Em primeiro lugar: é possível pensar nossas cidades a partir de um ponto de vista técnico?
Mario Leal Lahorgue*
Em primeiro lugar: é possível pensar nossas cidades a partir de um ponto de vista técnico? Sim, claro. A maior parte dos Planos Diretores existentes são pensados a partir destes parâmetros.
Mas, na verdade, esta não é a pergunta correta a se fazer. A pergunta certa é: existe algum instrumento urbanístico que funcione, na prática, desligado de relações sociais e políticas? A resposta, quando se examina o que acontece com nossas cidades, seus Planos Diretores e regulamentos urbanísticos, é um sonoro não!
E, caro leitor, isto não é necessariamente um aspecto negativo. O problema existe quando não se percebe que toda e qualquer legislação urbana só pode existir e funcionar bem quando a sociedade entende e apoia o funcionamento de uma determinada Lei. Portanto, toda Legislação, por trás de seus aspectos técnicos, é necessariamente social e política.
Este raciocínio deve ser feito quando se examina alguma política urbana ou instrumento urbanístico. É o que faremos com o Solo Criado.
O Solo Criado, também conhecido como Outorga Onerosa do Direito de Construir, é um dos instrumentos existentes com o propósito de recuperar o mais-valor da terra urbana. Na verdade, existem várias formas de se recuperar este mais-valor, com diferentes experiências e implementações ao redor do mundo.
E por que “recuperar” este valor? O princípio é simples: quando se realizam obras públicas de melhorias, ou mesmo quando se modificam regras de uso do solo nos Planos Diretores, o resultado é que os proprietários privados da terra se beneficiam destas melhorias: há um incremento no valor da terra (extensivo à propriedade edificada em cima desta terra). Mas este incremento não veio do esforço ou mérito individual do proprietário, e sim dos gastos sociais empreendidos pelo Estado. Assim, nada mais justo que tributar este ganho extra para que o retorno das melhorias feita pelo Estado reverta para a sociedade como um todo e não apenas para uma parte dela, que teve a “sorte” de ser proprietária em uma área que recebeu investimentos. Portanto, pode-se dizer que este instrumento, desde suas origens, tem um caráter político-social explícito: não são todos que devem pagar (explicitamente apenas aqueles que tem um retorno monetário específico) e a aplicação da arrecadação é pensada como uma redistribuição de recursos como justiça social.
Por isso, no Brasil, foi regulamentada pelo Estatuto da Cidade, nos seus Artigos 28 a 31. Além de estabelecer a relação entre coeficientes de aproveitamento, área edificável e área do terreno (questões técnicas), é importante observar que o Artigo 31 indica claramente a aplicação dos recursos auferidos com a adoção da Outorga Onerosa (Solo Criado): dos nove usos do recurso indicado, os três primeiros são: I – regularização fundiária; II – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; III – constituição de reserva fundiária.
Porto Alegre é interessante, pois mesmo antes da promulgação do Estatuto da Cidade, ainda em 1994 (!) criou uma Lei Complementar (LC 315/94) regulamentando o Solo Criado, com o objetivo explícito, já em seu primeiro artigo, de “incentivar uma densificação populacional em regiões da cidade melhor atendidas com redes de serviço, saneamento e equipamentos públicos” e, entre outros motivos, “obter, através dos recursos auferidos, o retorno dos investimentos públicos, buscando o desenvolvimento harmônico da cidade, particularmente através da compra de áreas urbanas incorporadas ao Banco de Terra, visando políticas habitacionais para a população de baixa renda e regularização fundiária”.
Desde lá, houve alterações na legislação municipal sobre o Solo Criado: primeiro, foi incorporado com algumas modificações pelo Plano Diretor (PDDUA) que entrou em vigor no ano de 2000; depois disso, ainda vieram: Lei Complementar (LC) 646/10; LC 703/12; Decreto 18.638/14; LC 850/19 e, finalmente, LC 946/2022. Ufa! Vou poupar o leitor das minúcias contidas nestas mudanças. Mas, vejam bem: não se faz tantas modificações em poucos anos apenas por questões “técnicas”. Mas, para simplificar, vamos lembrar que “Solo Criado” é uma venda de índices construtivos, uma permissão que se construa mais em áreas que se quer adensar, em troca de um recurso que deverá, em tese, servir para melhorias em outras áreas, habitadas por pessoas de menor recurso. Ao vender índices construtivos, a prefeitura arrecada. O gráfico 1 mostra a evolução da arrecadação, inclusive com a destinação aos Fundos correspondentes.
Voltando: a primeira Lei (a de 1994) era muito tímida na capacidade de arrecadação. À medida que o instrumento foi sendo capaz de arrecadar maior quantidade de dinheiro, também foi sendo modificada a destinação deste recurso. Até a alteração trazida pela Lei Complementar 850/2019 (e posteriormente, LC 946/2022), a receita da venda de índices construtivos era destinada preferencialmente para o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS). Quando de sua criação, em 1994, a arrecadação da aplicação do instrumento se destinava para o Fundo Municipal de Desenvolvimento (FMD), que aparece no gráfico como “outras despesas de capital” até começar a ser discriminado para o FMHIS em 2010. Esse fundo tinha como função financiar políticas habitacionais, como remoção de moradias em áreas de risco e execução de programas de melhorias habitacionais.
E o que acontece em 2019? É criado um Fundo Municipal de Gestão do Território (FMGT): quando o parágrafo único do Art. 17 da Lei Complementar 850/19 diz que “Os recursos do FMGT poderão ser aplicados no financiamento da implantação das obras de infraestrutura urbana, nas aquisições, nas desapropriações, nas despesas administrativas e judiciais decorrentes das obras vinculadas ao sistema de transporte e viário projetado (...)”, o que se está fazendo é desvincular a obrigação do dinheiro arrecadado pela venda do Solo Criado ser aplicado em habitação de interesse social. Na prática, o governo municipal agora pode arrecadar e aplicar em qualquer obra dentro da cidade. Afinal, a maioria das obras podem ser enquadradas em “infraestrutura urbana”: desde viadutos, asfaltamento, iluminação, água, esgoto, etc.
Também significa que, agora, o dinheiro pode ser investido na mesma região onde o recurso foi arrecadado, ao invés de direcionar investimentos para regiões carentes. Um instrumento, inicialmente pensado para justiça social, se torna concentrador de riqueza nas partes do território que já são privilegiadas.
Portanto, com as alterações recentes, até mesmo é possível perguntar: ainda se está recuperando mais valor? Ou o instrumento está revertendo para a valorização e a indução de empreendimentos imobiliários em algumas regiões da cidade?
Como resumo final, pode-se dizer que uma lição a ser lembrada é que nenhum instrumento urbanístico é puramente técnico, nem pode ser avaliado apenas tecnicamente.
* Mario Leal Lahorgue é professor do Departamento de Geografia (Ufrgs) e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
Edição: Vivian Virissimo