Por isso me pergunto, qual o alcance do livro? Quando começa o sonho?
Semana passada tive a incrível experiência de participar do projeto Adote um escritor. Ou escritora. Ou, em conceito não binário seria escritorie.
Ao chegar na Escola Deputado Marcírio Goulart Loureiro, nos altos de Partenon, depois de subir e descer e subir vários morros, cheguei ao bairro Cel. Aparício Borges. Haja vista!
Fui recebida com muita amorosidade pelas professoras. Enquanto caminhávamos pelo corredor tive uma surpresa enorme! Me esperavam vários desenhos, poemas, xilogravuras penduradas em cordéis e outros colados nas paredes. Eram meus poemas sendo ressignificado pelas leituras. Meu sorriso ficou enorme.
Ser escritora, ou escritorie, é um ofício solitário. Lembro há muitos anos, quando escrevi o meu primeiro livro (sem muita consciência do que isso viria a me trazer mais tarde), já dava para sentir que dar vida a um livro é como lançar uma garrafa ao mar, com uma cartinha dentro.
Assim foi como me senti na Escola do Marcírio e das professoras e das/dos/des alunas/es/os. Quando eu era criança e também estudava na escola pública, uma vez escrevemos cartas e bilhetes que foram amarrados em balões e soltos no ar. Um dia chegou uma resposta. Esse dia não se esquece. Esse dia aqueceu fortemente nossas almas.
Sempre agradeço as devoluções que vêm, que voltam. Hoje, estou fazendo isso desde meu outro lado. Quantos lados têm as vidas?
Por isso me pergunto, qual o alcance do livro? Quando começa o sonho? Qual a função da literatura nas nossas vidas? Para que escrevemos? O que fazemos com o desejo de ler, quando não o satisfazemos? Quantas pontes tende a literatura? Eu sonho o livro, ou o livro sonhará uma história e eu serei, em alguma dimensão, a pessoa escolhida para narrá-la?
Quando eu escrevo não penso no que virá depois. Penso no agora, num eterno presente. A onde me levam os livros? Livros que um dia foram sonhos sonhados e, de repente, eu acordo e estou falando desse sonho na frente de um grupo de estudantes.
Comecei falando da minha experiência em uma escola no bairro Parthenon, em Porto Alegre. Quando essa coluna sair, eu vou estar em Boa Vista, capital de Roraima, norte do Brasil, fronteira com Venezuela, conversando com estudantes de outra escola, de outro bairro.
Esse também foi um dia, um sonho. Um sonho que não cabe em um livro, porém faz parte da literatura.
Como escritora/escritorie me pergunto de que é capaz a literatura?
Como pessoa que se assume não binária, gosto de jogar permanentemente com o movimento, com o trânsito, com desarmar e desmontar caixas, os lugares rígidos, que não existam unicamente duas respostas, duas versões, duas ações. Ser não binárie não é sobre mim, é sobre nós. Sobre não se ter respostas, não encontrar o lugar certo. Ou, sim, o lugar certo agora, mas depois não sabemos. Ser não binárix, no meu caso, não é sobre sexo ou gênero, ou, tal vez, também, mas trata-se de não ter respostas prontas e únicas. Se sou argentina ou brasileira? Sou de Abya Yala.
Gosto de pensar que a literatura está para sonhar. E para muito mais. Ela está para que possamos entender algumas coisas, visitar lugares que nunca poderíamos ir, seja por distância, seja por tempo/passado/futuro, seja porque é a casa de outras pessoas que nunca abririam a porta e nós nunca tocaríamos a campainha. Seja para (re)criar essa outra casa. Seja para revisar e sanar os traumas. Seja para que hoje eu esteja aqui, escreVendo e você aí, lendo e pensando. E a gente se encontre num espaço-outro-tempo-nuvem.
Gosto de saber quais dos meus poemas gostaram mais, mexeram com as pessoas. Esse é o meu, me diziam enquanto eu olhava e tirava fotos para poder ver e ler com mais dedicação mais tarde. E esse o meu, dizia uma voz mais baixinha enquanto me falava do seu amor pelos gatos, identificando-se com um dos poemas a Violeta, que nos meus dois poemários têm criações dedicadas a ele, igual que a gata cristie, quem nos deixou no 25 de julho do ano passado, no dia das escritoras/es/ies.
Mais tarde se aproximou uma moça tímida, que não se animou a falar durante a conversa com a turma. Estava com seu caderno aberto, olhando fixo para mim, de olhos escuros e fortes. Leu uma pergunta que estava anotada junto a uns versos de um poema meu. Eu também fui muito tímida e sei o difícil que é, às vezes, falar em voz alta para um monte de gente. Ela mencionou a lua cheia. Fez perguntas e sorriu.
Ao sair já era noite. Antes de subir no Uber comentei com Anamaria a belíssima vista que tinha a Escola. Não era noite de luar, mas para isso está a imaginação e a poesia. Fiquei com a sensação da lua cheia e de um poema que já não era só meu.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Vivian Virissimo