O processo eleitoral é um dos pilares do fortalecimento do sistema democrático, pois é por meio dele que as/os atores/as centrais, o eleitor e a eleitora, escolhem o projeto político que guiará os rumos da sociedade. Para que esse processo agregue vigor à democracia, é essencial garantir que o ambiente político institucional represente os interesses e os diversos grupos da sociedade como um todo.
Nesse sentido, é fundamental que a população negra esteja representada nas opções políticas disponíveis à sociedade, ou seja, nos candidatos que disputarão o pleito, que as condições de competitividade sejam minimamente equânimes e que o resultado das eleições valorize a diversidade. Afinal, segundo o último Censo, essa população representa mais de 55% dos brasileiros (IBGE, 2022). Além disso, há um histórico déficit de direitos políticos, sociais e civis retirados da população negra, o que torna essencial que pretos e pardos ocupem o lugar de direito nas cadeiras onde são tomadas as decisões a respeito dos caminhos a serem seguidos pelo estado e sociedade.
Pensando na promoção da diversidade, importantes tratativas foram desenvolvidas nas últimas décadas no país. Em 1995, a Lei 9.504/1995, por exemplo, estabeleceu que, no mínimo, 20% das candidaturas de partidos ou coligações para as eleições municipais fossem reservadas às mulheres. Em 1997, a Lei nº 9.504 ampliou essa participação, exigindo a reserva de 30%, obrigatoriedade estendida também às assembleias estaduais e à Câmara dos Deputados.
Se, por um lado, é possível falar de avanços, por outro, também é possível falar de estagnação. Ao mesmo tempo em que normativas importantes foram implementadas, observou-se a subutilização dessas iniciativas. A ponto de partidos ignorarem a Lei 9.504/1995 de tal forma que outra norma, a Lei nº 12.034/2009, teve que ser promulgada e elevou o nível da proteção às candidaturas femininas, obrigando os partidos não apenas a reservar vagas, mas também a preenchê-las efetivamente com 30% de candidaturas femininas. Isso só foi plenamente implementado em 2014, quando o Judiciário determinou que a não apresentação de 30% de candidaturas de mulheres resultaria na retirada de candidaturas de homens para atender à proporção exigida pela lei.
Na sequência, considerando a necessidade de garantir a equidade e a pluralidade, a regulamentação também passou a contemplar as candidaturas negras. Em 2019, foi criada a Resolução nº 23.605/2019 do Tribunal Superior Eleitoral, que trata da gestão e distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Essa resolução regulamentou a alocação dos recursos para candidaturas de mulheres e pessoas negras. Ficou definido que, no mínimo, 30% dos recursos do FEFC deveriam ser destinados a candidaturas femininas, de acordo com a proporção entre candidaturas masculinas e femininas. Além disso, os recursos deveriam ser distribuídos proporcionalmente entre mulheres negras e não negras, e entre homens negros e não negros.
No entanto, a Resolução nº 23.605/2019 tem enfrentado desafios em sua aplicação e ainda não conseguiu alcançar a distribuição equitativa de recursos para campanhas, conforme pretendido em sua criação. Partidos têm usado de subterfúgios para driblar a lei e a fiscalização ainda é insuficiente.
Porto Alegre: grande desafio
Focando especificamente a incorporação de pessoas negras no processo eleitoral legislativo municipal a partir da realidade de Porto Alegre, podemos afirmar que ainda há um grande desafio a ser enfrentado.
Segundo o Índice de Equilíbrio Racial (IER) de Firpo et al. (2022), é possível medir a participação política de pessoas negras ao compará-la à sua representatividade na população (distribuição entre negros e brancos). Ou seja, verificar se o número de pessoas negras eleitas é proporcional à sua presença demográfica. O que nos daria uma ideia do espaço que pessoas negras têm ocupado na política eleitoral.
Aqui consideraremos a distribuição colocada na Tabela 1. Assim, o IER varia de -1 a 1. Sendo -1 o valor em que haveria 100% de pessoas brancas e, em contrapartida, 1 sinalizaria 100% de pessoas negras. A condição de equilíbrio demarcada por nós suporta uma diferença de 0,2, para mais e para menos.
Tabela 1. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER)
A partir dessas categorias, podemos avaliar que a eleição de 2020 para o legislativo municipal de Porto Alegre alcançou um Índice de Equilíbrio Racial (IER) próximo ao equilíbrio, com valor de -0,21. Ou seja, houve uma correspondência mais equilibrada entre a proporção de pessoas eleitas e a distribuição demográfica de pessoas negras e brancas. Além disso, é importante destacar a melhora em relação às eleições de 2016, quando o IER foi de -0,66, indicando uma sub-representação significativa da população negra no legislativo municipal. Esses dados sugerem um cenário de maior diversidade em tempos recentes.
Ainda sobre a eleição de 2020, destacaram-se fatos que apontam um avanço na representatividade e diversidade, como a formação de uma bancada negra na Câmara Municipal de Porto Alegre. Essa bancada foi composta por cinco jovens, sendo quatro mulheres negras: Bruna Rodrigues (PCdoB), Daiana Santos (PCdoB), Laura Sito (PT), Karen Santos (PSOL) e Matheus Gomes (Psol). O grupo teve uma ascensão meteórica na política. Em 2022, Matheus Gomes, Bruna Rodrigues e Laura Sito conquistaram mandatos na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, enquanto Daiana Santos obteve uma cadeira na Câmara Federal.
No entanto, ao focarmos nas eleições municipais de 2024, constatamos um retrocesso. O Índice de Equilíbrio Racial (IER) mostra uma piora em relação a 2020 e até mesmo a 2016, com o IER de 2024 atingindo -0,78. Isso significa que a representatividade na Câmara dos Vereadores de Porto Alegre se afastou do patamar de igualdade racial alcançado em 2020.
As razões para esse retrocesso podem ser diversas, desde questões históricas até a guinada conservadora que o país experimentou nos últimos anos, criando obstáculos que impactam diretamente as candidaturas negras.
Situação no RS
Por outro lado, ao analisarmos o IER médio dos legislativos dos municípios gaúchos nas últimas três eleições, observam-se boas notícias. No Rio Grande do Sul, há uma tendência de diminuição percentual das localidades onde apenas pessoas brancas são eleitas. Esse cenário de extrema concentração de legislativos exclusivamente brancos está dando lugar a categorias de sub-representação e sub-representação moderada, além de um crescimento significativo na condição de equilíbrio.
Tabela 2. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER) para os municípios gaúchos.
Figura 1. IER para candidaturas eleitas ao cargo legislativo na Eleição de 2024
Frente aos dados observa-se que o desafio à sociedade gaúcha é promover transformações culturais e normativas que promovam a diversidade na política. Uma sociedade plural não pode aceitar um governo que não a represente, mas para isso é preciso estabelecer novas compreensões sobre o jogo político. Somente assim será possível realizar o que foi estabelecido no Decreto nº 10.932/2022, visando à redução das desigualdades raciais.
Está sob a responsabilidade também das câmaras legislativas municipais promover legislações e ações que garantam maior equidade racial, não só no ambiente político, mas em todos os aspectos da sociedade gaúcha. O ambiente legislativo é a casa de ressonância dos interesses da sociedade, o desafio de garantir maior diversidade deve ser perseguido como um valor central à democracia.
Bibliografia
FIRPO, S. et al. Desigualdade racial nas eleições brasileiras (Racial Inequality in Brazilian Elections). Available at SSRN 4111691, 2022.
* Helga Almeida é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará Eleições do Observatório Opará/Univasf. E-mail: [email protected]
* Simone Viscara é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisadora do Opará Eleições do Observatório Opará/Univasf. E-mail: [email protected]
* Edmilson Santos dos Santos doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Observatório Opará/Univasf. E-mail: [email protected]
* Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Observatório Opará/Univasf. E-mail: [email protected]
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira