“As eleições, cada vez mais, se relacionam pouco com a realidade”. A afirmação e a preocupação são do sociólogo Jorge Branco, também mestre em Ciência Política. “É perigosíssimo”, enfatiza citando como prova disso o volume de votos recebido por Jair Bolsonaro em 2018 e, também, embora não eleito, em 2022. “Um surto de uma interpretação absolutamente espantosa que espantou o mundo”, ressalta.
Diretor-executivo do site Democracia e Direitos Fundamentais, ele conversou com Brasil de Fato RS sobre este e outros fenômenos dos tempos atuais, como a ascensão da ultra direita, as ilusões da esquerda, o casamento do neoliberalismo com a direita extremada, a gênese do personagem conhecido como “pobre de direita”, as eleições nos Estados Unidos – e o que representam para o Brasil – e no Uruguai neste fim de semana e muitos outros assuntos.
Acompanhe:
Brasil de Fato RS – Em Porto Alegre, temos o enfrentamento entre o campo popular-democrático e uma chapa e um candidato bolsonarista. Como vê este segundo turno?
Jorge Branco – Melo fez um movimento típico do centro no Brasil e talvez até seja uma peculiaridade brasileira, nessa emergência da extrema direita no mundo. A extrema direita no Brasil cresce também porque o centro é captado, é magnetizado. Ele fez, Michel Temer fez...
Pende à extrema direita. É interessante isso até porque vimos recentemente que, nas eleições da França, o centro não pendeu para a extrema direita...
Não pendeu. É uma singularidade brasileira.
Embora lá também haja um avanço respeitável da extrema direita.
É um grande crescimento da extrema direita. Ela não perdeu. Não ganhou mas continuou crescendo especialmente na Alemanha, nos países nórdicos, na França.
Melo encontrou-se melhor – e a redundância é proposital – no extremismo da extrema direita
Na Espanha.
É uma extrema direita com conotações fascistas e nazistas. Um pouquinho diferente da espanhola e da portuguesa. A da Espanha muito vinculada a uma nostalgia da ditadura franquista. Em Portugal, que resolveu o fim da sua ditadura por uma revolução, por uma ruptura, pega mal chamar o espírito do (ditador António de Oliveira) Salazar. Então é uma outra forma da extrema direita. Mas é anti-imigrante, nacionalista.
A extrema direita é um fenômeno mas não é igual. No Brasil, cresce alimentada pelo conservadorismo mas também pelo centro. O prefeito Melo fez essa opção. Encontrou-se melhor – e a redundância aqui é proposital – no extremismo da extrema direita brasileira. Nessa campanha, buscou taticamente fazer um tratamento publicitário e se distanciar (da ultra direita) para buscar o centro.
Porto Alegre é uma cidade em que predomina o voto de centro. Predomina um voto até mesmo de centro-esquerda. Na década de 1990, isso fez o PT o maior partido da esquerda na cidade.
E antes fez Leonel Brizola.
Assim. Há uma esquerda, há uma direita, mas há uma centro-esquerda. O voto de centro-esquerda é um voto progressista mas tem que ser conquistado a cada eleição. Tem que pedir em namoro todo dia.
Levar flores.
Levar flores, levar para jantar. Parte desse eleitorado progressista se aninhou no Melo.
A abstenção foi maior do que a votação do Melo...
A maior abstenção foi na pandemia, mas vêm crescendo fortemente. Logo ali vamos ter um decréscimo da população na cidade. E a população está envelhecendo.
Quem não entrega não é a democracia. É o neoliberalismo
Está se aposentando e saindo para ir morar no litoral.
Porto Alegre já foi a quinta, sexta maior capital do país. Hoje é a 12ª ou 13ª em população.
E o fato da democracia não estar entregando o que promete na questão de direitos? Temos um Estado sucateado e não há políticas públicas para chegar ao povo da periferia. Não seria também um motivo para a abstenção?
