Desde o dia 1º de novembro, sobre as pedras portuguesas da Praça da Alfândega, mais de 70 bancas permeiam o espaço e dão vida a 70ª Feira do Livro de Porto Alegre. Tida como a maior feira do gênero a céu aberto da América Latina, e a mais longeva do país, traz em suas sete décadas inúmeras recordações, como o encontro da livreira Jussara Nunes Martins com o escritor Mario Quintana.
Jussara, 73 anos, está há 58 trabalhando como livreira na Feira do Livro da Capital. A sua relação com o evento começou quando tinha 14 anos. Atualmente, é proprietária da Nunes Martins, que ocupa espaço na seção infantojuvenil. “Cresci com os livros, eles são muito importantes para mim. Está na veia. Eu estou sempre dizendo assim, vou me aposentar, vou me aposentar, mas não consigo”, afirma.
A livreira que cresceu junto com a feira, conta que em suas quase seis décadas de evento, conviveu com grandes nomes, e cita Mario Quintana como principal. “Era a minha paixão. Ele vinha e sentava do lado da minha barraca, e ali ficava, dava autógrafos, pedia o cafezinho.”
Ao comentar sobre os 70 anos do evento, pontua que todos os envolvidos esperavam muito dela antes da enchente. “Estamos com a feira da reconstrução. A gente está esperando que consiga superar a 69ª (edição). Estamos com uma expectativa muito grande. Se conseguiu, com a verba que entrou, fazer tudo que vocês estão vendo, mas mesmo assim ainda tá faltando verba para completar tudo que se queria.”
Seis meses depois da grande enchente, que chegou a causar dúvida sobre a realização do evento, os museus que circulam as bancas ainda permanecem fechados, e a própria vegetação da feira serve como recordação do desastre.
Jussara, como muitos livreiros, foi atingida. Ela conta que perdeu todo o pequeno estoque que tinha. “O meu prejuízo perto dos outros editores foi pequeno. Eu tive um prejuízo de R$ 50 mil. Mas teve as editoras que estavam com seu depósito, por exemplo, na zona Norte, perderam tudo. Hoje tem livros adotados nas escolas que a gente não tem pra vender porque o livro molhou. E são livros que vão ser reimpressos lá pra fim de dezembro, janeiro, fevereiro. É complicado, mas esperamos muito dessa feira.” E complementa, "a atual edição se não for uma super, vai ser quase". E deixa o convite: “Se não puder comprar um livro, venham à feira”.
De acordo com Maximiliano Ledur, presidente da Câmara Riograndense do Livro, dos expositores que estão neste ano, 30% foram atingidos diretamente. "Perderam 50% de estoque, 30% de estoque, 80% de estoque, fora maquinário, móveis. É um período que tinha incertezas até dois, três meses atrás, porque não tinha aeroporto, não tinha praça ainda liberada para a gente poder usar. Então, foi uma união de forças para que a feira acontecesse."
Das mais antigas
Quando começou em 1955, a feira contava com apenas 14 bancas. Dessas duas permanecem até hoje, mesmo tendo mudado de proprietário, a Federação Espírita do Rio Grande do Sul (Fergs) e a Martins Livreiro.
“Esse é um grande legado nosso, a gente tem que honrar tudo isso. Porque há 70 anos, Francisco Spinelli, que na época era o presidente, recebeu um convite dos amigos. Então, pra nós, sempre é muito emocionante quando a gente fala em Feira do Livro de Porto Alegre, a gente não deixa de lembrar do Sr. Francisco Spinelli, que deixou esse legado pra nós, e a gente está cumprindo com muita honra”, afirma Roseni Siqueira Coulman, gerente editorial da Fergs.
Para Roseni a atual edição significa um recomeço. “Nós, da classe livreira, sofremos muito. Temos colegas que perderam tudo. A Federação Espírita do Rio Grande do Sul perdeu um estoque em torno de 21 mil livros, sem contar a estrutura toda aqui também. A nossa sede fica ali no quarto distrito, um dos bairros mais afetados com essa catástrofe climática que aconteceu."
