Rio Grande do Sul

Representatividade

‘Estamos conquistando espaços que historicamente nos foram negados’

Além da Capital, cidades como São Leopoldo, Cachoeirinha, Charqueadas e Rio Grande elegeram representantes LGBTQIAPN+

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Em 2024, pela primeira vez foi possível registrar a orientação sexual e a identidade de gênero nas candidaturas das eleições brasileiras - Foto: Fernando Galacine

Nas eleições de 2024, além de Porto Alegre ter a sua primeira bancada LGBTQIAPN+, o Rio Grande do Sul elegeu e reelegeu outros vereadores e vereadoras LGBTQIAPN+. O resultado vai ao encontro do recorde registrado no país de candidaturas. Segundo levantamento realizado pelo instituto VoteLGBT, 225 pessoas auto-identificadas conquistaram cargos, incluindo três prefeituras.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil elegeu 26 vereadores e vereadoras transsexuais nas eleições municipais. Em 2020 foram 271 candidaturas no país, sendo eleitas 30: dois homens trans e 28 travestis e mulheres trans, um aumento de 275% de pessoas trans eleitas em relação a 2016, quando se elegeram oito candidatas. Das candidaturas atuais, foram 25 mulheres trans. Houve também um homem trans: o vereador Thammy Miranda (PSD-SP). O estado com o maior número de eleitos foi São Paulo, com 10, seguido de RS e Minas, com quatro eleitos cada.  

Essa é a primeira vez na história que a Justiça Eleitoral tem dados públicos sobre as candidaturas da comunidade LGBTQIA+.

“Agora é trabalhar para representar nossa comunidade”

Nos últimos 20 anos, a cidade de São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, teve na administração municipal, por 16 anos, o prefeito Ary Vanazzi (PT). Na eleição municipal deste ano o Partido dos Trabalhadores perdeu a eleição para Heliomar Athaydes Franco - Delegado Heliomar (PL), com 54.793 votos (51,24%). 

Primeiro vereador LGBTQIAPN+ eleito na cidade, Fábio Bernardo da Silva (PT) pontua que nos anos de administração do PT foram construídos projetos significativos como o São Léo Mais Renda e o São Léo Mais Comida no Prato, obras de infraestrutura, avanços na educação, saúde e habitação. “O maior desafio agora vai ser fazer o enfrentamento ao fascismo para a manutenção e melhoria de tudo aquilo que construímos até aqui. Mas isso não nos abala. Construímos uma bancada forte de oposição que lutará arduamente para que nenhum direito seja violado ou esquecido pela nova administração.”


Fábio Bernardo da Silva (PT) é o primeiro vereador LGBTQIAPN+ eleito em São Leopoldo / Foto: Arquivo Pessoal

Assistente social por formação, Fábio tem 35 anos de trabalho junto à luta social. Iniciou sua trajetória com o Padre Orestes, na Santa Marta, comunidade de São Leopoldo. “Em 2004, fundamos juntos a Associação Meninos e Meninas de Progresso, a AMMEP. Um serviço de convivência e fortalecimento de vínculo e hoje também escola de educação infantil, que realiza um trabalho de extrema importância para a vida de centenas de crianças e adolescentes.”

Foi secretário de Assistência Social e de Saúde nos governos Vanazzi onde, pontua, foram construídas políticas para as comunidades periféricas da cidade, como as 25 cozinhas solidárias que entregam mais de 4 mil refeições por semana na cidade.

Fábio é casado há 29 anos com Manoel Barbosa Rabelo. “Construímos juntos uma vida de respeito, amor e igualdade, com o apoio das nossas famílias, que foram suporte para enfrentarmos de cabeça erguida a homofobia e toda forma de preconceito que se apresentou em nosso caminho.”

De acordo com o vereador recém-eleito, a recepção dos eleitores com a campanha foi muito positiva. “Em cada bairro, em cada local por onde passamos, sempre fomos recebidos com carinho e muito respeito por nossa população, que esteve sempre disposta a nos ouvir e dialogar.”

Ao comentar o aumento da participação da comunidade LGBTQIAPN+, Fábio destaca que isso mostra que, mesmo aos poucos, a sociedade vai mudando, evoluindo. “Estamos conquistando espaços que historicamente nos foram negados, a nós LGBTQIAPN+, às mulheres, às populações negra e indígena. Nossa democracia tem avançado e fazer parte disso é muito potente, pois não cheguei até aqui sozinho. Foi a construção coletiva, ao lado de tantos e tantas que acreditam nessa e nas demais lutas, que me trouxe até aqui." 

Para ele, sua candidatura é um feito muito importante e de grande responsabilidade. “Agora é trabalhar para representar nossa comunidade.”

“É importante mostrar que nossos mandatos não pautarão somente a comunidade LGBT+”

Cerca de 20 quilômetros de distância de Porto Alegre fica Cachoeirinha, onde nasceu e se criou Gustavo Almansa Bernardo (PT), na periferia da cidade. Foi ai que iniciou sua trajetória política sendo presidente do grêmio estudantil da escola Osvaldo Camargo. Através das políticas públicas ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em um curso que conforme aponta, elitista, a odontologia. “Hoje sou cirurgião-dentista, me especializei em saúde pública e durante a graduação trabalhei e estudei com a saúde da população negra, LGBT+ e da população em situação de rua.”

Primeiro vereador eleito assumidamente representante e integrante da comunidade LGBTQIAPN+, Gustavo vê em sua candidatura a importância de representação e a necessidade que se tinha de falar sobre o assunto na cidade. “Viver em um município conservador não significa que não haja diversidade na cidade e esse grupo precisa ser ouvido.”

De acordo com ele, sua campanha foi pautada na saúde pública de qualidade e na luta por uma câmara mais diversa. “Com as pautas identitárias tivemos uma adesão significativa, surpreendendo inclusive nosso grupo político já que vivemos em um município bastante conservador. Meu maior desafio, sendo vereador eleito de oposição, é mostrar que pautar a comunidade LGBT+ é importante para que meus projetos direcionados a ela sejam aprovados. Como é o caso do ambulatório T e a educação permanente para profissionais dos setores públicos sobre essa temática. Tenho o compromisso de trabalhar na Câmara Municipal de Cachoeirinha em prol da saúde e das populações vulnerabilizadas da nossa cidade.”

Sobre o cenário nacional e no RS, Gustavo ressalta o caráter histórico e necessário. “É importante mostrar que somos diversos e que nossos mandatos não pautarão somente a comunidade LGBT+, temos capacidade de discutir melhorias para nossas cidades, seja na saúde ou na educação pública, por exemplo. E é importante que nossa comunidade, historicamente vulnerabilizada, se enxergue nos locais de tomada de decisão.”


“Viver em um município conservador não significa que não haja diversidade na cidade e esse grupo precisa ser ouvido”, afirma Gustavo Almansa Bernardo (PT) / Foto: Arquivo Pessoal

“Um dos maiores desafios é combater a LGBTfobia”

“Sou a Profe Rose, uma mulher que enfrentou o preconceito com coragem e que sempre acreditou na educação como ferramenta para transformar vidas. Sou mãe, filha, avó e namorada, cheia de esperança de contribuir para uma sociedade mais humana, mais inclusiva, mais justa e mais colorida. Minha trajetória foi marcada pela luta por igualdade e pela busca de um futuro melhor para todos.”

Assim se descreve Rosângela de Carvalho Souza, mais conhecida como Profe Rose, que foi eleita a primeira vereadora LGBT na cidade de Charqueadas, a 59 km da capital gaúcha. 

De acordo com ela, a campanha foi bastante desafiadora. “Enfrentamos uma disputa que, por vezes, parecia injusta, mas com o tempo as coisas foram se encaixando. Gradualmente, o povo começou a nos acolher, a escutar nossas propostas e a entender a importância da nossa luta. A receptividade dos eleitores foi essencial para nos fortalecer durante todo o processo.”
    
Para Rose, sua eleição tem uma importância imensa, pois traz para o espaço político discussões fundamentais sobre as demandas específicas da comunidade LGBTQIAPN+. “Essa representatividade permite que a política tenha um olhar mais inclusivo e realista, ajudando na criação de políticas públicas que verdadeiramente atendam às necessidades da população.”