Isso é o epidérmico. Quem não entrega não é a democracia. É o neoliberalismo. Em Portugal, entrega. Na Suécia, entrega. No Uruguai, entrega dentro dos seus limites. Mas o que vivemos foi um ascenso absurdo, espiral, do neoliberalismo. Não é nem diminuição do Estado. É o controle total do Estado. A aberração de uma autonomia do Banco Central. Como assim? Votamos num governo para que controle a política fiscal, a política monetária. Não para que 40 bancos se juntem e escolham o presidente.
Na verdade, a 'autonomia do Banco Central' não é autonomia técnica, para os técnicos decidirem. É para tirar do controle da sociedade. É para passar a autoridade monetária para o controle dos bancos. Será que esses mesmos gostariam então que passasse a reforma agrária para controle do movimento dos trabalhadores sem-terra? Passasse a política de saúde para o controle dos trabalhadores em saúde? Não, né? É o único caso. Então, desse ponto de vista, o neoliberalismo privatizou o Estado. Radicalizou o controle do Estado. Para garantir a remuneração do grande capital cria coisas que as pessoas acham legal. Quem não gostaria que houvesse a supremacia da técnica na política? Quem não gosta que as contas públicas tenham responsabilidade?
A emenda constitucional do teto, a lei de responsabilidade fiscal, nada mais serve do que para garantir que, em primeiro lugar, pague-se juros. Do que sobrar, distribui. Então, a democracia leva uma culpa que não é dela. Se não houvesse democracia seria pior ainda. Mais fácil. Porque foi na democracia que se conseguiu políticas sociais como o SUS que faz o Brasil chegar muito perto da utopia social-democrata da Suécia.
Friedrich Hayek, um dos grandes teóricos do neoliberalismo, mandou uma carta ao ditador Salazar, de Portugal, dizendo-lhe para segurar os arroubos da democracia
Mas aí tem outra armadilha. Na cabeça das pessoas, o liberalismo ou o neoliberalismo, é quase como um irmão gêmeo da democracia. Tem uma relação muito íntima com a democracia. Só que a primeira grande experiência do neoliberalismo foi com a ditadura do (general Augusto) Pinochet, no Chile. Obteve os resultados mais radicais. Existe esse engodo da questão da democracia e do liberalismo, que um não vive sem o outro...
O Friedrich Hayek, um dos grandes teóricos do neoliberalismo, mandou uma carta ao Salazar, ditador de Portugal. Ele diz (algo como) 'Prezado Presidente do Conselho dos Ministros, envio este livro aqui para contribuir para que o senhor possa segurar os arroubos da democracia'... O neoliberalismo tem pouco a ver com o liberalismo e o liberalismo tem pouco a ver com a democracia. O que a teoria política do liberalismo tem a ver é com a ideia de liberdade, de igualdade formal entre os indivíduos. Mas se a gente for olhar rigorosamente, nenhum dos grandes clássicos da teoria liberal fala em democracia. Democracia é uma invenção do século 20. Não ocorre no século 18 e nem no 19.
A democracia que conhecemos cresce e evolui no pós Segunda Guerra Mundial e está muito vinculada com a luta dos trabalhadores. Sou uma pessoa esquerda e não tenho nenhum constrangimento de dizer que a democracia é uma invenção dos trabalhadores, com base em uma construção histórica das ideias. As ideias a gente também as pega na Grécia Antiga, até na Idade Média, em São Tomás de Aquino, em Santo Agostinho. A democracia como a gente conhece é um produto da Segunda Guerra. É o partido trabalhista britânico, do primeiro-ministro Clement Atlee, que cria os ministérios da educação e da saúde depois de derrotar eleitoralmente o partido conservador.
Derrota o Churchill.
Derrota o Churchill. E não era qualquer um. Era o primeiro ministro conservador que enfrentou o nazismo. A democracia não está vinculada só à existência de eleições de quando em quando mas à ideia de que ela cria espaço para lutar, manter e garantir direitos. E direitos só se efetivam com políticas públicas. Não se efetivam pelo mercado. Não se efetivam com o 'Nós por Nós'.
Para que as pessoas tenham sobrevivido à enchente no Rio Grande do Sul havia a solidariedade de milhares de pessoas aliadas à presença do Estado. E esse Estado só estava presente porque há como exigir que ele esteja presente. Porque, na história violenta do Brasil, o Estado já esteve presente para matar trabalhador, para retirá-los da terra. Desta vez esteve presente para salvar vidas.
Voltando então às eleições em Porto Alegre: muitas pessoas Brasil afora ficam se questionando como pode um prefeito que não fez a manutenção do sistema de proteção contra cheias ter sido absolvido pelos eleitores.
Há duas coisas aí. Uma é a mentira. Sempre existiu mas não em escala industrial como se vê hoje. E as grandes empresas de comunicação também têm muita responsabilidade. Nos Estados Unidos a imprensa também se posiciona, omite e apresenta mas, no balanço, há contraposição.
As mentiras encontraram cancha para se reproduzirem. Há um desalento das pessoas com as grandes emissoras e aí acreditar no famoso 'Tio do zap' é mais plausível. Há outras formas de socialização que emergiram, que não tinham o poder que estão tendo, como as relações religiosas, que também formam opinião, de um jeito que não formavam há 20 anos. Criaram-se vários círculos de socialização e de formação de opinião.
Minha percepção é que ganhou a direita que entrou nos partidos de centro
As eleições no Brasil se descolaram demais da política. Então, vale o que parece ser. Discussões sobre frações de classe, relações sociais, construção de alianças, partidos políticos, programas, valem menos. As pessoas dizem que ganhou o centro.
Como assim? Porque o PSD saiu vitorioso? Mas qual é o programa do PSD? Ninguém sabe. Minha percepção é que ganhou a direita que entrou nos partidos de centro. A gente continua mantendo o MDB como partido de centro...
A história de chamar a direita de centro, de Centrão, algo que veio da Constituinte de 1988, está muito mal contada. O Centrão não é Centrão. É Direitão.
E no Brasil, nos últimos dez anos, mais ainda. Esse descolamento explica uma parte, porque o prefeito ao dizer 'A gente não tem ideologia, não tem partido, tá ali presente', criou uma... E com uma campanha eleitoral competente do ponto de vista publicitário, tornou a irrealidade a realidade...
Era essa a proposta: tornar real o irreal.
Qual é o problema para a democracia? É que as eleições, cada vez mais, se relacionam pouco com a realidade.
O que é um negócio assustador.
É perigosíssimo. E o maior exemplo disso foi a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Um surto de uma interpretação absolutamente espantosa que espantou o mundo.
Depois de 700 mil mortos na pandemia, de deboche com os doentes imitando a pessoa morrendo, de negar vacina. Como essa pessoa recebe um voto? E como tem gente que se junta a ele para fazer campanha?
Para fazer campanha por um governo desastroso que não acertou em nada.
Essa é a nossa visão. A deles é outra...
São evidências fáticas também. Não é só a interpretação. O governo Bolsonaro nem mesmo foi capaz em política de defesa. O que ele fez? Botou milhares de militares, com uma FG (função gratificada) aqui, uma FG ali. 'Ah, ele foi voltado para as forças armadas.' Não, foi voltado para os militares. Tudo desandou no governo dele.
Tinha caminhão de som dizendo que, se a Manuela se elegesse, a população ia comer carne de cachorro
A grande pergunta, que não tem resposta, é a seguinte: ´Qual a obra do governo Bolsonaro?`
Quatro anos atrás, o prefeito Melo foi eleito numa onda de crescimento da extrema direita. Tinha caminhão de som dizendo que, se a Manuela (D'Ávila, sua adversária) se elegesse, a população ia comer carne de cachorro e que Porto Alegre ia virar uma Venezuela. As pessoas não sabem nem onde fica a Venezuela. O regime venezuelano é democrático e de economia de mercado. Lá tem empresa privada. É capitalismo na Venezuela. Ah, o regime do Maduro... Mas o rei da Arábia Saudita, quando manda matar um jornalista, é o rei da Arábia. É o governo saudita.
