Rio Grande do Sul

Eleições 2024

Bancada arco-íris: ‘Um passo em busca da verdadeira democracia’

A partir de 2025 a Câmara de Vereadores de Porto Alegre contará com uma bancada LGBTQIA+

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Bancada, da esquerda para direita: Natasha Ferreira (PT), Giovani Culau (PCdoB) e Atena Beauvoir Roveda (Psol) - Fotos: Divulgação/Rogério Fernandes/Alex Ramirez

A eleição municipal de 2020 trouxe o marco histórico da primeira bancada negra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Já nas eleições de 2024, o destaque é a primeira bancada LGBTQIA+. O resultado vai ao encontro do recorde registrado no país de candidaturas. Segundo levantamento realizado pelo instituto VoteLGBT, 225 pessoas autoidentificadas conquistaram cargos, incluindo três prefeituras.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil elegeu 26 vereadores e vereadoras transsexuais nas eleições municipais. Em 2020 foram 30. Das candidaturas atuais, foram 25 mulheres trans. Houve também um homem trans: o vereador Thammy Miranda (PSD-SP). O estado com o maior número de eleitos foi São Paulo, com 10, seguido de RS e Minas, com quatro eleitos cada.  

Essa é a primeira vez na história que a Justiça Eleitoral tem dados públicos sobre as candidaturas da comunidade LGBTQIA+.

A partir de 2025, a capital gaúcha terá sua primeira bancada LGBTQIA+, ou como nominou Atena Beauvoir Roveda (Psol), a bancada arco-íris. Além de Atena, comporão a bancada Natasha Ferreira (PT) e Giovani Culau (PCdoB) e seu mandato coletivo. 

"Vida e dignidade para todas as pessoas"

Professora licenciada em Filosofia (UFPel), antropóloga em formação (UFRGS), autora de nove livros, entre contos, poemas e crônicas, Atena enfatiza que a importância da bancada é para o fortalecimento da democracia e que a diversidade é fundamental. “Por isso a bancada do arco-íris tem papel primordial na defesa da população LGBTQIA+.”

“Nosso papel é fazer com que as pessoas que votaram em nós, e não somente elas, possam acessar e influenciar o debate público no parlamento. Que as nossas vozes possam dar continuidade às experiências vividas na rua. Tem um ditado que diz assim: existem portas que só se abrem por dentro. Nosso papel é abrir as portas por dentro”, disse recentemente em entrevista ao Sul21.

Ao falar do aumento da representatividade nos espaços de poder, Atena afirma ser "um passo em busca da verdadeira democracia". Para ela as LGBTQIA+ agora podem ter suas próprias vozes e não mais serem sub-representadas.

Sobre o período da campanha, a recém eleita conta que houveram casos isolados de transfobia, mas que tais situações foram superadas durante as panfletagens. Ao mesmo tempo, houve "muito afeto, acolhida e participação popular de pessoas que sequer conhecíamos". 

Para ela, entre os maiores desafios está o enfrentamento à extrema direita no cenário de emergência climática. “O negacionismo científico dessas pessoas promovem mais mortes e violências sociais. Nossa luta será por vida e dignidade para todas as pessoas.”

Atena recebeu menção honrosa pelos direitos de pessoas LGBTs na cidade de Canoas (RS) em 2016. Foi finalista do Prêmio Minuano de Literatura em 2019 pelo livro “Contos Transantropológicos”. 

Em 2023, foi a primeira pessoa trans a aprovar um projeto de lei tornando a poesia de rua, Slam, patrimônio cultural de Porto Alegre. Em janeiro de 2024 o Governo do Estado do Rio Grande do Sul concedeu a ela o troféu Visibilidade Trans pelo trabalho social e político na capital gaúcha e, em março do mesmo ano, o Ministério da Cultura concedeu o prêmio Sérgio Mamberti pelo trabalho de preservação, valorização e difusão da diversidade cultural.

“Sou a primeira vereadora LGBTQIA+ do Psol na capital gaúcha”, comemora.


"O negacionismo cientifico dessas pessoas promovem mais mortes e violências sociais. E nossa luta será por vida e dignidade para todas as pessoas” / Foto: Isabelle Rieger/Sul21

"Sentimento que as pessoas também tem de ter esses corpos ocupando esse espaço"

Para Natasha, a bancada LGBTQIA+ em Porto Alegre é um marco e também mostra uma dualidade de cidade, de pessoas que querem ver mudanças e também novos corpos, novas pessoas ocupando espaços de decisão. “Sabemos que mandatos de vereadoras e vereadores não são espaços de poder. Mas agora temos a responsabilidade de decidir sobre a vida da cidade, sobre o orçamento, fazer discussões e debates que são extremamente necessários. O que vai fazer com que Porto Alegre possa ser vista de novo como a capital da democracia, uma cidade que seja modelo para o país, para a América Latina como um todo”, diz.

Em sua avaliação é fundamental que a bancada LGBTQIA+, assim como teve a bancada negra em 2020, não seja um fenômeno somente eleitoral. “Mas que sejam fenômenos da cidade, dessas pessoas ocupando todos os espaços da cidade, especialmente os espaços públicos.”

Conforme opina Natasha, o crescimento de bancadas LGBTQIA+ reflete o sentimento que as pessoas têm de ter esses corpos ocupando o espaço. “A gente consegue construir uma relação de política LGBT, mas que fala de cidade. Ou seja, como o Estado é ausente para nós, e como as empresas privadas utiliza a nossa pauta apenas para lucrar. A gente tem ocupado espaço político exatamente para mudar essa lógica e para trazer uma relação de classe para o movimento LGBTQIA+, que é fundamental”, afirma. 


"Vamos confrontar diretamente os grandes conglomerados econômicos da cidade" / Foto: Divulgação

A parlamentar eleita começou sua militância política aos 13 anos, no movimento estudantil de Novo Hamburgo. Integrou a equipe da Maria do Rosário, em 2010, onde trabalhou nos centros de referência e ajudou na elaboração do Disque 100 Nacional no Ministério dos Direitos Humanos. Passou também pelo PCdoB, onde foi candidata pela primeira vez em 2018. E em 2020, no Psol, foi a primeira travesti nomeada na Assembleia Legislativa do RS.

“Os legados, a reivindicação e também a necessidade de um PT com uma cara nova, de um partido que vai se reconstruir cada vez mais, com a juventude, com as LGBTQIA+, com as pessoas negras, com as mulheres, me fizeram retornar ao PT, que é o meu berço de formação política”, comenta.

Entre os principais desafios para o mandato que inicia em 2025, Natasha destaca a defesa da comunidade LGBTQIA+. “Sabemos que o movimento LGBTQIA+ tem sido usado como uma bandeira da extrema direita para nos atacar. Com a bancada conseguiremos fazer uma discussão mais séria.”

Além disso tem a luta pela equidade no orçamento público da cidade. Segundo a vereadora recém-eleita, somente a menor fatia do que é arrecadado está indo para as pessoas que mais precisam do Estado. Ela entende que a cidade precisa de mais médico, mais creche, entre outras demandas.

"Precisamos de centros de referência. De uma política de atendimento psicológico para as vítimas da enchente aqui na cidade. Uma cidade que mentalmente está muito cansada, que está saindo desse processo, tentando entender tudo o que aconteceu. Vamos confrontar diretamente os grandes conglomerados econômicos da cidade, desde as empreiteiras, supermercados, redes poderosas de farmácia, que não pagam imposto. E obviamente enfrentar a extrema direita, que avançou na cidade de Porto Alegre.”

"Desafio e importância de subverter a realidade"

Na avaliação de Giovani Culau, a constituição da primeira bancada LGBTQIA+ em Porto Alegre tem o desafio e a importância de subverter a realidade que se tem na cidade. “Tanto do conservadorismo, da heteronormatividade, que marca a política, mas fundamentalmente, enfrentar essa realidade, em que Porto Alegre ocupa uma das piores colocações nacionais quando se analisa as políticas públicas para a população LGBTQIA+.”

Conforme pontua o vereador, na capital gaúcha não há conselho municipal, programa ou plano municipal para essa população “que sofre com a violência, evasão escolar, dificuldade de empregabilidade, acesso aos equipamentos públicos".

Ele conta que seu mandato tem lutado para adoção de uma casa de acolhimento LGBTQIA+. "Temos visto a resistência da base conservadora do prefeito que não permite com que políticas públicas fundamentais para a nossa existência sejam asseguradas no município”, critica. 


"Essa força coletiva também nos fez ter as condições de enfrentar o preconceito, as violências que também marcam o cotidiano da campanha" / Foto: Rogério Fernandes

Para ele, o aumento da representatividade é "um passo a mais de uma luta histórica" que tem garantido conquistas, mas tem muito a ser avançado. "Eu sempre reflito o fato de que no Congresso Nacional nós nunca aprovamos nenhuma legislação sequer que assegure os direitos da população LGBTQIA+. Todos os nossos direitos representam uma ideia de uma cidadania precária, porque são resultados de vitórias judiciais no Supremo Tribunal Federal”, pontua. 

Culau avalia que Porto Alegre tem dado passos importantes, como a eleição da primeira sapatão, Daiana Santos, em 2020, e posteriormente a posse de suplentes na Câmara Municipal. “Eu pude ser, do ano passado para cá, o único vereador assumidamente gay da história da nossa cidade. E hoje nós damos um novo salto, que é, para além de uma representação única, essa bancada constituída de forma diversa e suprapartidária na Câmara Municipal.”

Em sua avaliação, para que a representatividade e a luta por políticas públicas e por direitos para a população possa avançar, é preciso enfrentar um dos pilares do bolsonarismo: "uma política moral e sexual conservadora que oprime as mulheres de um lado e, de forma interseccional, também a população LGBTQIA+". Ele afirma que "o pânico moral utilizado pelo bolsonarismo" tenta atingir e impedir as existências e o avanço das lutas. "A nossa vitória passa por enfrentar e para superar esse pânico moral que eles buscam propagar". 

Nesse sentido, Culau pontua que entre os principais desafios, a partir da constituição da bancada, estão o enfrentamento da violência política que surge quando seus corpos ocupam os lugares de poder e de decisão. “Não nos basta eleger LGBTs, eleger mulheres negras, eleger o povo preto, eleger mulheres na política, nós precisamos construir uma rede que dê proteção e segurança quando ocupamos esses espaços. E, evidentemente, eu insisto, a nossa luta política e a nossa ocupação segura nesse espaço precisa ser capaz de assegurar políticas públicas.”

Além de formar a bancada, Culau também enaltece o fato de ter sido eleita a primeira candidatura coletiva da história de Porto Alegre. “Enfrentamos uma campanha bonita, alegre, que contagiu a cidade e foi capaz também de superar os obstáculos impostos para participação política de segmentos historicamente excluídos, como é a população LGBT. Muito feliz com a eleição da primeira candidatura coletiva, que é o que nós representamos. Sem dúvida alguma, essa força coletiva também nos fez ter as condições de enfrentar o preconceito, as violências que também marcaram o cotidiano da campanha”, finaliza.

O Mandato Coletivo é formado por: Giovani Culau, Airton Silva, Fabíola Loguercio, Tássia Amorim e Vivian Ayres

Além dos eleitos em Porto Alegre, o RS também elegeu outros representantes LGBTQIA+, que serão apresentados em matéria posterior.


Edição: Marcelo Ferreira