Ao mesmo tempo é a feira da esperança, da resiliência. “É difícil, mas estamos bem. É um recomeço e nesse momento é muito importante que as pessoas venham para a praça, comprem livros. É um momento muito especial, pelo aniversário e também por esse recomeço dos livreiros, que é muito importante. Tragam suas crianças, venham os pais, educadores, o público em geral, porque além dos livros, que é o principal, a gente tem muitas atrações acontecendo em todos esses locais que nós temos, então aproveitem. Ela é uma experiência que a gente tem que viver."
Ivo Almansa, atual proprietário da Martins Livreiro, livraria e editora que está desde o início da feira, assumiu a mesma na década de 1970. Saudosista, ele conta que a feira modificou muito, ficando mais profissional. “No tempo que a gente iniciou, por exemplo, não tinha cobertura, a gente tinha que tapar os livros com plástico, transparente, para o pessoal dar uma olhada quando ia, porque, geralmente, quando chovia, o público desaparecia. E as vendas praticamente zero. E, às vezes, quando dava temporal, por exemplo, não tinha."
Ainda recordando o passado, não havia vigilante para tomar conta do espaço como há atualmente. “A gente se telefonava, dois, três, íamos lá, desentupia as bocas de bueiro, porque alagava e molhava os livros, principalmente os livros de saldo, porque a barraca tem uns 10 centímetros de altura. Então, para a gente não perder, a gente remangava as calças ou ia de bermuda para limpar as bocas do bueiro."
Quando o livreiro começou havia em torno de 28, 30 barracas, possibilitando que todo mundo se conhecesse. "A gente fazia churrasco atrás das barracas, as caixas de isopor de cerveja. Era uma confraternização geral. Os donos das livrarias participavam mais da feira. Hoje é praticamente funcionário que participa. Você está do lado de uma barraca, não te dá bom dia, praticamente não conhece as pessoas. Antigamente não tinha um horário fixo para fechar.”
A Martins, segundo Ivo, não foi atingida pelas águas da enchente, mas ficou 40 dias sem funcionar por conta da falta de energia elétrica. Na feira da reconstrução o livreiro pontua que o público está comparecendo e comprando livros. “Isso é uma satisfação pra todos os livreiros, principalmente aqueles que foram atingidos."
Pela primeira vez
Estreando na feira, Thomás Daniel Vieira, fundador da editora Coragem, diz que participar da Feira do Livro de Porto Alegre é um sonho antigo. “Essa realização nos alegra e orgulha. A expectativa é vivenciar ainda mais intensamente o clima único da Praça da Alfândega nessa época e compartilhar este momento com a maior quantidade possível de amigos, parceiros, leitores.” A banca chama atenção, pois colocou no teto um pequeno gramado.
Para ele a Feira do Livro possui importância cultural inestimável. “Não creio que seja por acaso a diversidade de editoras e a qualidade de autores que temos no Rio Grande do Sul. "A feira é parte da identidade da cidade e, além disso, se diferencia de outros eventos literários nacionais por ser aberta e gratuita, por fortalecer o mercado editorial local e por ser a mais longeva neste formato.”
Segundo Thomás, a feira consegue atrair as pessoas para a literatura e formar leitores como ele, que teve a oportunidade de frequentá-la desde criança. "No aspecto comercial, muitas editoras e livrarias dependem do evento para continuar existindo, pois representa uma fatia considerável da receita anual."
“Não obstante, o evento encolhe ano a ano e deveria aprimorar-se de muitas formas. Pequenas editoras e livrarias são praticamente excluídas pela dificuldade de tornar-se parte do evento, atividades voltadas para o setor editorial praticamente inexistem, o formato das sessões de autógrafos poderia ser repensado. Ainda assim, acredito no potencial da nossa feira voltar a ser uma referência para outras cidades, como já foi em outros tempos”, pontua.
A Coragem se propõe a promover debate público social latino-americano através de literatura, com ênfase em questões sociais, culturais, políticas e históricas. “Buscamos tornar acessível conhecimento como ferramenta na conscientização de classe e lutas sociais. Em quase cinco anos de jornada, a editora publicou 50 títulos, dentre eles uruguaios, argentinos, chilenos e peruanos.”