Esse descolamento da realidade se fez presente aqui. A culpa (das cheias) não é só do prefeito. Não choveu só em Porto Alegre. Mas ele tinha que ser responsabilizado pelo que lhe coube nessa parte do desastre. Que foi não ter manutenção, foi parar os investimentos. Essa responsabilidade tem que ser compartilhada com os governos que não acompanharam a modificação climática. Houve avisos.
O sociólogo Jessé Souza lançou um livro sobre o pobre de direita, um personagem que tem tudo a ver com essa ideia da irrealidade da política hoje. E o pobre de direita tornou-se ainda mais protagonista dos anos Bolsonaro para cá. Parece que se espelhou no comportamento do Jair Bolsonaro. Quem é esse pobre de direita? Como se produz esse contrassenso?
O pobre de direita não é um fenômeno atual. Ele, por exemplo, elegeu Donald Trump. Ele foi muito votado nas regiões operárias dos Estados Unidos, nas regiões de estadunidenses brancos, descendentes de irlandeses ou de ingleses, etc.
A genialidade do mal do neoliberalismo e da extrema direita é que coloca as vítimas como culpadas pelo crime
O cinturão da ferrugem.
O cinturão da ferrugem. O Brasil é um país conservador. Bem, mas então como elegeu o Lula três vezes e a Dilma duas? Assim como elegeu o João Goulart ou o Rio Grande do Sul e a Guanabara elegeram Leonel Brizola. Isso nunca eliminou o conservadorismo da sociedade brasileira e que também alcança os trabalhadores, os muito pobres que são ou foram socializados numa sociedade conservadora que revitaliza esse conservadorismo em uma situação de crise, com muitas alterações de ordem.
É um conservadorismo que acaba criando um texto, tipo 'A mulher vai voltar para a cozinha, o negro para a limpeza'. Quem estuda o voto feminino perceber que, quando se cruza gênero com renda, gênero com nível de formação, há uma abstenção maior entre mulheres de baixa escolaridade, com voto conservador maior. A crise vivida de 2010 para cá fizeram os Estados Unidos elegerem o Trump e fazem crescer a extrema direita na Europa.
A genialidade do mal do neoliberalismo e da extrema direita é que coloca as vítimas como culpadas pelo crime quando o que ocorre é a concentração de riqueza, o descontrole sobre os muito ricos. Mas o eleitor ali acha que (seu fracasso) se deve porque não acredita em Deus ou porque acredita num Deus diferente. As pessoas foram buscar um certo conforto em elementos culturais do passado. Por isso gosto de usar o termo reacionarismo. É uma reação ao mundo moderno. Uma tentativa de um freio conservador. Um freio onde as meninas tem que vestir rosa e ir lá pra cozinha, e os meninos vestir azul e trabalhar e decidir.
A direita da ditadura militar era bem melhor do que isso aí. Não batia continência para alienígena
A atitude de bater no peito e dizer 'Eu sou de direita' era algo que não havia nem mesmo nos 21 anos de ditadura militar. Nenhum dos generais ou dos próceres do regime dizia isso. Mas, quando vemos essa emergência da extrema direita, esquecemos que o Brasil tem quase quatro séculos de escravidão e de preconceito que continua depois. Também esquecemos que o Brasil sediou o maior partido fascista fora da Europa, a Ação Integralista Brasileira, que era, nos anos 1930, o maior partido de massas do Brasil.
A direita que dirigiu a ditadura militar era bem melhor do que isso aí. Não batia continência para alienígena. Não foi isso que o (general e ministro) Golbery do Couto Silva e o (general-presidente) Ernesto Geisel fizeram. Na ditadura do Ernesto Geisel foi firmado o acordo anti-Estados Unidos com a Alemanha de energia nuclear. Era uma ditadura, torturava e prendia, mas tinha um jogo de não alinhamento que compunha com a Iugoslávia, com a Índia. O Brasil foi primeiro país a reconhecer a independência da África Portuguesa.
Angola, Moçambique...
