Rio Grande do Sul

Coluna

Eleições em Porto Alegre: o populismo e a destruição do campo popular 

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A imagem popular de Melo esconde a verdade sobre as prioridades de sua administração - Isabelle Rieger/Sul21
A imagem 'popular' de Sebastião Melo (MDB) é na verdade a atualização do velho populismo no Brasil

No primeiro turno das eleições municipais o atual prefeito Sebastião Melo (MDB), liderando uma frente de partidos de direita em aliança com a extrema-direita, venceu o pleito em quase todos os bairros, mesmo nos territórios de baixa renda e precariedade urbana. Além disso, para o espanto de muita gente, Melo obteve maior votação que os adversários nas áreas da cidade fortemente castigadas pela enchente, que atingiu centenas de milhares de pessoas.

Apesar da comprovada negligência na manutenção do sistema de proteção da cidade, esse apoio ao prefeito ainda precisa ser melhor explicado por pesquisas específicas de campo. Entretanto, é possível apontar os limites da análise que pressupôs uma relação direta entre o fenômeno natural e o resultado eleitoral. Não é propósito do artigo analisar esse fenômeno, como ficará claro a seguir. Entretanto, pode-se intuir pelo menos duas questões que o ajudam a interpretar: a prevalência, durante e após as inundações, de uma percepção popular do desastre natural compatível com a grandiosidade estadual do evento; e a persistência de uma imagem popular do prefeito construída antes da enchente, mas reforçada no marketing eleitoral.

Quanto à primeira questão, a hipótese baseia-se na dimensão estadual da tragédia, que extrapolou Porto Alegre e sua Região Metropolitana, e atingiu uma grande área do Estado, sendo os quase 200 mortos moradores de outros municípios. Ao não se limitar a um alagamento isolado de Porto Alegre, a percepção popular sobre a big escala da enchente provavelmente encobriu a reflexividade necessária sobre as causas específicas das inundações na capital, neutralizando e/ou diminuindo os efeitos justos da crítica à parcela de responsabilidade que cabe a Melo (e Marchezan/PSDB), no abandono do sistema de proteção da cidade. Contando também com a autoridade técnica de estrangeiros (holandeses), cuidadosamente mobilizados, e um competente marketing eleitoral, a narrativa da campanha de Melo vem saindo-se bem nesse tema.

Por outro lado, também deve-se considerar a forte ação nos territórios atingidos, durante e após a enchente, de diversos agentes políticos, atores sociais e empresariais ligados ao campo da direita, seja de caráter assistencial ou identificados com a extrema-direita, indicando as transformações ocorridas nas últimas décadas na esfera pública da cidade e do país. Esse cenário está relacionado a segunda questão a ser considerada, e aqui começamos a entrar no ponto central do artigo: a imagem “popular” cultivada pelo prefeito antes da enchente. O fenômeno representa, por um lado, o crescimento quantitativo e qualitativo da ação de atores civis e políticos em Porto Alegre ligados ao projeto conservador e neoliberal, que modificou o tecido social e a cultura política da outrora cidade identificada com a esquerda. Esse fenômeno vem ocorrendo há pelo menos 20 anos, com maior ou menor intensidade, dependendo das escalas das disputas (local ou regional/nacional). O marco dessa mudança e talvez do antipetismo na capital e no RS é anterior à criminalização da Lava Jato. Ele ocorreu na esteira do governo petista inédito à frente do Estado do RS (1999-2002), quando a linha adotada foi claramente confrontacionista (como o famigerado caso Ford). A seguir, ocorreu a derrota nas eleições locais, em 2004, encerrando o longo ciclo do PT em Porto Alegre, mas também nas eleições seguintes para a presidência da república, quando na capital em 2006 Alckmin (PSDB) superou Lula (53% a 42%), e 2010 com Serra (PSDB) vencendo Dilma (PT) (55% a 44%)[1].

Isso no auge do sucesso dos governos federais do PT (Lula I e II e Dilma I, entre 2003-2014). Com exceção do retorno do PT ao Governo do Estado do RS, em 2010, quando Tarso Genro também ganhou em Porto Alegre (51,6%), de lá em diante a tendência de declínio do PT na cidade foi ainda maior. Em 2012 fez apenas 9,64%, e nas eleições seguintes, de 2016 e 2020, não foi protagonista da disputa, fortemente atingido pelos escândalos de corrupção (reais e inverídicos) e pelo law fare da Lava Jato, com a prisão de Lula e lideranças petistas. Visto em perspectiva, a culminância da hegemonia do campo de direita em Porto Alegre não é um enigma, não foi um raio em céu azul. Representa a continuidade da hegemonia liberal-conservadora há duas décadas alicerçada no antipetismo, mas atualizada pela polarização e o crescimento da extrema-direita do país, no qual Melo, um político liberal-centrista, escolheu o campo em que poderia ser protagonista e vencedor.

Ocorre que no contexto em que ocorreu esse realinhamento das forças na cidade, Melo, agora aliado com a extrema-direita, percebeu que a recuperação da esquerda, a partir das reviravoltas da Lava Jato e da vitória de Lula, em 2022, mudaria o xadrez local, dando ânimo e talvez vitória em Porto Alegre. Diante da linha claramente elitista e neoliberal que seu governo imprime seria necessário construir uma ação simbólica de caráter popular. Essa é a origem do estilo populista que Melo passou a intensificar. A diferença aqui entre o projeto popular e o projeto populista é fundamental. O populismo não está interessado na emancipação das classes trabalhadoras, com políticas universalistas de bem-estar e construção de sujeitos de direitos na história, o que implica em empoderamento das classes subalternas, sem as quais a reprodução dominante prevalece. Na história moderna as vias para as mudanças progressistas são altamente exigentes em capacidade de ação de atores sociais e políticos e das oportunidades que se abrem no Estado, nas instituições e na ação coletiva na sociedade civil. Todas essas esferas são fundamentais, mas o novo contexto de intensificação das tecnologias de comunicação trouxe um peso ainda maior – que sempre existiu – para as disputas de hegemonia na sociedade civil voltadas para a produção do consentimento popular, como bem teorizou Gramsci ainda na década de 1930. Na sociedade do espetáculo, como afirmou Guy Debord, no longínquo ano de 1967, há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens, das relações interpessoais à política, passando pelas manifestações religiosas, tudo está mercantilizado e envolvido por imagens, fenômeno que só cresceu e tornou-se onipresente. Isso significa que a disputa simbólica é tão real e importante quanto as decisões fáticas.

