A paisagem é devastadora – uma combinação explosiva de mau gosto estético e aversão à natureza. Lembro-me de ver com angústia nas caminhadas, dia após dia, o parque sendo dizimado com a derrubada das árvores e a fuga de animais silvestres, perdidos na turbulenta Avenida Beira Rio. Cadê a Câmara de Vereadores? Socorro!
De silêncio em silêncio as retroescavadeiras só avançavam até que em junho de 2023 a tal Comissão do Meio Ambiente da Câmara Municipal , pressionada por coletivos ambientalistas, não teve mais como fazer de conta que não estava vendo o que acontecia nas suas barbas. O que era silêncio se revelou uma longa trama de interesses em que parte do patrimônio ecológico da cidade tinha virado moeda de troca com o aval da maioria da Câmara. O sinistro projeto da empresa GAM3 Parks levou de bandeja do Governo Melo a concessão do Parque Harmonia e administração de parte da Orla, permitindo, na prática, a expulsão de pequenos comerciantes em prol dos quiosques da empresa.
Parece mentira mas está lá. No contrato de concessão, de março de 2021, a empresa desembolsou meros R$ 201 mil em troca da promessa de investir cerca de R$ 200 milhões ao longo de 35 anos e devolver aos cofres públicos 1,5% do lucro anual. Socorro!
Naquele momento, a concessionária já havia decepado centenas de árvores, tacado-lhe concreto por quase tudo, transformado o parque num imenso estacionamento e sublocada a área para megashows cujos decibéis estouraram os tímpanos da vizinhança e de pequenos animais que se refugiavam na minúscula área batizada apropriadamente de “Reservinha”.
Houve protestos, manifestos, se chamou a atenção da imprensa e até se conseguiu algumas liminares mas me parece que a mobilização foi sendo colocada em segundo plano e, mais uma vez, se criou a ilusão de que as eleições resolveriam…
De oásis ecológico à parque fake
Em pleno centro da cidade, costeando o Guaíba, o Parque Harmonia foi criado no início dos anos 80 numa conjuntura nacional de crise da ditadura militar e emergência de novos movimentos sociais. Aqui em Porto Alegre, o movimento ambientalista se fortalecia com a criação da SMAM – primeira secretaria ambiental do país e da Agapan ( Assoc. Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural).
Segundo estudos de Scherer et al (2005) descritos em relatório do Ingá (Inst. Gaúcho de Estudos Ambientais) a área do Parque Harmonia – 17,5 hectares – abrigava cerca de 85 espécies de aves, sendo 05 delas exclusivas desta região, que funcionava como dormitório e berçário também de pequenos animais.
Como não há desgraça que venha sozinha, ao mesmo tempo que o Harmonia era dizimado, a SMAMUS – uma espécie de balcão de negócios urbanísticos que substituiu a antiga SMAM – acelerava o processo de arboricídio em série. Há regiões, como parte do centro da cidade, em que quadras inteiras ficaram órfãs de sombra.
Já o projeto de “parque temático” da GAM3, na prática, além de estacionamento pago e uma temível roda-gigante – prevê um shopping a céu aberto disfarçado de espaço cultural.
O processo de desmonte da proteção ambiental
Então, como uma área que está dentro das características de uma APP (Área de Proteção Permanente) segundo artigo 245 da Lei Orgânica do Município – foi devastada dessa forma?
Não há resposta única e a história do desmonte da legislação ambientalista ainda precisa ser escrita, a muitas mãos. De fato, a “boiada” continua passando no país inteiro sob o Governo Lula; aqui no RS Leite ‘liberou geral’ tanto o uso de agrotóxicos quanto a usurpação de áreas de proteção ambiental e temos uma Porto Alegre devastada por um longo processo de sucateamento das estruturas estatais de preservação e fiscalização ambientais.
É certo que contribuiu com esse processo a abertura generalizada para a privatização híbrida, via as parcerias público-privadas (PPPs), regulamentadas pelo Governo Lula lá em 2004. Mas é evidente que aqui em PoA a devastação deu um salto quântico sob os Governos Marchezan-Melo, sempre em sintonia com o Eduardo Leite.
Alguns detalhes
Em 2019, Marchezan criou o PLE 036/19 – “o ovo da serpente” do vale tudo. Aprovado pela maioria da Câmara (aquele mesmo pessoal que não estava vendo nada na vizinhança) em dezembro de 2020, no apagar das luzes. Qual seu conteúdo?
Autoriza a emissão de Licenças por Adesão e Compromisso (LAC), que na prática significa o autolicenciamento e a promessa de respeitar normativas ambientais, sem garantir fiscalização e prerrogativas ambientais;
Em março/2021, prefeito Sebastião Melo regulamenta o processo de autolicenciamento com a Lei 12.811/21;
No mesmo mês, com uma rapidez astronômica, é assinado contrato de concessão com a GAM3 Parks;
Em agosto/2021 é emitida a Ordem de início da concessão e entra em curso uma série de modificações do projeto original, autorizações, isenções e irregularidades sob o ponto de vista de legislações ambientais constitucionais, como o licenciamento ambiental, ainda previsto como exceção na nova modalidade em caso de supressão de vegetação e/ou estar numa APP;
Dezembro/2022 – Para “resolver” o problema das árvores, o secretário da SMAMUS tirou da cartola a tal “Autorização Especial de Remoção Vegetal” .
Por fim, cabe ressaltar o bravo ativismo ambientalista. Entre junho e setembro/23 os processos de embargo temporário da obra que aconteceram e o destaque na imprensa foram fruto da energia militante desses movimentos, apesar de todos os limites.
Mal choramos a destruição total do Harmonia e veio a tragédia anunciada da enchente de maio, que obviamente tem dimensões muito maiores sob vários aspectos.
Creio que a grande lição que fica é que aquela velha e boa máxima – Só a luta muda a vida- está mais atual e urgente do que nunca.
* Professora aposentada de História da rede pública municipal/PoA e escritora.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Vivian Virissimo