É associada da Liga Brasileira dos Editores Independentes (LIBRE), do Clube dos Editores do Rio Grande do Sul e da Câmara Riograndense do Livro. “Atualmente, um grupo muito grande de pessoas colaboram para viabilizar estes projetos, a quem agradeço imensamente”, destaca Thomás.
Por outros idiomas
"Nossa livraria começou em 1995 e já no ano seguinte começamos a participar da feira. Então já estamos participando aqui uns 28 anos”, conta o proprietário da livraria Calle Corrientes, Miguel Ángel Gómez.
Para ele, a feira é um grande momento, uma grande oportunidade para o público ter acesso ao livro. “Muita variedade de temas, de autores. Aqui temos as coisas mais diversas, como digo, no meu caso, livros inclusive em outra língua, em castelhano. Então, eu acho que, sim, é um acontecimento... Bom, já tem 70 anos, já está confirmado que é um acontecimento valioso”, afirma.
Também é uma oportunidade para os livreiros. De acordo com Miguel, a feira realmente faz uma boa diferença no faturamento anual especialmente dos livreiros pequenos, como é o seu caso. A Calle, localizada no centro de Porto Alegre, é especializada em livros em castelhano de países do Sul da América.
Quando Miguel começou a participar da feira ela já tinha um bom tamanho que foi se ampliando. Ficando reduzida na pandemia e com um edição só pelo modo virtual. “Depois voltou já um pouco menor. Mas, de qualquer forma, é uma grande feira. Temos a rua da Praia toda completa, aqui a 7 de setembro também, e a área infantil. Então, a feira sobreviveu muito bem."
Sobre o período da enchente ele conta que por conta da livraria ficar próximo à Avenida Mauá, e a loja ficar em um andar alto, não teve prejuízos físicos, mas ficou um mês sem poder trabalhar.
Para além da feira
“A minha relação com a Feira do Livro é muito antiga, desde a infância. Meu pai (Isatir Antonio Bottin) participou desde a primeira Feira do Livro. Então eu lembro que desde a minha infância eu frequentava a Feira do Livro. Depois, quando comecei a exercer a atividade de livreiro, participei ativamente da Câmara do Livro. Até que passei pela diretoria, fui presidente da mesma. A minha relação com a Feira do Livro é muito afetiva”, comenta o proprietário da livraria Isasul, Isatir Antonio Bottin Filho.
Ao falar das memórias dessas sete décadas e de sua relação com a feira, o livreiro destaca, entre os vários eventos marcantes, a presença da atriz, escritora Bruna Lombardi. "Quando ela começou aquela relação de amizade com Mario Quintana, passou a vir com frequência à Feira do Livro de Porto Alegre. Então eu lembro daquela questão da musa e do poeta, e da participação dela na época, porque era uma atriz que aparecia na TV e o Mario Quintana fazia toda aquela poesia quase que para ela, reverenciava como uma musa.”
Como nos casos da Calle Corrientes e da Martins, a livraria Isasul não teve prejuízos em seu estoque, mas permaneceu um mês fechada por conta da falta de luz, água e internet. “Depois de todo esse fato que nós passamos da enchente, essa crise climática que abalou o nosso estado, e principalmente aqui o centro de Porto Alegre, e atingiu várias editoras, livreiros, a atual edição tem um significado da reconstrução. Há poucos meses atrás a Praça da Alfândega estava alagada, quase semi-destruída. É um momento oportuno para os livreiros voltarem, muitos perderam quase tudo, as editoras, principalmente, que se localizavam no quarto distrito.”
Nesses mais de 10 dias de Feira Isatir comenta que as vendas estão indo bem, que as pessoas estão comprando, interagindo. “A feira, nesses 70 anos, tem um significado muito especial. E tem um sentimento de gratidão por a feira estar voltando pela presença dos livreiros na praça.”
A Feira do Livro de Porto Alegre segue até o dia 20 de novembro.
Edição: Katia Marko