Se o programa de Melo fosse popular e não populista, o caminho a ser perseguindo seria fácil, como por exemplo resgatar as mais de 2,3 mil demandas populares aprovadas no OP e não executadas, já que elas representam necessidades reais dos que ainda vivem em condições de subcidadania em Porto Alegre. Ao invés disso, a gestão Melo deu continuidade à destruição da participação popular, enfatizada por Marchezan (PSDB/PP), mas iniciada no período de Fogaça (PPS/MDB), que criou um programa paralelo ao OP. Mas por que então Melo não extinguiu de vez o sistema de participação que consagrou Porto Alegre como a capital da inovação democrática no mundo? Exatamente porque se trata de um projeto populista, que consiste em fazer de conta que ainda existe participação em Porto Alegre, acompanhada do estilo “popular” do prefeito[2].

A imagem popular de Melo esconde a verdade sobre as prioridades de sua administração. Senão, vejamos: enquanto são destinados parcos recursos para as demandas do OP, equivalentes a não mais de 2% dos investimentos, a sua gestão prioriza Grandes Projetos Urbanos e a ação nos bairros das classes médias e de alta renda, que consomem os recursos públicos, próprios e de empréstimos. Em 2022 a Prefeitura investiu R$ 460 milhões (5% das despesas), em 2023 foram R$ 512 milhões (também 5%), e em 2024 são previstos R$ 852 milhões (7,2% da despesa). Desse total, mais da metade são empréstimos para executar grandes obras na Área Central, Orla do Guaíba e no 4º Distrito, como no caso dos R$ 60 milhões para a pavimentação das ruas que já contam com infraestrutura[3], e R$ 548 milhões do Banco Mundial para grandes projetos na área central e no 4º Distrito (são €129,6 milhões, com contrapartida de €32,4 milhões), fazendo com que o investimento total seja de aproximadamente R$ 1 bilhão). Além disso, adotou isenções fiscais e facilitações legais para os empreendimentos imobiliários e da construção civil, juntamente com políticas de privatizações, terceirizações e concessões de equipamentos e serviços, que ferem a função social da cidade e a preservação ambiental. Enquanto isso, são destinadas migalhas para as prioridades populares apontadas no OP, equivalentes a 2,1%, 1,8% e 1,5% dos investimentos (R$ 10 milhões em 2022, R$ 15 milhões em 2023 e R$ 20 milhões em 2024), para atender as reinvindicações das comunidades de todas as 17 Regiões e seis Temáticas.  

Ou seja, o prefeito administra com chapéu alheio porque usa os recursos públicos, que são de todos, para o benefício dos poucos da coalizão dominante, cujos capitais e interesses estão cada vez mais donos da cidade. O programa neoliberal de Melo é executado com a habilidade de um velho político personalista que transita nas periferias, cada vez mais na roupa do personagem caricatural que ele criou. Essa estratégia está na base do populismo antipopular de Melo, cuja política clientelista foi reforçada por seu grupo na Câmara de Vereadores por meio das emendas impositivas ao orçamento, em 2019, cujos valores somam mais de três vezes o valor destinado às prioridades aprovadas pelo OP em 2023: foram R$ 51 milhões contra os R$ 15 milhões.

Fica claro assim que a imagem “popular” de Melo é na verdade a atualização do velho populismo no Brasil, utilizando-se de efeitos simbólicos que encobrem o caráter elitista e neoliberal do tipo de urbanismo excludente e privatista em curso em Porto Alegre. O que está em jogo nas eleições não é apenas o bom uso dos recursos públicos, mas até que ponto a cidade vai regredir na sua democracia e no modelo de desenvolvimento que possa combinar inclusão, justiça socioespacial, cultura e sustentabilidade ambiental. Enfim, um caminho do direito à cidade.    

[1] Em 2002, o candidato do PT ao Governo do Estado, Tarso Genro, ganhou em Porto Alegre por apenas 3,327 votos, contra Germano Rigotto (PMDB). Em 2006, o candidato do PT ao Governo do Estado, Olívio Dutra (PT), também venceu em Porto Alegre por apenas 4,327 votos, contra Yeda Crusius (PSDB). Em 2010, o candidato ao Governo do Estado do PT, Tarso Genro, venceu em Porto Alegre com 51,6% dos votos, elegendo-se Governador do RS no 1º turno. O segundo colocado, ex-prefeito de Porto Alegre, José Fogaça (PMDB), fez apenas 25,8% dos votos válidos (TER/RS).

[2] A análise da história dos 35 anos do OP de Porto Alegre foi realizada no livro de Luciano Fedozzi “Orçamento Participativo de Porto Alegre:35 anos. Do modelo contra-hegemônico à desdemocratização” (2024), adquirido em [email protected]

[3] Jornal Zero Hora, 28/10/2022

 

* Luciano Fedozzi – professor sociologia da UFRGS, autor do livro Orçamento Participativo:35 anos.  

** Judite Sanson de Bem – Economista, pesquisadora do Observatório das Metrópoles.

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo