Podemos escolher pertencer a esta semente de consciência, o que nos torna doadores da boa semente
"Nas sementes vivas residem a esperança e o potencial para um mundo melhor, e em cada um de nós residem as sementes da nossa humanidade mais profunda e elevada, a que vem do retorno à nossa condição de membros da família terrestre."
Vandana Shiva
Caminhamos pela vida coletando, plantando e distribuindo sementes de inspiração, exemplo e atitude. Na convivência com a grande família humana e não humana somos convidados a percorrer muitas estradas, construir espaços, canteiros, atravessar e ser ponte. Nesse intento vamos nos percebendo e somos convidados a fazer escolhas de pertencimento.
A que grupo pertenço? Nos perguntamos logo cedo. Nossos passos assim vão sendo guiados por laivos de consciência pré-estabelecidos através do que vemos e absorvemos e isto molda nosso ser e nossa consciência desde tenra idade.
Pode ser que se experimentem muitas viradas de chave, despertares que nos tiram a venda, que nublavam a visão antes e, somente após um momento epifânico, conseguimos enxergar de outra maneira. Mas pode ser também que se viva toda uma vida com a mesma maneira de pensar e sentir, criando como filhotes outros passarinhos que foram depositados no nosso ninho da consciência.
Eis a lição preciosa e poderosa da metáfora da semente. Recebemos sementes de consciência por toda a vida. E elas poderão encontrar terreno estéril e ali não vingarem, mas em território fértil da consciência desperta elas poderão brotar e frutificar, como o Mestre Jesus Cristo nos legou por meio da parábola do Semeador.
Há quem passe por uma floresta e veja apenas lenha para sua fogueira, disse Tolstoi. Esta é uma semente apodrecida, viciada nos desejos do ego, da auto referência e que nada gerará para a coletividade. Se uma semente contaminada por estes valores está no foco da atenção das pessoas com poder de decisão dos sistemas políticos mundiais, gerará a vida em ciclos de perpetuação de poder e baixa distribuição das riquezas produzidas pela humanidade e, o mais sério, a destruição dos ciclos da Terra em nome do poder econômico, a velha história já conhecida.
A boa semente, por outro lado, está nas pessoas que pertencem ao reino da fraternidade planetária, que sabem que as águas do rio Nilo, na África, se evaporam e se transformam nas águas do Rio Opara, ou São Francisco, no Nordeste do Brasil. Da mesma maneira, um vírus, em uma cidade pequena da China se transforma rapidamente em uma ameaça mundial, percorre os continentes e chega aos nossos vizinhos, a nossa aldeia. Somos uma imensa família e nossa humanidade mais profunda e elevada, como traz Vandana Shiva, é a nossa melhor semente para o convívio respeitoso e amante de toda a Vida.
É, ao contrário da primeira semente, passar pelo bosque da vida e identificar como podemos servi-la.
Em nossa América, a grande família ameríndia vivenciou e ainda vive esse cuidado com todas as formas de vida. As populações originárias, que ainda hoje subsistem e resistem desde o Alaska até a Tierra del Fuego são uma grande família originária, com tradições espirituais que trazem a mesma essência. Distintas etnias, cores, geografias, mitos, animais e sistemas de sobrevivência diferentes. Mas estamos falando de uma só família.
Os arqueologistas e antropólogos têm explicações migratórias e muitas razões e estudos racionais e explicativos sobre os enraizamentos dos primeiros povos que habitaram América. Mas o principal é que o povo Sioux, na América do Norte, o povo Mapuche, na região do Chile, o povo Guarani, no Sul do Brasil, a nação Q'eros, no Peru, os Teuelche, Aoniken, Ushuaia na Argentina, os Yanomami, Ye´kana, Warao, na região Norte do Brasil, os Kariri na região do Nordeste, todos são primos-irmãos e todos somos parte da mesma tribo seja com quatro patas, ou com asas ou com brânquias, parte da tribo de pedras, de raízes... Somos unidade com os arquétipos e espíritos das florestas e das águas, dos abuelos e abuelas que não estão em corpo físico, mas que ainda assim inspiram e guiam.
"Quero demonstrar que há uma outra história, uma outra narrativa, muito mais lógica e real, que nos mostra a dignidade e a beleza de nossos povos originários e da música que surge de nossa geografia. Assim, para derrubar a baixa autoestima que nos meteram no subconsciente durante 500 anos, que mataram e devastaram com sua tecnologia os indígenas sutis e espiritualizados, os negros que foram tirados de suas gentis e belas vidas no continente africano e escravizados para gerar a riqueza do primeiro mundo de hoje, e dos crioulos convencidos de um sistema injusto para todos, especialmente para as espécies ou ecossistemas. Nosso pequeno caminho de jardinagem está aqui e agora doando sementes de amor à Pachamama e suas criaturas e resiste com bondade aos matadores de lendas, de florestas, de espécies, de sonhos fraternais que nos foram legados por nossos abuelos e abuelas andinas." (Mestres Andinos)
É preciso re-acordar e lembrar do povo preto que unifica as raízes de resistência e luta do continente, pois audazmente e de forma alquímica são um potente espelho da injustiça que impera tão dolorosamente nos nossos dias, e também da dignidade humana que, como sementes, não possuem o luxo de desistir, mas de seguir nascendo e ganhando espaço orgânico, verde, na dura realidade do mundo opressor. A mudança é provocada, mesmo lentamente, sem a escolha de deixar ser vencido, mas avançando passo a passo, com sangue, suor, inteligência e intuição.
Podemos nos sentir orgulhosos de ser o povo de Palmares, de Abya yala, de sermos desta Terra, que não começa nem termina, somos uma só nação, lenta, que não viaja com a velocidade da mente, da ganância do poder e da tecnologia, que nos propõe cada vez mais agilidade, alta produção e imediatismo.
Os valores de amor à terra e cuidado com os seres vivos que tiveram os povos ameríndios e os negros e negras, as crianças injustiçadas que povoam o sangue de todo brasileiro e latino americano, sendo aceito ou não, são o oxigênio que precisamos hoje para que esta Santa Terra sobreviva à neurose do sistema político e de guerras a que estamos submetidos como família terrestre. Podemos, sim, escolher pertencer a esta semente de consciência, o que nos torna também distribuidores da boa semente.
Assim, a admiração pelo modo de vida simples e não esgotador dos recursos dos povos da tradição de amor à Terra é uma esperança do porvir, realista e que tem o cuidado como centro, cuidar das árvores, plantar agroflorestas, gestar sociedades humanizadas, enfim, cuidar de Pachamama, do Grande Espírito da Vida. Ele está dentro de cada um e, ao mesmo tempo, ao nosso redor.
* Malena Aguilar e Astreia Mendizabal, ativistas da Nación Pachamama
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko