“Com tudo que escrevo, busco preencher as lacunas que também fizeram parte da minha vida. Embora eu tenha sido uma criança e adolescente muito apaixonada pela leitura, sempre foi frustrante ver que mesmo depois de adulta eu não tinha acesso a obras que mostrassem personagens parecidas comigo e que não voltassem sempre ao estereótipo da pessoa sertaneja que está na miséria e no chão rachado.”
Escritora cordelista e poeta, Jarid Arraes fala assim ao Brasil de Fato RS. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), Jarid participou do bate-papo “Quem são as Dandaras de hoje?", na 70ª Feira do Livro de Porto Alegre.
Jarid é autora do romance Corpo desfeito e do volume Redemoinho em dia quente, que recebeu o Prêmio Biblioteca Nacional, o APCA de Literatura na categoria Contos e foi finalista do Prêmio Jabuti. Também escreveu os poemas de Um buraco com meu nome, da coletânea Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis e de As Lendas de Dandara. Em São Paulo (SP), onde mora, fundou o Clube da Escrita para Mulheres, que está completando 10 anos e já publicou mais de 70 títulos em literatura de cordel.
Brasil de Fato RS – Já disseste que Redemoinho em dia quente é uma afirmação de existência em vários sentidos. Nos contos trazes outra visão do sertão, fugindo do estereótipo. Que existências e sentidos são esses?
Jarid Arraes - Com tudo o que escrevo, busco preencher as lacunas que também fizeram parte da minha vida. Embora tenha sido uma criança e adolescente muito apaixonada pela leitura, sempre foi frustrante ver que, mesmo depois de adulta, não tinha acesso à obras que mostrassem personagens parecidas comigo e que não voltassem sempre ao estereótipo da pessoa sertaneja que está na miséria e no chão rachado. Afirmo a existência de um sertão vivo, urbano, cheio de cores, de contradições e de mulheres complexas. Na minha escrita, afirmo minha própria existência.
Teu romance de estreia traz a questão da violência. Corpo Desfeito traz uma protagonista, a menina Amanda, vítima de abusos físicos e emocionais por parte da avó que, por sua vez, também foi marcada pela violência. Assim como a mãe da criança, que depois de morta é transformada em santa. Como foi a construção dos personagens?
Para construir a história de Amanda e das mulheres que estão em sua vida, parti de uma pergunta: o que aconteceria se uma mãe em luto transformasse sua filha em santa e mandasse fazer uma estátua para adorá-la? Foi o início de tudo.
A partir daí, experimentei personagens femininas que me trouxessem incômodo. O incômodo é algo muito importante para minha escrita e tem se tornado cada vez mais. Meu maior desafio foi apresentar uma protagonista que, vivendo dentro do trauma extremo, oscilasse entre ingenuidade e doçura e consciência do que estava sendo feito com ela. Para mim, ter uma história de uma família de mulheres que violenta uma criança, seja com a agressão e o controle explícitos, ou com a omissão, é algo muito forte.
A culpa é a tortura que puxa cada lado de seu corpo para direções opostas. E te rasga ao meio (trecho do livro Corpo desfeito)
Como um corpo desfeito pode se regenerar e romper o ciclo da violência?
Para romper o ciclo, a gente precisa conversar sobre a violência e se aproximar dela com um olhar humanizador. E não com medo de falar sobre isso. O silêncio só faz com que a coisa fique mais intensa e, pior, e fique mais solitária também. O diálogo e o reconhecimento coletivo são os elementos principais.
Como a literatura pode ajudar na desconstrução dos estereótipos?
Penso que, coletivamente, temos muita dificuldade de olhar com profundidade para a violência. A literatura é um campo de experimentação, um lugar para empurrar paredes. Pela literatura, há a oportunidade de trilhar os passos e sentir as dores de uma personagem. É uma forma bonita de praticar o contato humano. Quando nos conectamos com uma história, temos uma nova chance de enxergar as relações sociais.
Ter uma história de uma família de mulheres que violenta uma criança é algo muito forte
Assim os estereótipos podem dar lugar à complexidade das relações. Isso nos faz pensar mais profundamente. Uma história que desafia estereótipos vai convidar os leitores de maneira suave, mesmo que as diversas violências retratadas sejam muito difíceis de encarar.
Tua trajetória começa no encontro com as mulheres negras. Daí temos As lendas de Dandara. Quem são as novas Dandaras? Que outras histórias de mulheres negras deveriam vir à tona?
As novas Dandaras são as mulheres que constroem os mundos possíveis para hoje e para o futuro. Estão por toda parte. São mulheres comuns, são grandes artistas celebradas pelo público, são aquelas que enfrentam os terrores do dia a dia. O que é preciso para que um ícone como Dandara ganhe vida? Podemos relacionar essa representação de coragem, de insistência, resiliência e de afeto observando mulheres que conhecemos. O que sei com certeza é que o potencial para a coletividade está em todas nós.
...meu bem, de passos em falso são feitas todas as importâncias do mundo. Pequenos erros entre pedras muito bem colocadas (trecho do livro Redemoinho em dia quente)
Na roda de conversa na Feira disseste que: “Quando a gente era criança, a gente inventava histórias, dançava, cantava, desenhava, fazia todas essas coisas. Mas, a medida que a gente vai crescendo, vai perdendo essa intimidade com a arte, muitas vezes porque as pessoas adultas ao nosso redor não nos incentivam. E chega esse ponto de achar que a literatura não é para você”. No contexto atual quanto essa realidade mudou?
Quando lembro de quando comecei a publicar, entre 2013 e 2015, revejo um cenário muito difícil na literatura. Eu recebia a lista de lançamentos mensais das grandes editoras e contava, por exemplo, entre vinte publicações, duas ou três mulheres. Muito espaçadamente eram brasileiras. Não encontrava autoras fora do Sudeste, não encontrava escritoras e escritores negros brasileiros.
Ainda encontramos com frequência reprovável júris de premiações formados apenas por homens brancos
Hoje, depois de muita mobilização, temos mais diversidade. E não quero dizer apenas a diversidade racial, de gênero, regional ou de sexualidade. Também falo de diversidade linguística e estética. Mas preciso salientar que ainda não temos um equilíbrio, não temos um quadro que nos mostre a real riqueza literária do Brasil.
Temos novas referências que não tive enquanto me formava leitora e escritora, mas ainda encontramos com frequência reprovável júris de premiações formados apenas por homens brancos, eventos literários inteiros com pouquíssima ou nenhuma pluralidade literária, autores e autoras nordestinos que são reduzidos ao rótulo da suposta literatura regional, entre outras questões que precisam ser encaradas e modificadas. As curadorias, as premiações, as livrarias e os leitores precisam ampliar seus repertórios e abrir espaço para obras e autores que trarão muita riqueza artística e social.
Tem uma frase do escritor Eduardo Galeano que diz: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” E a literatura, ela serve para quê?
A literatura não tem que servir para nada. E ela serve para tudo.
Outra colocação tua foi: “Acho importante falar que vamos ter um país de leitores. Mas, para mim, é ainda mais importante dizer que vamos ter um país de escritores”. No começo deste mês foi lançada a primeira formação pública e gratuita do Brasil para novos escritores, o programa Territórios da Escrita, uma parceria entre o Ministério da Cultura (MinC) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio da Secretaria de Formação, Livro e Leitura e do Instituto de Letras. Como vês essa iniciativa?
Ainda não tive tempo de me familiarizar com o projeto mas penso que toda iniciativa que tenha como objetivo estimular a criação artística tem um imenso potencial de construir uma sociedade mais humana, capaz de criar espaços para que as pessoas se expressem livremente, pensem criticamente e construam novos caminhos possíveis. Escrever é poderoso, criar é libertador.
Gosto de escrever sobre coisas difíceis, tristes, dolorosas e horríveis
Como a terapia tem ajudado no teu processo como escritora?
A psicoterapia me dá possibilidade de acessar lugares de mim que, muitas vezes, só acessei pela escrita mas, mesmo assim, não consegui elaborar, nomear e compreender totalmente. Posso me ver no processo de me tornar uma escritora melhor, cada vez mais intencional e cada vez mais consciente dos meus motivos, incômodos, impulsos criativos.
A terapia me acompanha enquanto pesquiso temas e problemas difíceis e pesados e assim consigo me amparar e me relacionar de maneira sensível, mas consciente, com os horrores do mundo. Porque gosto de escrever sobre coisas difíceis, tristes, dolorosas e horríveis. É assim que lido com o mundo, é grande parte da minha motivação para escrever.
Como foi fazer o Cordéis para crianças incríveis?
Amo escrever cordéis para crianças porque elas apreciam a forma, a rima, a melodia. Cordéis para crianças incríveis é um livro que tem minha cara, embora seja muito colorido e feliz (risos).
Sou uma pessoa introspectiva, gosto de escrever sobre coisas dolorosas mas, quando escrevo para crianças, trago desafios com leveza, trato de temas importantes dentro de uma atmosfera bonita, que diz para as crianças que elas podem realizar coisas lindas e que a coletividade, a amizade e a empatia constroem essas possibilidades.
Cordéis para crianças incríveis fala sobre como os corpos das crianças podem dançar, se movimentar, realizar sonhos; fala sobre como a amizade pode nos levantar em momentos de tristeza; nos mostra adultos que acreditam nas crianças e nos mostra como coletivamente somos capazes de transformar nossas comunidades em realidades acolhedoras e criativas.
Dandara não atentava para mais nada, apenas sentia o vento poderoso lhe sustentando o corpo no ar, enquanto seus pés dissolviam em tons de vermelho e rosa (trecho do livro As lendas de Dandara)
Conhecestes a história de Tereza de Benguela tardiamente. Na hora que você falava, lembrei também do desconhecimento acerca da primeira romancista brasileira, Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra. Descrevestes isso como uma consequência do racismo, como uma omissão. Nós temos a Lei 10.639/03 que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas públicas. A situação melhorou?
Bastante coisa melhorou. Tanto é que escolas têm adotado os meus livros, como o Heroínas Negras. Mas a Maria Firmina precisa ser muito mais conhecida e valorizada no cânone literário. O fato dela não ter esse reconhecimento é um carimbo do racismo, e também da misoginia.
Falaste que o cordel é um gênero machista. Disseste que teu avô reconheceu o teu trabalho. Essas mudanças também estão acontecendo no cordel, na literatura, mas o machismo ainda continua ali, não é?
O machismo é uma coisa muito difícil de combater porque, às vezes, fica disfarçado de elogio. Então, por exemplo, quando tem evento de cordel, muitas vezes os homens falam assim: ‘Ah, as mulheres escrevem um tipo diferente de cordel, mais delicado’. Essa é uma maneira que o machismo ainda se manifesta no cordel. Felizmente tenho visto bastante coisa mudar, mais cordéis com temas interessantes surgirem. Enquanto puder fazer o meu papel de falar sobre isso e também de valorizar o cordel, eu vou fazer.
Edição: Ayrton Centeno