Um dos maiores desafios, prossegue Rose, é combater a LGBTfobia, o que começa com a representatividade e a criação de políticas públicas eficazes. Nesse sentido, afirma, é fundamental garantir mais espaços na sociedade para a comunidade LGBTQIAPN+, como o acesso a empregos dignos e ambientes de trabalho inclusivos. “Precisamos investir em práticas de recrutamento inclusivas e criar programas de incentivo à formação de lideranças LGBT, além de promover um ambiente seguro nas empresas.”

Rose pontua que o crescimento da população LGBTQIAPN+ na disputa dos espaços de poder simboliza uma conquista importante para a diversidade e representatividade nesses lugares. “Ver mais pessoas LGBTQIAPN+ ocupando cargos públicos é um passo crucial para construirmos um país mais igualitário, onde a democracia seja fortalecida pela valorização das diferenças e pelo respeito a todas as identidades.”


Rosângela de Carvalho Souza, mais conhecida como Profe Rose, que foi eleita a primeira vereadora LGBT na cidade de Charqueadas / Foto: Arquivo Pessoal

“O significado é realmente a possibilidade de uma sociedade inclusiva” 

Em 2020, Maria Regina da Conceição Moraes, mais conhecida como Regininha, na ocasião com 41 anos, tornou-se a primeira mulher trans eleita em Rio Grande, câmara mais antiga do estado. Reeleita, ela conta que o seu primeiro mandato foi desafiador. 

“Tive uma receptividade muito ótima, para te falar a verdade, por parte da população aqui durante a campanha. Me surpreendeu muito, a campanha de 2020 havia feito 930 votos e nessa fiz 1652 votos. Para a minha cidade que é uma cidade com mais de 100 mil eleitores foi até uma votação expressiva. Na bancada do Partido dos Trabalhadores que hoje conta com três vereadores, ano que vem serão seis. E a gente conseguiu também eleger a prefeita Darlene, há muita coisa a construir para e por essa população”, afirma. 

Regininha ainda é a única vereadora travesti na região Sul do estado, o que faz com que tenha muitas estratégias de sobrevivência. Nada diferente do que ela já não tenha enfrentado. “Eu costumo dizer que a travesti que chega neste lugar, chega preparada, porque ela já passou, com certeza, por muitos desafios. Ela resistiu para chegar neste lugar e essa resistência é marcada com muitos fatos, que muitas vezes procuramos até esquecer, quando estamos falando do Brasil que é o país que mais mata a nossa população.” 

Para quem olha de fora, pontua Regininha, o primeiro mandato foi surpreendente. Segundo a vereadora, na sua chegada criou-se todo um estigma por cima desse corpo que se tornou vereadora. “Na verdade, as pessoas esperavam muitas vezes o pior de mim, ‘ah, vai ser a barraqueira, essa aí não vai durar um ano, não vai durar o mandato todo’, essas coisas”. 


"Onde uma chega, vai abrindo espaço e as portas para que outras também possam ocupar", destaca Regininha, vereadora reeleita / Foto: Arquivo Pessoal

Com diálogo e trabalho a sua mandata desconstruiu o estigma e o preconceito de muitas pessoas que aguardavam a sua chegada. “Eu sou a vereadora de uma cidade inteira, de uma cidade com quase 200 mil habitantes e que eu precisava trabalhar para todos. Precisava ter uma visão ampla e não fechada, precisava entender sobre infraestrutura, sobre o direito à vida, direito à moradia, sobre educação, saúde, segurança pública. Eu precisava realmente ter essa visão, e eu consegui ter. E aí eu comecei a ganhar as pessoas. As pessoas foram vendo a seriedade do trabalho de uma mulher travesti no campo político. E vou me mantendo dessa forma durante todo o mandato.”

Superando o preconceito 

Antes do reconhecimento, Regininha sofreu alguns preconceitos. Ela cita um caso em 2021, quando um senhor na Câmara indagou se ela era o vereador puto do PT. “Para quem está olhando de fora, podia ser só mais uma palavra, mas para mim, o corpo travesti hoje ocupando uma cadeira legislativa, é uma grande agressão. Eu não poderia me silenciar diante de toda essa violência verbal. De forma muito pedagógica e firme eu comecei a fazer com as pessoas mudassem seus posicionamentos e também quebrar alguns preconceitos de algumas pessoas que foram se moldando também nesse mandato. Eu concluo esse primeiro mandato sabendo que me tornei uma das vereadoras mais querida entre os funcionários públicos da Câmara de Vereadores.”

