Fazendo valer uma tradição que se estende já há mais de uma década, a Embrapa Clima Temperado – acompanhada de um pool de parceiros – realizou nos dias 17 e 18 de outubro na sua sede, em Pelotas (RS), a 11ª edição do Seminário de Agrobiodiversidade e Segurança Alimentar, visando o estabelecimento de diálogos entre agricultores que praticam a conservação da agrossociobiodiversidade junto a pesquisadores, professores, técnicos e estudantes das diversas áreas que conduzem ações associadas ao tema. Ou, como muitos fizeram questão de enfatizar, “um momento de encontro entre a tradição e a ciência, entre a sabedoria popular e a academia, mostrando que estas instâncias estão mais próximas do que aparentam”.
O pesquisador Irajá Ferreira Antunes, vinculado à Estação Experimental Cascata, esteve na coordenação dos trabalhos e mostrou-se satisfeito com os resultados alcançados depois dos dois dias de atividade e enalteceu as alianças construídas como legados a serem valorizados, sobretudo no momento histórico a que se está vivenciando frente os desafios do enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas: “Não somos únicos na construção desse seminário, as relações estabelecidas na história se continuam, e a partir do momento novo a que estamos expostos – as mudanças climáticas – a gente pode entender que vamos sofrer menos do que poderíamos sofrer caso não estivéssemos juntos. Essa é a grande mensagem: estamos juntos, discutimos juntos, estamos buscando caminhos juntos, e como consequência eu acredito que a recuperação será mais rápida do que poderia ser caso isso não estivesse acontecendo”.
Ao todo foram realizados 4 painéis coletivos, um curso e uma palestra durante a programação, além de dezenas de rodas de conversa informais. Os macro-temas que pautaram o encontro trataram dos efeitos das recentes ocorrências climáticas adversas sobre os modos de vida das distintas comunidades, em particular sobre as fontes de alimento, e seus reflexos sobre os próximos anos; identificação de estratégias voltadas à mitigação dos efeitos deletérios constatados; democratização de práticas metodológicas alternativas direcionadas à conservação da agrobiodiversidade constituinte do universo das comunidades guardiãs; a criação de redes de Casas de Sementes em distintos territórios do Rio Grande do Sul como instrumento de contraposição às perdas de variedades crioulas ocasionadas por distintos fatores.
Embrapa poderá auxiliar na recuperação de variedades perdidas durante as enchentes
Um dos assuntos mais referenciados durante o seminário – tanto nos painéis quanto nas conversas informais – remetia às prováveis perdas de sementes crioulas e espécies vegetais mantidas por guardiães e comunidades tradicionais durante as enchentes de maio, fato que ainda está sendo mensurado por diferentes iniciativas, tanto pelos movimentos sociais ligados ao campo quanto por iniciativas da própria Embrapa, Emater e universidades.
Nesse aspecto em particular a empresa pública de pesquisa afirmou o compromisso de, havendo disponibilidade em seus bancos de germoplasma, abrir essas estruturas para que se possa resgatar esses cultivos perdidos devido os efeitos da catástrofe socioambiental que atingiu o estado. “Não podemos nos esquecer que num dado momento nós fomos até os agricultores para buscar as suas sementes, que o nosso trabalho começa a partir deles, e que agora, se for preciso, devemos retornar até eles para ajudar a garantir que essa atividade tenha continuidade”, comentou o pesquisador Gilberto Bevilaqua.
Ao final da atividade – que aconteceu no auditório da sede da empresa pública da pesquisa – foi iniciada a redação de um documento propositivo que será compartilhado publicamente nos próximos dias e de forma mais direta encaminhado a três ministérios: Agricultura e Pecuária, Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas.
Além da Embrapa Clima Temperado, a organização do evento contou com a participação do Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Fórum de Agricultura Familiar da Região Sul do RS, Emater/RS, Estação Experimental Cascata/Agroecologia, Plataforma Colaborativa Sul e Associação dos Guardiães de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade do Rio Grande.
Na avaliação do chefe-adjunto de Transferência de Tecnologia da Embrapa Clima Temperado, Leonardo Ferreira Dutra, a diversidade presente nos dois dias foi um dos pontos a ser saudado. “Foram muitos atores, com muitos pontos de vista e necessidades distintas, isso nos deu a complexidade do debate que vai continuar, tem que ser cotidiano”.
Reafirmando o desafio que vem sendo proposto desde a posse da atual gestão da empresa pública, nomeada pelo Governo Federal, de trazer a pesquisa para perto do agricultor, garantiu: “Fica a responsabilidade da Embrapa como um ente facilitador entre a sociedade que demanda e aqueles que tomam as decisões, temos a noção dessa responsabilidade e não mediremos esforços para que as ações que aqui foram sugeridas ou indicadas para minimizar ou resolver alguma situação sejam devidamente efetivadas”.
Formação de redes mais robustas é um desafio para o futuro
Andressa Martins, da Associação Regional de Cooperação e Agroecologia, de Três Arroios (RS), foi uma das muitas lideranças presentes que tocou no tema das sementes crioulas e reforçou a sua importância: “manutenção da autonomia dos agricultores em relação a suas sementes, elas não podem ficar só nas mãos das empresas, não podemos esquecer que isso também faz parte da soberania alimentar”.
Para a agroecóloga, não se trata apenas de uma questão econômica, as sementes estão na centralidade da própria manutenção da agricultura familiar e camponesa frente a crise climática que já está posta: “Os últimos anos tem sido bastante desafiadores tanto por estiagens muito severas quanto por chuvas muito intensas, nós temos sentido isso com muita intensidade”. Andressa aponta a capacidade de resiliência e adaptação das sementes crioulas, pode ser uma das respostas para esse tema.
A formalização de redes de apoio e cooperação mais robustas é uma necessidade premente. Andressa identifica que embora haja muitas iniciativas, tanto de agricultores familiares e camponeses, cooperativas e associações, quanto de movimentos sociais, estas ainda estão acontecendo de forma muito fragmentada. “Ainda não conseguimos interligar, esse é um sonho que todos sonhamos juntos, precisamos construir uma dinâmica em rede, para isso precisamos de políticas públicas, só os agricultores não tem recursos, essa dinâmica poderia ser melhor, mas ela precisa de mais investimento, precisa de políticas públicas”.
Ela destaca que os agricultores e agricultoras já fazem muito – inclusive muita coisa que não é vista e não é remunerada, como os serviços ambientais por exemplo – e que não seria justo jogar sobre eles a responsabilidade de constituir sozinhos essas redes.
Sem o protagonismo dos povos, não é possível falar em agrobiodiversidade
Darlan Gutierres, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ) lembrou a importância do seminário para o território e para os povos que o habitam onde é realizado: no Bioma Pampa, hoje um dos mais ameaçados no país. “Neste contexto é preciso saudar a iniciativa da Embrapa de manter esse espaço de encontro, de debate e de luta em defesa da vida, valorizar a participação dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar e camponesa, sem eles não é possível falar em biodiversidade”.
Gutierres destaca que são estes os sujeitos que cumprem o papel central de manter, cuidar, preservar e multiplicar a agrobiodiversidade: “A partir do conhecimento tradicional, da ancestralidade e do papel dos guardiões da biodiversidade conseguimos resistir ao modelo hegemônico de agricultura que nos é imposto. Então precisamos colocar os guardiões na centralidade, valorizar o conhecimento tradicional e ancestral e replicar em todos os espaços, garantindo assim o futuro das gerações.”
Para o dirigente camponês, os próximos passos exigem planejamento, compromisso e ação: “O evento aponta caminhos de organização, planejamento e ações práticas. Reforçar a agrobiodiversidade enquanto perspectiva de geração da vida, do cuidado, das relações é fundamental e estratégico. Ao mesmo tempo, avançar na implementação de políticas públicas, da criação de mecanismos de garantia dos direitos dos biomas, povos e território é fundamental. Em tempos de mudanças climáticas, de destruição do nosso ecossistema, a decisão está em nossas mãos, precisamos agir”.
Edição: Vivian Virissimo