Angola foi o primeiro, todos eles, depois Guiné-Bissau, Cabo Verde, todos eles. Só não deu tempo de Timor porque foi 24 anos depois.
Sobre integralismo é interessante é os integralistas ocuparam postos no governo (na ditadura) mas não foram de grande notoriedade. E quem deflagrou o movimento de 1964 foi um integralista, o general Olympio Mourão Filho, que pôs sua tropa a marchar de Minas para o Rio...
O que muito irritou o núcleo inteligente que planejava o golpe havia tempo. Daí um maluco cheio de iniciativa - o golpe aconteceria de 31 de março para 1º de abril de 1964. Repito: o que cresceu mesmo foi o reacionarismo. É o conceito mais adequado à extrema direita e à direita nesse campo, uma reação ao tempo moderno. Aquilo que a gloriosa Regina Duarte disse na campanha de 2018: 'Quero o meu Brasil de 50 anos atrás de volta'. É só fazer as continhas: 50 anos para trás era a ditadura, era o AI-5, mulher em casa, preto lavando carro...
Fora da universidade.
Essa ideia de mundo de pernas pro ar é que embala esse conservadorismo. Engraçado é que, com sua associação ao neoliberalismo, a extrema direita passou a ser capitalista. Ela não era. Os integralistas falavam em estatização, em enfrentamento ao liberalismo, assim como o nazismo e o fascismo. Mas a extrema direita do século 21 assume um programa neoliberal.
Sempre houve pobres votando contra si, ou agindo contra si, ou defendendo alguma forma de humilhação, o humilhado defendendo o humilhante. Mas agora (aparece) como um fenômeno político. É a singularidade para a qual o Jessé Souza está chamando a atenção. O pobre quer votar, quer continuar pobre, ao fim e ao cabo, mas com segurança, com ordem, porque o mundo está tão difícil. E, além de tudo, o meu filho e a minha filha não me obedecem.
E que agora virou gay. 'Minha filha se casou com outra mulher.' Será aí que reside a história da palavra antissistema?
Na verdade não é um antissistema. Bolsonaro não é antissistema. Não, ele é o sistema. Ele é o sistema se corrigindo ou tentando se corrigir. A democracia ficou muito contaminada pela esquerda, pelos trabalhadores, pelo SUS, por política habitacional, seja no Reino Unido, seja na Suécia, na Irlanda, o marxismo cultural.
É triste reconhecer que a extrema direita chegou primeiro na sociedade para depois chegar nas eleições
Mas a palavra antissistema tem mais a ver com isso que se está falando, não com a questão econômica, social, política, mas mais com comportamental. Tipo, 'Eu sou antissistema porque sou anti-LGBT, sou anti facilidades para os negros, sou contra tudo isso que está aí. Eu sou anti-protagonismo das mulheres, eu sou anti-regularizar as terras indígenas, eu sou anti...'
E para lembrar, assim...
Me parece que a direita estudou profundamente a esquerda. Estudou [Antonio] Gramsci.
Não tenho dúvida. Essa direita reacionária faz luta de valores, luta ideológica. E é muito triste reconhecer que a extrema direita no Brasil e no mundo chegou primeiro na sociedade para depois chegar nas eleições. E a esquerda, essa que se aproximou da democracia, tem contas a pagar. Envolveu-se tanto com a democracia, lutou tanto por direitos...
Então, o caminho da esquerda no mundo e no Brasil é chegar na sociedade através das eleições. E a extrema direita chega na sociedade para resultar nas eleições. No fundo, a extrema direita faz aquilo que uma geração mais antiga de esquerda reclama dos partidos de esquerda. Não faz discussão de fundo, enquanto a extrema direita ou alguns deles fazem. A gente trata o Olavo de Carvalho como piada – e ele merece ser tratado como tal – mas ele sabia o que estava dizendo e escrevendo. Esse processo não começou ontem.
Uma vez me dei ao trabalho de assistir uma live do Olavo de Carvalho em que ele dizia que havia estudado mais profundamente O Capital do que o José Dirceu... Isso é provocação...
Olavo de Carvalho, no Brasil, Alexander Dugin, na Rússia, e uma série de outros com pouco recurso metodológico, mas intelectuais no sentido gramsciano mesmo, formam, assumem uma versão e dão narrativa a determinados interesses. Isso ocorreu nos anos 1990, enquanto a esquerda achava que todo mundo é bonitinho, que aceitava democracia, que as pessoas não se chamavam de direita porque não tinha direita, não se chamavam de direita porque o pêndulo pesava para as ideias progressistas. E agora o pêndulo pesa para ideias... Nós achávamos que o anticomunismo, que não chega a ser uma ideologia, tinha morrido também com as luzes do século 21.
Tem uma frase que eu acho que ajuda a explicar, inclusive o pobre de direita, que é uma frase daquele alemão do século 19, que é mais ou menos a seguinte 'Em uma sociedade de classes, o pensamento dominante é o da classe dominante'.
É o da classe dominante. E o italiano, 60 ou 70 anos depois, vai dizer o seguinte: 'Se não for, ela não domina, porque não basta ser dono, é preciso que as pessoas aceitem'. Não falamos mais de monarquias, de autocracias. Falamos de democracias industriais.
Como se mantém a ordem na democracia? Bem, a economia funcionando ajuda bastante. Segundo, as pessoas aceitando aqueles valores, aquele comportamento, aquela ideia. O pobre de direita sempre existiu. O espantoso é que eles se organizaram e se formaram. Quando a esse antissistema é tão errado dizer assim porque, tirando as ditaduras da África e da América Latina dos anos 1960/70/80, os principais governos de extrema direita se formaram com base em eleições. Talvez o franquismo seja uma exceção.
Temos uma extrema direita movimentista, que faz guerra de movimento
Hitler chega ao poder através de uma eleição.
Chega em sucessivas eleições. A primeira vez como primeiro-ministro, chamava-se chanceler, e passa a convocar seguidas eleições, o instrumento que ele tem para ir eliminando a oposição com lei, força, disputa, tropas de partido na rua. Assim foi o fascismo também. (O ditador Benito) Mussolini se torna governante dentro da lei. A ditadura portuguesa da mesma forma.
Nos golpes militares não se pode caracterizar a liderança dessas ditaduras como de extrema direita. Havia, majoritários ou não, militares de extrema direita, mas não é um movimento de extrema direita. É outra característica que se casa com um Brasil que nunca gostou de partidos. Hoje temos uma extrema direita que continua não sendo partido. É uma extrema direita movimentista, que faz guerra de movimento
Ao contrário da Ação Integralista Brasileira.
Que era um partido, tinha disciplina partidária. Hoje é a disciplina da eficiência. Por isso Pablo Marçal volta a falar do Bolsonaro até ser explodido, mas ele tenta romper, porque é de movimento, 'Eu vou passar por cima...'
Bolsonaro passou por nove partidos e os filhos dele estão em outro partido. Flávio Bolsonaro, que é senador, está no Republicanos ou, pelo menos, estava até 15 minutos atrás. Jair Bolsonaro está no PL como estava antes no PSL.
Quem mais elegeu prefeitos foram o PSD e o PMDB, então venceu o centro? Não fiz esse exercício. É trabalhoso, porque vai ter que se ver prefeito a prefeito um a um e, vendo assim, talvez não seja possível chegar à conclusão de quem venceu foi o centro. Quem venceu, minha percepção hoje, foram a direita e a extrema direita, independentemente de partido. Elas só não entraram nos partidos de esquerda, como o PT, o PSol, o PCdoB, nem no PSB e no PDT. Nos demais, entraram, inclusive no MDB.
Curitiba tem um segundo turno curioso onde os dois adversários são de ultra direita e apoiados pelo Bolsonaro e, em um debate, ficaram se acusando mutuamente de 'esquerdista'...
É espetacular, inimaginável. Dez anos atrás nenhum de nós imaginava isso. A esquerda está preparada para isso? Não estava e não está.
Lembrando lá o velho Lenin, o que fazer?
Fora do âmbito das eleições, do âmbito de um governo, se tu te mobilizas por uma causa, é preciso expô-la e não escondê-la. Se há setores na sociedade que se movem pela igualdade, tem que defender a igualdade. É uma lição chave. Mesmo que em algum momento te isole, que não sejas compreendido. É preciso disputar valores democráticos, igualitários, progressistas e não valores reacionários, conservadores e hierarquizantes. E é preciso fazê-lo com coragem, ou seja, abertamente, coragem no sentido político do termo, não no sentido moral.
Em uma eleição, primeiro, devemos entender que as ideias de evolução da sociedade em direção à igualdade estão na defensiva. Assim como várias pessoas muito importantes da esquerda no início do século 20 defenderam as grandes frentes, é preciso saber fazer as grandes frentes. Foi o que ocorreu na eleição estadual no Rio Grande do Sul (de 2022). Independentemente da conduta infantilizada do governador, que demonstrou pouco preparo, o eleitor progressista fez a frente que o governador não foi capaz. Foi o beneficiário, mas não o autor da proeza. Se estamos entre a civilização e a barbárie, fica-se do lado da civilização.
Essa sinalização ficou bem expressa também em 2022 quando os grandes caciques do PSDB pediram o voto no Lula, como fizeram Fernando Henrique, José Serra, Aloysio Nunes...
E o Geraldo Alckmin.
Para não falar do Geraldo Alckmin.
Alckmin olhou para um lado e olhou para o outro. 'Isso aqui é destruição, é o mal total' e, goste-se ou não, eu gosto, fez um movimento decisivo. (Os tucanos) erraram na Lava Jato, erraram em 2014, erraram em 2018.
Aécio Neves foi o único dos grandes adversários, tanto de Lula quanto de Dilma nas eleições, que não apoiou o PT em 2022.
E Brasil afora, outros tantos. É disso que vai se tratar em 2026. Vai ser uma eleição extremamente difícil.
Valeu o governo Biden, no mínimo, por ter impedido o golpe no Brasil
Estamos todos olhando para 2026, mas esquecemos, de vez em quando, que tem outra eleição no caminho, em novembro, a grande eleição dos Estados Unidos.
E tem uma pequenininha, de um país pequenininho, muito importante agora neste domingo aqui do nosso lado. O Uruguai é mais importante do que o país é economicamente por conta de uma série de fatores, como seu papel na história da América do Sul.
Projetou uma figura internacional, sendo pequeno o país, como Pepe Mujica.
No caso dos Estados Unidos, várias pessoas muito respeitáveis que estudam o país gostam de dizer que é um partido só com duas frações. É um sistema eleitoral que ninguém questiona. Aí é sempre uma democracia. Não tem voto direto. Os demais partidos não são proibidos, mas são obstruídos. Existe um conjunto tão grande de obstruções que não chegam ao Parlamento federal. Não se vota para o presidente. Mesmo assim ainda é um Estado democrático. Essa eleição é de eleger o mal menor como o próprio Joe Biden. A política internacional do Partido Democrata é de muita virulência.
Destino manifesto.
Exatamente. A vocação de uma nação de dominar as demais. Mas, apesar disso tudo, soma na luta política contra a extrema direita. Foi importante o papel do governo Biden na obstrução do golpe aqui. De 2022 e de 2023. Foi decisivo e real. Valeu internacionalmente o governo Biden. No mínimo, por ter impedido um golpe num país importante como o Brasil. Apesar do seu apoio ao genocídio na Palestina. É muito importante que Kamala Harris, que é o que temos para o momento, derrote Donald Trump. Porque as relações são objetivas entre Donald Trump e bolsonarismo. Donald Trump e a extrema direita na Índia. Donald Trump e a extrema direita na África do Sul. Podemos também ficar citando aqui onde estão... Há uma internacional reacionária orgânica.
* Esta entrevista é uma versão reduzida do podcast De Fato. Assista ao programa completo:
Edição: Marcelo Ferreira