Na manhã da última quinta-feira (24), o candidato ao segundo turno das eleições em Pelotas, Marciano Perondi (PL), foi visto pisoteando o símbolo do Orixá Bará, localizado no centro do prédio do Mercado Público. Além disso, sua equipe foi acusada de remover a proteção que circunda o símbolo para realizar filmagens do bolsonarista. O ato foi interpretado como desrespeito e intolerância religiosa, gerando uma manifestação que reuniu lideranças de religiões de matriz africana ao redor do símbolo. Nas redes sociais, Perondi publicou uma nota tentando justificar a ação, mas em nenhum momento se desculpou.
A denúncia inicial ocorreu por volta das 11h30, quando o batuqueiro André de Ogã gravou um vídeo denunciando o ato do candidato. Revoltado, o religioso afirmou que "os assessores e o candidato a prefeito Perondi simplesmente tiraram a proteção de cima de um símbolo, de um ritual da religião africana". Em outro registro, é possível ver Marciano pisando no símbolo enquanto conversa com outro homem ao seu lado.
Em suas redes, Perondi divulgou uma nota alegando ter sido "abordado por um popular que estava sobre o símbolo". Ele justificou que, ao dar atenção ao homem, "aproximou-se e pisou na lateral da marcação". No entanto, em momento algum a nota pede desculpas pelo ocorrido; pelo contrário, a última parte tenta minimizar o impacto da ação, afirmando que seu ato de desrespeito estaria sendo usado de forma "eleitoreira e sensacionalista".
Indo de encontro com a declaração da nota, outro registro, dessa vez em vídeo, mostra as contenções do símbolo colocadas ao lado de um dos pilares de sustentação da estrutura do mercado. Ao lado delas está um homem vestido de verde. Este homem é quem administra uma câmera fotográfica que está apontada na direção de Perondi, que está localizado no centro de um dos corredores.
Manifestação
No início da tarde, o atual presidente do Conselho Municipal do Povo Terreiro, Rodrigo do Bará, se reuniu com outros religiosos para convocar um ato de manifestação. “Chamo o povo para pegar o seu tambor e vim pra cá, porque esse espaço é nosso, é da população, esse espaço é público e nós vamos movimentar o mercado como de fato o mercado merece ser movimentado pelo povo negro, pelo povo africano, pelo povo batuqueiro dessa cidade.”
Na reunião, Rodrigo afirma que a ação de Perondi foi intolerável e que “ninguém vai pisar em cima, nenhum candidato, nenhum ser humano vivo vai pisar em cima e ficar sem o respaldo do Conselho Municipal do Povo Terreiro e do povo batuqueiro dessa cidade”. Rodrigo encerra categorizando o ato como um caso de racismo e intolerância religiosa. “Nós vamos tomar as devidas providências quanto a esse ato de intolerância e de racismo cometido pelo candidato Marciano Perondi dentro de um espaço público”, adiciona.
Diferente do que foi afirmado por Perondi, em diversas ocasiões as lideranças reafirmaram que a manifestação era livre de questões partidárias. Leonardo Rodrigues, Filho de Oxum, afirmou que “o ato de hoje não é político partidário. Vamos nos mobilizar enquanto religiosos, não podemos nos calar neste momento”. Ele também sugeriu a quem fosse participar do ato que utilizasse roupas das cores branca ou vermelha, que é a cor de Bará.
Declarações
O Babalorixá Juliano de Oxum, ex-presidente do Conselho do Povo de Terreiro e idealizador da demarcação, diz que a manifestação que aconteceu ao final da tarde era de política pública. “O ato que nós fizemos ali no mercado não foi tirando para o lado do A ou B, partido do A ou B. Nós fizemos política pública para o povo de terreiro. Nós fizemos um ato pela nossa ancestralidade”, afirma. Ele segue e diz que é uma afronta a ação do candidato. “É uma afronta retirar o redutor de velocidade do retorno, que não se retira, se está o retorno já para proteger o adesivo, tendo em vista que o adesivo não é o poder público, não é ninguém que paga, sou eu, pai Juliano de Oxum, sou eu que pago.”
Questionado sobre considerar ou não um ato de intolerância religiosa, Juliano disse ao programa Contraponto da RádioCom Pelotas que esteve na delegacia de polícia junto ao presidente do Conselho. Ele afirma que “intolerância é crime, tanto que foi dito: se tivesse chamado [a polícia] no ato, o candidato seria preso”. O Babalorixá finalizou reforçando, mais uma vez, que a manifestação não tinha cunho eleitoral e nem mesmo envolvimento com qualquer partido político. “O adesivo do Bará não é político. É ancestralidade. É patrimônio imaterial cultural do povo de terreiro e do povo negro de Pelotas”, encerra.
Além de Juliano, outras figuras importantes da comunidade também se manifestaram. Ao Portal Arte-se, Pai Nicolas de Yemoja afirmou que “é muito complicado para um candidato que vai concorrer à prefeitura não conhecer a própria cidade que deseja governar”. Ele continua e categoriza a ação de Perondi como uma violência à crença religiosa. “Isso é intolerância religiosa, isso é desrespeito à nossa fé, porque para ter quatro cavaletes e um adesivo demarcando um espaço que eu estava quando foi consagrado o Orixá Bará foi uma luta muito grande.”
Ainda na quinta-feira (25), o perfil oficial do Conselho do Povo de Terreiro divulgou uma nota sobre a situação. “Nós encaramos isso como um ATO de INTOLERÂNCIA pelo candidato do PL Marciano Perondi. Nossos espaços devem ser preservados e respeitados”, declara. A nota também questiona quem teria autorizado a remoção das barreiras de demarcação do símbolo, visto que ele é protegido por lei. Ao entrar em contato com o órgão responsável por essa liberação, a secretária de Desenvolvimento, Turismo e Inovação (Sdeti), Paula Cardoso, disse em nota que “não houve autorização da Secretaria para retirada da proteção e em momento algum a assessoria do candidato entrou em contato”, fato que agrava ainda mais a ação desrespeitosa de Perondi.
Intolerância
No Brasil, intolerância religiosa é crime. No caso envolvendo o então candidato bolsonarista, o advogado e conselheiro da OAB de Pelotas Fábio Gonçalves relatou que “são vários os enquadramentos legais que apontam para uma interpretação capaz de tipificar qualquer conduta como uma conduta de intolerância religiosa”. Ele destaca o artigo 208 do Código Penal Brasileiro e cita o ato de desrespeito. “O próprio Código Penal Brasileiro, lá no artigo 208, trata numa parte daquilo que é o tipo descrito de vilipendiar (desrespeitar), por exemplo, objetos que demonstrem alguma fé”, complementa.
De acordo com Fábio, mesmo que se tente defender a ideia de que o ato foi apenas um descuido, essa defesa não se sustenta diante da evidência de que é um local de culto religioso publicamente reconhecido. A gravidade do ato, ao remover a proteção e pisar sobre o símbolo religioso, pode levar a uma interpretação mais severa, como um ato de desrespeito.
“Independentemente de ser um candidato ou não, o descuido não pode sequer ser arguído na minha interpretação, [...] porque todos sabem de conhecimento público que ali há uma representação religiosa de origem africana, de religiões africanistas. Mas, o fato da remoção da proteção, o fato de pisotear, poderia ser, se o caso fosse levado ao juízo, interpretado como um vilipêndio”, afirma o advogado.
O advogado também destaca a proteção da lei 12.288, do Estatuto da Igualdade Racial, que também “versa e veda completamente qualquer tipo de prática ostensiva, odiosa, religiosa em especial, apontando para religiões de matriz africana”. Gonçalves considera que existe uma base legal sólida para identificar e responsabilizar os autores do ato em questão. Ele reforça a importância de analisar o caso sob a ótica do Código Penal, especificamente do crime de vilipêndio que, em sua definição jurídica, se refere a atos que desrespeitam objetos concretos, como imagens ou símbolos.
“Eu não estou aqui fazendo ou antecipando qualquer juízo de valor, que fique registrado [...]. Estou dando aqui um panorama sobre as possibilidades jurídicas e apontando aquilo que seria se eu, por exemplo, fosse advogado para alguém que fosse ofertar uma denúncia como essa, me ampararia direta e frontalmente, para além dos outros diplomas que mencionei, no artigo 208 do Código Penal, em especial na parte que trata do vilipêndio às representações religiosas de todas as partes, em especial das religiões de matriz africana.”
Por fim, Fábio encerra elaborando uma comparação. Ele diz: “dificilmente alguém chegaria numa igreja católica ou alguma outra igreja que ostentasse ícones, nós chamamos, referenciando aqui os movimentos iconoclastas, e afastaria ícones, afastaria imagens de santos para gravações ou coisas do gênero, de maneira inadvertida”.
O que é o Bará de Pelotas
O símbolo do Bará no mercado de Pelotas representa a resistência e a luta pela valorização da religiosidade afro-brasileira na cidade. Em 2012, a comunidade religiosa local se mobilizou para reestruturar e reenergizar esse espaço sagrado após o assentamento original do Bará, que enfrentou hostilidade e racismo. Em 2015, a primeira procissão do Bará foi realizada no mercado, reafirmando a conexão entre o local e a divindade, vista como protetora do comércio e dos espaços de troca.
Com o apoio de lideranças religiosas e políticas, a luta continuou, e em 2020 a Câmara de Vereadores aprovou a demarcação do espaço do Bará. Após anos de desafios, incluindo a busca por uma sinalização apropriada, o símbolo do Bará foi finalmente reconhecido em uma cerimônia em 13 de junho, firmando o espaço como um marco de resistência e preservação cultural em Pelotas.
Declaração de Perondi
Inicialmente, o candidato bolsonarista divulgou em suas redes sociais uma nota de esclarecimento sobre o ocorrido. A nota não menciona o fato de que as barreiras haviam sido retiradas do entorno do símbolo. Em seguida, a nota diz que Perondi pisou “na lateral da demarcação” ao ir dar atenção a um popular que o abordou. A nota encerra dizendo que “o uso eleitoreiro e sensacionalista dessa imagem constitui uma distorção da verdade e um instrumento de manipulação das consciências”, ignorando completamente o fato de que os movimentos religiosos destacaram que o ato não tinha envolvimento partidário.
Mais tarde, o candidato também publicou um vídeo em seu Instagram no qual reitera o posicionamento da nota inicial. O vídeo encerra com a presença do Presidente da Federação S.R.U.C.A.B. Umbandista e Africanistas, Joabe Bohns, no qual ele diz que “Tudo que a gente não faz de propósito é inocente. Desrespeito é se tu chegasse e falasse alguma coisa ou que tu esfregasse o teu pé ou que tu chutasse alguma coisa”.
Edição: Katia Marko