Santa Vitória do Palmar é uma cidade que fica no extremo-sul do Rio Grande do Sul, na divisa com o Uruguai e às margens da Lagoa Mirim. Com pouco mais de 30 mil habitantes, a cidade é conhecida por seus quatro faróis que iluminam uma área de cerca de 5000 km². No entanto, a luz, que originalmente deveria guiar embarcações, hoje clareia um problema que põe em risco a vida dos santa-vitorienses: a precariedade e insegurança presente nos ônibus que transportam pacientes que necessitam de atendimentos médicos nos municípios vizinhos.
A “Terra do Faróis”, como é conhecida, não possui uma estrutura de clínicas capaz de atender todas as demandas da população. Além disso, o único hospital da cidade não possui médicos especialistas para atendimentos em consultas, exames e cirurgias. É por esse motivo que muitos pacientes são encaminhados para hospitais de municípios vizinhos, como Rio Grande, cidade que faz fronteira, mas fica a mais de 200 km de distância, Pelotas e São Lourenço do Sul. No entanto, moradores que utilizam o transporte fornecido pela prefeitura do município denunciam que os veículos utilizados para esses deslocamentos são extremamente precários, inseguros e desconfortáveis para as viagens.
As denúncias foram recebidas por Vera Borges, professora de Santa Vitória do Palmar, que expôs o caso a público. Em uma das denúncias, um passageiro, que preferiu não se identificar, indica que a situação ocorre com frequência e conta à Vera que está “saindo agora com o ônibus da saúde sem cinto. Um dos piores que já subi”. O relato segue e a pessoa diz: “Consegui um banco com cinto, mas o banco está com problema. O ônibus vai até São Lourenço, se chegar. Fede de tão velho”.
Precariedade no transporte
Os relatos sobre as condições dos ônibus fretados pela empresa Bosembecker e Cia LTDA abrangem a idade dos veículos, que já ultrapassa os 25 anos e vão até problemas estruturais e mecânicos, como pneus lisos e bancos quebrados sem cinto de segurança. A soma de todos esses problemas resulta em viagens inseguras e que apresentam riscos de acidentes. Em outro relato, um passageiro que também pediu anonimato conta que “o ônibus parece que vai quebrar no meio”.
Para além da insegurança presente nas viagens, os passageiros ainda sofrem com o desconforto. Os ônibus, por serem antigos e mal conservados, possuem bancos quebrados que impossibilitam o conforto necessário. Aqueles que ainda funcionam apresentam estrutura desgastada, além de possuírem um mau cheiro persistente pela falta de limpeza, o que torna a experiência bastante penosa. Esse cenário é ainda mais grave ao relembrar que a maioria dos viajantes são pacientes em tratamento médico, que precisam de condições adequadas para suportar a jornada e preservar o bem-estar durante o deslocamento.
De forma anônima, um acompanhante conta sobre a viagem que fez no dia 22 de outubro deste ano com sua mãe de 82 anos para realizar procedimentos pré-operatórios da cirurgia de catarata em Rio Grande. Ele desabafa e diz que “a forma como ela [sua mãe] e os demais pacientes são transportados é desumana”. Ela também fala sobre a estruturas dos bancos e a condição dos cintos de segurança. “Os bancos formavam um buraco onde ficávamos encaixados, prejudicando a postura e agravando os problemas de coluna. Em muitos bancos o cinto de segurança não funcionava, eu tive que literalmente atar minha mãe para que não fosse sem cinto”.
Outro problema que agrava as viagens é a falta de banheiro nos ônibus. Em um dos transportes, relatos contam sobre o caso de uma senhora idosa em tratamento de câncer que chegou a defecar na roupa. No entanto, os transportes são feitos para pessoas com a saúde debilitada que viajam justamente porque precisam de tratamento médico, como o caso dessa idosa.
