, as grandes atrações da feira: mais fotografados, mais honrados com selfies e sinônimos de exemplo para os escritores. São o gaúcho Mario Quintana e o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Dois gigantes reverenciados até por aqueles que pouco sabem deles e que não sabem nada do histórico destes ilustres personagens. A honra das selfies com eles é maior do que qualquer outra coisa.
Mario de Miranda Quintana (1906-1994) foi poeta, tradutor, frasista e jornalista brasileiro. Era de Alegrete, mas fez a vida em Porto Alegre. Foi excepcional no seu trabalho e injustiçado porque foi renegado pela Academia Brasileira de Letras em todas as tentativas.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi outro gênio das letras. Era também farmacêutico, contista e cronista, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX, ao lado de Quintana. Era mineiro de Itabira, mas passou a vida no Rio de Janeiro, onde se tornou célebre e reverenciado.
Homenagem
Afinal, por que eles estão aqui na Praça da Alfândega, no local da Feira do Livro, imortalizados e admirados por todos que ali passam? O livreiro Paulo Flávio Ledur conta a história. Licenciado em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras (Fapa), Mestre em Linguística Aplicada pela PUCRS, professor, escritor, editor, livreiro, diretor da Editora AGE, ele foi um dos autores da iniciativa. Talvez o principal, entre tantos. Aqui, em companhia do jornalista Ayres Cerutti, ‘prefeito’ da Praça da Alfândega por sua dedicação e cuidados com o local, conversamos com Ledur, pai do atual comandante da 70ª Feira do Livro, Maximiliano Ledur.
“Em abril de 2001 estávamos almoçando com o bibliófilo Waldemar Torres* em um restaurante do Menino Deus. Estavam ali Olívio Dutra, Sérgio Faraco, Armindo Trevisan e outros tantos que não lembro. Conversa vai, conversa vem, chegamos ao consenso de que o local da Feira do Livro precisava ter um monumento à literatura.”
“Chegamos à conclusão de que o Quintana, um frequentador habitual da praça e que volta e meia estava sentado por ali, devia ser um deles. O outro deveria ser Drummond, que completaria no ano seguinte, 2002, cem anos do seu nascimento, mas as comemorações ainda começariam no período da feira.”
“Saímos dali. Eu logo fiz levantamento de preços. Falei com o escultor Xico Stockinger, fiquei sabendo do valor da obra em bronze. O governo e a prefeitura não tinham previsão orçamentária para este tipo de obra, mas foram informados da nossa iniciativa. Lembrei imediatamente do Grupo Gerdau, que completava cem anos de fundação em 2001.”
“Foi fácil. Conversei com o marketing da empresa, me prometeram resposta e o dinheiro necessário (R$ 58 mil). Para minha surpresa, em 15 minutos veio a resposta: ‘podem mandar fazer’. Avisei o Xico e ele colocou a sua criatividade em funcionamento, junto a escultora Eloisa Tregnago.”
“Poucos meses depois, em 26 de outubro, quando foi aberta a 47ª Feira do Livro, a obra foi inaugurada e a praça ganhou dois grandes personagens. Foi chamado de Monumento à Literatura Brasileira.”
Três peças de bronze
Ledur diz que são três peças de bronze, um banco e duas figuras humanas: uma em pé (representando o poeta Carlos Drummond de Andrade) e outra sentada (representando o poeta Mario Quintana).
A obra foi uma encomenda da Câmara Riograndense do Livro, presidida por Ledur, trabalhada no ateliê de Xico e em fundição de São Paulo, para ganhar as formas e as alturas necessárias. A obra dá a impressão de ser um encontro casual, onde Drummond aparenta ler um poema para Quintana.
Em 17 de outubro de 2012 a estátua de Carlos Drummond de Andrade foi removida do local durante um período para reformas em sua estrutura. Ela foi reinserida uma semana depois, em 25 de outubro.
A obra foi vandalizada algumas vezes, destacando o furto em 2015 de uma das partes principais, que era o livro segurado por Carlos Drummond. Além disso no dia 20 de julho de 2022 a obra foi vandalizada com tinta amarela. No dia seguinte a tinta já estava removida.
* Waldemar Torres é referência nacional em bibliofilia. Paulista, morava no bairro Menino Deus desde 1990. Morreu em 2016. Falava sobre escritores com um amor contagiante, como ele próprio disse, em entrevista concedida a Zero Hora, em 2000. Os livros mais valiosos que tinha em sua biblioteca eram Opus 10, de Manuel Bandeira, que teve edição de apenas 20 exemplares, assim como outros títulos autografados do amigo João Cabral. O bibliófilo, que dedicou décadas a pesquisar e colecionar obras de autores do modernismo brasileiro, contabilizava em seu acervo um vasto volume de informações e trabalhos de figuras como Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Mario Quintana, Erico Verissimo, Rubem Braga, Jorge Amado, Clarice Lispector e outras centenas de nomes. Waldemar era responsável ainda pela maior filmografia da literatura brasileira do século 20. Era formado em Medicina Veterinária em 1966, foi membro do conselho federal da categoria por 18 anos. Na década de 1980, a bibliofilia começou a tomar 90% do seu tempo.
Edição: Katia Marko