Rio Grande do Sul

comida de verdade

Bela Gil: 'Comer só se torna um ato político quando você tem essa escolha'

Apresentadora também destacou a importância da agricultura familiar para democratização da alimentação saudável

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Bela Gil: 'É muito importante que a gente enxergue não só quem está fazendo a comida, mas quem está produzindo a nossa comida' - Foto: Eduardo Fernandes/CRL

“A gente precisa, agora, mais do que nunca, entender os impactos das nossas escolhas alimentares. Estamos em um momento que precisamos de uma mudança estrutural, da forma como a gente produz, distribui, e consome os alimentos”. A afirmação é da apresentadora e chef de cozinha Bela Gil, que esteve na Feira do Livro de Porto Alegre (RS), para uma conversa sobre Caminhos Sustentáveis, com mediação de Elaine Maritz.  

Antes da mesa que debateu os caminhos necessários para democratizar a alimentação saudável no Brasil, Bela deu uma coletiva de imprensa na última quarta-feira (6) em que destacou a importância do trabalho desenvolvido pelos agricultores familiares

“A gente, de uma certa maneira, se gaba que o Brasil é o celeiro do mundo, produzimos comida para alimentar o Brasil e podemos exportar. Mas, antes, a gente precisa olhar para dentro. Ainda temos oito milhões de brasileiros passando fome. E quem coloca comida na mesa são os agricultores familiares, que detêm somente 30% das áreas, enquanto o agronegócio detêm 70% da área estratégica”, pontuou.

Conforme expôs Bela, a comida produzida pelo agronegócio é exportada para virar ração, insumo base de produtos ultraprocessados. “Não converte em alimento na mesa. É muito importante que a gente enxergue não só quem está fazendo a comida, mas quem está produzindo a nossa comida. Então, quando a gente enxergar a importância, e der valor para os agricultores familiares, é que a gente consegue avançar, a gente consegue iluminar um caminho para realmente voltar a tirar o Brasil do mapa da fome”.

Também destacou que o trabalho doméstico recai principalmente sobre as mulheres. Por causa disso, é necessário que os governos criem políticas públicas para diminuir o fosso que isso gera nas oportunidades de trabalhos para elas, pontuou.
 
“É preciso reduzir, reconhecer, valorizar esse trabalho e redistribuir, não só dentro de casa, entre os homens e as mulheres, mas também para fora de casa, com o Estado apoiando, fazendo parte desse trabalho. Criando mais restaurantes populares, mais creches. A gente precisa de mais pessoas cuidando das nossas crianças, alimentando as nossas crianças, nos alimentando, fazendo esses serviços básicos que são fundamentais para manutenção da vida”. 

De acordo com ela, países desenvolvidos já tem uma política de cuidado com o horário integral de creche, licença parental igualitária entre homens e mulheres. “Isso diminui a discriminação que existe na hora de um empregador dar um emprego para uma mulher que é mãe.”

Bela pontua que o avanço está sendo feito no Brasil. “O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) lançou uma política nacional de cuidados e isso é um avanço enorme para a gente começar a falar, olhar para quem cuida”.

A apresentadora também falou das mulheres que a inspiraram durante sua trajetória. “Querendo ou não a gente carrega uma herança histórica muito forte. Do meu lado tem uma herança escravocrata. A gente ainda precisa fazer mais para libertar e emancipar todas essas mulheres que foram completamente oprimidas e subjugadas na sociedade, colocadas à margem.”

“Sou muito inspirada por mulheres, no meu livro eu falo não só da minha avó, da minha mãe, das mulheres da minha família, mas mulheres inspiradoras. Tem mulheres maravilhosas que eu cito no livro que foram fundamentais para construção do meu pensamento crítico em relação a alimentação. Porque é isso: se a gente quer comida boa no prato, alguém vai fazer essa comida e quem está fazendo essa comida precisa ser valorizada, reconhecida e remunerada”, complementa.

“O que a gente coloca no nosso prato hoje define o futuro da humanidade” 

Bela iniciou sua fala na Feira, ressaltando que comida saudável não é só aquela que faz bem para o nosso corpo físico, mental e espiritual, mas uma comida que respeite a natureza e valorize aquelas pessoas que produzem a nossa comida. “Isso é imprescindível para que a gente consiga atingir uma harmonia com o planeta, com todos os seres vivos. A gente pode transformar o mundo pela nossa alimentação. O que a gente coloca no nosso prato hoje define o futuro da humanidade”.

Para ela, comer é um ato político, uma vez que gera impactos que reverberam na sociedade. Contudo frisa que isso acontece de fato quando se tem escolha. “Se você escolhe, se você sabe que comer um alimento orgânico, agroecológico, que vem de um assentamento, é muito melhor para tudo e para todos, esse já é um grande passo, é um grande começo. Mas se você não tem recurso para adquirir isso, se você não tem a oportunidade de fazer essa escolha, você não consegue usar a comida, a alimentação, como uma ferramenta política”. 


Bela é autora do livro Quem vai fazer essa comida? / Foto: Eduardo Fernandes/CRL

Em sua avaliação a falta de oportunidade de escolha rege a população e faz com que a população se submeta a trabalhos precários, a aceitar qualquer tipo de comida. “Eu falo da transformação que a comida traz na nossa vida e eu falo da oportunidade de escolha.”

Ela elencou cinco tipos de acessos que são fundamentais para tornar a alimentação saudável democrática. Segundo Bela, o primeiro passo é o acesso ao conhecimento. “A informação é fundamental, mas só a informação não é suficiente. Você pode saber o que é melhor para você, o que é melhor para o meio ambiente, o que é melhor para o produtor, mas você não tem recursos para isso, nada feito. A gente precisa construir uma 'pontezinha' para juntar essa lacuna que existe entre o conhecimento e a prática. Educação alimentar é fundamental, saber os impactos daquilo que a gente consome.”

O segundo é o acesso físico ao alimento. “Muitas pessoas no nosso país hoje vivem em desertos ou pântanos alimentares. São aqueles lugares onde tem uma dificuldade muito grande de achar produtos in natura, produtos que a pessoa tem que percorrer quilômetros para achar um pé de alface, para achar uma banana, uma fruta. Ao mesmo tempo, há uma oferta muito extensiva de produtos ultraprocessados.”

O terceiro acesso é o financeiro. “Você pode saber o que comer, você pode achar o alimento, mas se você não tem dinheiro para comprar, de nada é feito. A fome, por exemplo, é um derivado da pobreza. As pessoas passam fome porque não têm poder aquisitivo.

O quarto acesso é a ferramentas e tecnologias. “Tem um projeto de política pública que foi fundamental para tirar muitas pessoas da fome, o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), que capta a água da chuva. A gente precisa entender todas as necessidades, ter um olhar mais macro, mais amplo para toda essa questão da alimentação, que tem impactos sociais, impactos nutricionais, impactos políticos muito fortes”.

O último acesso é ao tempo. “Você pode ter todos esses recursos que eu disse anteriormente, mas sem o tempo a gente não cozinha.”

Valorização do cozinhar

“O cozinhar faz parte de um trabalho chamado trabalho doméstico. Trabalho doméstico não remunerado. É muito importante que a gente reconheça o cozinhar dentro desse contexto. Só assim, enxergando o cozinhar como trabalho doméstico, a gente vai entender que cozinhar dá trabalho. Porque a gente precisa planejar o que vai fazer, comprar, chegar em casa, cortar, picar... Esse trabalho precisa ser valorizado na nossa sociedade, porque senão a cultura, a própria cultura do cozinhar pode estar ameaçada”, pontuou. 

Ao abordar a perda de espaço do arroz e feijão no prato dos brasileiros, a apresentadora destacou a disputa que se tem da “comida de panela”, para o mercado dos ultraprocessados. “É uma disputa muito desleal a gente colocar na mesma balança o ultraprocessado e o prato de arroz e feijão (..) Essa comida de verdade, a comida de panela, que eu gosto de chamar, é uma comida que requer trabalho e alguém tem que fazê-lo. A indústria alimentícia acabou entrando nesse lugar de, ‘ó, eu consigo resolver a sua vida toda aqui. Você pode economizar o seu tempo’. Mas trazendo muitos malefícios. Sem educação, sem conhecimento, sem suporte para que a gente consiga manter o cozinhar ativo nas nossas vidas, a gente sucumbe, a gente vai atrás do ultraprocessado, porque não tem jeito, ele é muito mais fácil”. 


“Você pode saber o que comer, você pode achar o alimento, mas se você não tem dinheiro para comprar, de nada é feito" / Foto: Eduardo Fernandes/CRL

Conforme observou Bela, o arroz e feijão estão saindo não só da mesa, como também do campo. “Estamos produzindo menos arroz e feijão. Chegamos a ponto de ter que importar feijão da Argentina. Precisamos de uma estrutura de base para conseguir manter o cozinhar vivo. O brasileiro e a brasileira estão morrendo pela boca, infelizmente, ou por falta de comida, ou porque está consumindo produtos ultraprocessados em excesso”.

De acordo com estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Fiocruz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidad de Santiago de Chile, o número de mortes prematuras (de 30 a 69 anos) associadas ao consumo de ultraprocessados no Brasil, são de 57 mil mortes por ano.

Já em relação a insegurança alimentar e nutricional grave no Brasil, recuou de 33,1 milhões em 2022 para 8,7 milhões em 2023, passando de 15,5% da população para 4,1%, uma queda de 11,4 pontos percentuais. Os dados de 2023 são do módulo Segurança Alimentar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgadas em abril deste ano.

“Esse é o grande paradoxo da nossa nação hoje. É um genocídio silencioso. E completamente silenciado. A gente perdeu a nossa autonomia e soberania alimentar e a gente precisa retomar isso desde o campo até o prato, passando por quem está fazendo a comida. O que a gente pode fazer para tornar a comida de panela uma realidade de todos? Aí entram políticas públicas, por exemplo, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, o Programa Nacional de Alimentação Escolar” 

Para ela a a educação alimentar nas escolas seria fundamental, não para que necessariamente todos cozinhassem, mas soubessem o que estão comendo. Ainda, de acordo com Bela, a questão da reeducação alimentar melhorou, mas ainda há preconceito em relação a ela, principalmente para as crianças. 

“Se a gente puder fazer uma mudança estrutural, uma mudança onde cada vez mais pessoas possam mudar a sua alimentação para melhor, a transformação vai ser mais rápida. Tudo bem consumir, se quiser, o ultraprocessado aqui e ali, mas com consciência. Tudo bem, eu sei de tudo, vou comer, mas se responsabilizando, tendo a oportunidade de se responsabilizar Porque a maior parte das pessoas que consomem esses alimentos estão alienadas dos efeitos e dos impactos para a sua saúde e para o planeta”.


Edição: Vivian Virissimo