Recorrência
O problema é recorrente e vários são os relatos que expõem a situação. No dia 11 de setembro também deste ano, um dos ônibus da mesma empresa contratada deveria sair as 2h30 da policlínica da cidade, mas saiu apenas uma hora e meia depois. Não suficiente, o mesmo veículo estragou na estrada, apresentando “problemas na embreagem”, conta o relato. O percurso só foi retomado horas depois. Os passageiros afirmam que, em razão disso, chegaram mais de uma hora atrasados em suas consultas médicas.
Esse percurso para alguns chega a ser de até 500 km, visto que o transporte possui três cidades em sua rota. Reações à denúncia feita por Vera em suas redes sociais retratam a indignação de quem utiliza o transporte. “É inaceitável que [moradores] tenham que sair de suas casas na madrugada, percorrendo mais de 500 km, muitas vezes sem uma alimentação adequada, apenas para buscar o tratamento que deveriam ter acesso em sua própria cidade. Essa realidade é um golpe duro para aqueles que já estão sofrendo”, conta a moradora Katia Duarte.
A falta de fiscalização adequada põe em risco a vida desses passageiros. Sem outra opção, eles são obrigados a embarcar nos ônibus, já que a alternativa seria deixar de se consultar. “Minha mãe está com vontade de desistir da cirurgia porque com a idade que está não aguenta mais tudo isto”, conta o relato compartilhado pela professora.
Exaustos, os passageiros ainda sofrem com a demora para retornar aos seus lares. Os ônibus, que além de precários, são em baixa quantidade, fazem com que a viagem seja ainda maior. O trajeto passa por três cidade: Rio Grande, Pelotas e São Lourenço. Só após chegar no último ponto e pegar o último passageiro que consultou é feito o trajeto de volta. Esse problema de logística faz com que pessoas que encerraram seus atendimentos pela manhã tenham que esperar até o final da tarde para embarcar de volta à Santa Vitória.
“Saímos da cidade [Santa Vitória do Palmar] por volta das 3h da manhã, a última vez que fomos foi ontem, terça-feira, dia 22 de outubro [...]. Todos os exames foram realizados até às 10h da manhã, depois ficamos perambulando pela praça tal como gente que vive nas ruas, no supermercado, onde há um único banco, no saguão da Santa Casa [...]. Saímos de Rio Grande às 16h exaustos física e emocionante após ter passado por tanto desrespeito e humilhação”, finaliza a denúncia compartilhada por Vera.
Na denúncia que deu início à exposição do caso, Vera questiona: “Até quando a nossa saúde vai ser renegada desta forma? Até quando a cidade de Santa Vitoria do Palmar, vai ter seus pacientes transportados em ônibus sucateados?”.
O que diz a Prefeitura
Em nota, a Secretaria de Saúde encaminhou declarações do prefeito Wellington Bacelo dos Santos (MDB). Ele justifica que “o fato ocorrido com o ônibus da empresa Bosembecker, que é uma empresa terceirizada, parece ter sido um caso isolado”.
A explicação segue: “A frota própria da Secretaria de Saúde passa frequentemente por avaliações mecânicas e revisões dos carros novos em concessionárias autorizadas. São acompanhadas diariamente as trocas de óleo, de pneus e os balanceamentos. O que ocorreu com este ônibus da empresa Bosembecker, que é uma empresa terceirizada, está sendo averiguado através de um processo administrativo especial”.
A declaração enfatiza que a empresa responsável é uma terceirizada e que, até então, havia conhecimento de que “foi um fato isolado”. Ele afirma que “a Secretaria de Saúde tomou conhecimento do ocorrido por meio de uma notícia jornalística, pois até o momento não houve nenhuma denúncia formal feita por parte dos passageiros que realizaram a viagem naquele dia”.
Questionado sobre a precariedade dos ônibus oferecidos pela empresa responsável, Bacelo dos Santos responde que “a contratação é feita por meio de processo licitatório, o que permite à empresa utilizar qualquer ônibus de sua frota, desde que atenda aos requisitos exigidos”.
Ele encerra com a justificativa de que “a Bosembecker possui cerca de 20 ônibus, e qualquer um desses pode ser disponibilizado, desde que tenha os 44 lugares e cumpra o que foi solicitado na licitação”.
Edição: Vivian Virissimo