No campo político o primeiro mandato também conseguiu vitórias como o engavetamento de projetos de um vereador da extrema direita do União do Brasil, como um que versava sobre o impedimento de pessoas trans de usar o banheiro de acordo com a sua identidade de gênero, assim como o projeto sobre a linguagem neutra. “Eram projetos que atacavam diretamente a população LGBTQIAPN+.”

Conforme reforça, o principal desafio foi fazer com que as pessoas realmente a enxergassem não somente como um corpo travesti, uma identidade de travesti, mas que a enxergassem como um todo. “Como uma mulher, vereadora travesti, pedagoga, mãe de família, casada. Com pai, com mãe, com muitos amigos, uma mulher que conquistou o seu espaço na sociedade e que faz parte dessa sociedade.”

“Quando a gente compreende que faz parte dessa política, quando vai para o campo das ideias, a gente vai desconstruindo todos os tipos de preconceito até aqueles que acabou sofrendo”, complementa.

Avanço da representatividade 

Ao comentar sobre o avanço da representatividade da eleição atual, Regininha rememora que nas eleições passadas como as de 2016/2020, quando ainda eram poucas, o desejo era esse: de se concretizar o número de candidaturas e de mandatos eleitos. “De eleger um número maior do nosso segmento, pessoas do campo progressista porque isso é bastante importante. É o resultado de um trabalho, de um mandato que teve essa colaboração, para que outras pessoas passassem a ser compreendidas como agentes políticas, e que pudessem também chegar a esse espaço.”

Para ela, os primeiros mandatos colaboraram para que se chegasse a formar bancadas, como a de Porto Alegre. “Isso me deixa super feliz quando eu vejo que a Atena, a Natacha conseguiram uma cadeira em Porto Alegre. Isso é o que a gente esperava, o que a gente quer e precisa. A gente precisa caminhar para de fato construirmos bancadas, candidaturas de pessoas LGBTQIAPN+. Por isso a importância de ocupar esse espaço: onde uma chega, vai abrindo espaço e as portas para que outras também possam ocupar. A responsabilidade do primeiro mandato era para que as pessoas e os eleitores passassem a enxergar essas outras candidaturas trans como uma grande opção de mudança no contexto político e social dos municípios das quais elas se colocaram à disposição.”

Além da representatividade, prossegue, o significado é realmente a possibilidade de uma sociedade inclusiva, que respeite a diversidade, uma sociedade que não separe, não segregue a população LGBTQIAPN+. “Uma sociedade onde nós possamos concluir o ensino fundamental, médio, de forma tranquila como os demais. De que a gente vai de fato começar a ocupar outros espaços que não seja somente o da política, de que a gente não ocupa somente o espaço da prostituição. Que a gente pode ocupar todos os lugares, como as universidades, como a empregabilidade, como a cidade. Do direito de estar na cidade, de viver de forma tranquila, sem ter medo de não chegar a um determinado lugar, porque durante o teu caminho, alguém pode se atravessar e exterminar a tua vida por conta da transfobia.” Para Regininha a grande responsabilidade das mandatas está em desconstruir a transfobia dos espaços sociais.

Em sua avaliação para avançar na representatividade é preciso agregar, acolher e dialogar com a sociedade como um todo. “Fazendo com que essas mandatas também dialoguem diretamente, tendo uma troca de ideias, de projetos, de requerimentos. E que a gente dialogue muito umas com as outras, porque essas representatividades, faz luz àquelas pessoas que muitas vezes já não têm mais uma autoestima. Acho que essa representatividade traz isso, traz força, traz esperança, esperança de fato, esperançar uma nova realidade, de um novo tempo para essa população.”

Além de Regininha, também foi reeleita Yasmin Prestes (MDB), na cidade Entre-Ijuís. O Brasil de Fato RS entrou em contato com ela, mas sem retorno até o final da edição. 


Edição: Katia Marko