Em seus mais de 250 anos de existência, Porto Alegre carrega em sua história um importante legado democrático, da participação social e, inclusive, da luta antirracista no nosso país. Foi nesta cidade que nasceram e se consolidaram experiências como o Fórum Social Mundial e o Orçamento Participativo. Foi nesta cidade que a Campanha da Legalidade se tornou um marco de resistência ao golpe de Estado que culminaria na Ditadura Militar de 1964. Foram nessas ruas que o movimento negro organizado disputou as narrativas e a mente da população para termos o Dia da Consciência Negra (que hoje se tornou feriado nacional). Aqui tivemos a eleição de uma Bancada Negra composta por cinco vereadores negros e comprometidos com as lutas da população negra e periférica desta cidade
Mas, infelizmente, hoje, Porto Alegre é a capital mais segregada racialmente do país. Com a população negra hiper concentrada em seis bairros, e tendo renda e índices sociais muito abaixo da população branca. Foi também a cidade que reelegeu um projeto de desmonte das políticas públicas, de entrega do patrimônio público, de fortalecimento da especulação imobiliária, de desalento ao povo pobre e trabalhador e que teve sua gestão marcada pela incapacidade de lidar com eventos climáticos, o que ocasionou a enchente de maio. Projeto encabeçado e liderado por Sebastião Melo.
Se não bastasse esse programa e projeto de descaso para o povo pobre e nossa cidade, há mais um elemento que, no mínimo, chama atenção: o fato de em nove pleitos que Sebastião Melo já disputou, esta foi a primeira vez que o mesmo se apresenta enquanto um candidato negro. O prefeito reeleito alterou sua autodeclaração racial de “branco” para “pardo”.
O movimento negro brasileiro, com muitas décadas de luta, conseguiu romper barreiras e conquistar importantes posições públicas. Uma delas é a definição do Estatuto de Igualdade Racial identificando pessoas negras como sendo aquelas autodeclaradas pretas ou pardas. Hoje pela primeira vez na história, a maior parte da população se define como afro-descendente, ou seja: negra. Isso é fruto de um processo de avanço da consciência racial.
Um outro marco importante da luta do movimento negro foi a conquista de políticas públicas reparatórias, como as cotas raciais nas universidades, concursos públicos, e também nas eleições. Assim como a distribuição de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (conhecido como Fundo Eleitoral) específicos para candidatos autodeclarados negros.
Assim, nós, entidades do movimento negro gaúcho, estranhamos que após décadas de atuação política como um homem branco, o atual prefeito se reconheça enquanto negro, da noite para o dia, apenas em 2024. Uma atitude incoerente com todo histórico de Sebastião Melo. Estranhamente, ele que se apresentou como um homem branco em todas eleições anteriores, agora se descobriu como uma pessoa negra. Melo nunca foi reconhecido por ser negro, sua cor de pele não foi motivo de exclusão ou violência, e nem mesmo um marco para defesa dos direitos sociais da população negra.
Pelo contrário: além de desrespeitos públicos aos vereadores da Bancada Negra, o orçamento para políticas de combate ao racismo diminuiu de R$ 380 mil para apenas R$ 11 mil, e em seu programa político nestas eleições não existe menção sobre combate às desigualdades raciais na capital mais segregada do Brasil. Além disso, Melo vetou integralmente o projeto de lei que institui a Política de Valorização dos Territórios Negros e pouco contribuiu para a regularização fundiária de territórios quilombolas – a exemplo do Quilombo Kédi.
Os avanços políticos para a distribuição de recursos eleitorais visando a reparação histórica e maior participação negra na política não foram acompanhadas de uma maior fiscalização do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais Regionais Eleitorais, dificultando assim sanções a partidos que não cumprem a lei, e a candidatos que utilizam de má fé para obter recursos públicos.
Dessa forma, no mês da Consciência Negra, nós, entidades do movimento negro gaúcho, queremos pedir respeito a nossa luta por igualdade racial. Não aceitamos o oportunismo eleitoral, nem estelionato racial, daqueles que nunca contribuíram em nossa batalha contra o racismo, e em defesa dos direitos da população negra. Não será em nome da nossa cor e muito menos em nome da nossa luta que permitiremos mais quatro anos de desalento e descaso com a nossa gente!
Povo negro unido é povo negro forte! Seguimos na luta por democracia, justiça social e igualdade racial.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko