Numa época em que Donald Trump, Javier Milei, Nayib Bukele e outros personagens histriônicos convulsionam a cena eleitoral, a cientista política e historiadora Céli Pinto lembra que esses tipos “antissistema” provém todos da direita. No Brasil, a irrupção de figuras disfuncionais como Jair Bolsonaro e Pablo Marçal tem raízes na aniquilação do sistema político-partidário a partir da contestação da vitória de Dilma Rousseff no pleito de 2014, obra de Aécio Neves, o perdedor inconformado.
“O PSDB achou que a única forma de assumir a presidência novamente era tirando o PT”, argumenta. “Só que não se deu conta que PSDB e o PT faziam parte do mesmo sistema político e dependiam muito um do outro. E que, sem o PT, o PSDB não conseguiria sobreviver”. E tudo, de lá para cá, inclusive o baixo nível das eleições de 2024 e o surgimento de criaturas como Bolsonaro e Marçal, resulta desse processo de linchamento dos políticos e da atividade política.
Neste diálogo com Brasil de Fato RS, a professora aposentada da UFRGS, com doutorado de Ciência Política na Universidade de Essex, na Inglaterra, também repara que o Brasil está “estruturado em cima de um sistema patriarcal que se conjuga muito bem com o neoliberalismo decadente que vivemos”.
Ela também transita por outras temáticas como o machismo, a ascensão das mulheres na política, o risco de um eventual sucesso de Trump, o Rio Grande do Sul marcando passo na História, o medo da classe média e o papel civilizatório da universidade pública, abrindo suas portas para a diversidade e enfrentando uma elite conservadora.
Acompanhe:
Brasil de Fato RS - Estamos na antessala das eleições municipais. Essas eleições têm algo, no país inteiro, que as fazem diferentes das demais ou não?
Céli Pinto - Acho que não. São a consequência de um processo que estamos vivendo desde 2013 ou 2014. De lá para cá, há uma destruição do sistema político partidário, uma destruição da ideia de política no Brasil, uma destruição que não é casual, ela é feita por interesses muito específicos. O que vemos hoje, que é o baixo nível da eleição, é consequência de um processo que, infelizmente, já dura mais de 10 anos. E não vejo muitas possibilidades, a curto prazo, desse processo se modificar. Acho que, em 2026, vamos ter uma situação um pouco mais grave, um pouco mais destrutiva do processo político.
Bolsonaro, em si, é só um Pablo Marçal velho
E a cereja desse bolo que vem lá de 2014 chama-se Pablo Marçal?
Não, de jeito nenhum. A cereja do bolo é a estrutura toda, o partido do Bolsonaro e toda a estrutura bolsonarista. Não é o Bolsonaro em si. Bolsonaro, em si, é só um Pablo Marçal velho. Pablo Marçal é um pobre coitado. Ele é milionário mas é uma figura desprezível e que claramente se adequa muito bem à extrema direita. Não acho que seja diferente do que é a extrema direita brasileira, que tem Bolsonaro e seus 01, 02, 03, 04 e não sei quantos mais filhos e toda essa estrutura.
Pablo Marçal é uma consequência da desestruturação político-partidária e das redes sociais sem nenhum tipo de controle. Ele é patético. Bom, mas a extrema direita brasileira é patética então ele é mais um patético.
Mas é um patético que tem muitos seguidores. E parece que a cadeirada deu ainda mais seguidores.
Quer ver uma coisa? Outro dia eu perguntava para algumas pessoas o que era um influencer. Uma pessoa falava do influencer e eu perguntava 'Mas essa pessoa influencia o quê?' E a pessoa olhou para mim com um olhar parvo e disse 'Mas é um influencer!' O influencer influencia tudo na vida da pessoa. E eles têm milhões e milhões de seguidores e ganham muito dinheiro porque pegam uma xícara, a xícara tem uma marca, elas põem uma blusa, a blusa tem outra marca.
Há muitos parecidos com o Pablo Marçal ganhando muito dinheiro. E infelizmente temos um país desagregado politicamente, um espaço público desagregado, uma educação de péssima qualidade. Então, há um somatório de coisas aí que dá em um Pablo Marçal. Qualquer criatura que vende rímel tem 12 milhões de seguidores. Não há nenhuma qualidade no Pablo Marçal. Está cheio de imbecis com 12 milhões.
Temos um sistema patriarcal que se conjuga muito bem com o neoliberalismo decadente que vivemos
Como a misoginia influencia nessa cena política?
Está melhorando a condição das mulheres na política, muito devagar, mas está aumentando o número de mulheres. Há leis que não são cumpridas, depois o Congresso Nacional vai lá e faz uma anistia... Mas há leis que garantem 30% de mulheres candidatas, que garantem financiamento, tanto para mulheres como para negros.
Mas não é só a misoginia. É que nós temos um país estruturado em cima de um sistema patriarcal que se conjuga muito bem com o neoliberalismo decadente que vivemos. Então, o capitalismo, no momento que está, precisa desesperadamente não abrir espaço para novos sujeitos - homens, negros, mulheres, mulheres trans, homens trans.
A questão é que, se olharmos os partidos políticos da direita à esquerda, são partidos de homens. O governo do presidente Lula é um governo de homens. Pode ter mulheres lá mas olhem as fotografias quando tem tomada de decisão no Alvorada. Homens brancos. Na verdade, temos uma situação muito maior. Temos um país que necessita desse poder patriarcal e um capitalismo que necessita desse poder patriarcal para se reproduzir. Inclusive, com essa nova mulher construída pela extrema direita que é a recatada, bonita e do lar. A mulher da famosa família margarina. Que não existe mas que é reproduzida pela direita.
Não é questão de costumes ser contra o aborto, ser contra gays, ser contra casamentos entre pessoas do mesmo sexo. É uma questão de poder. Antigamente, o estupro era um crime de costumes. Agora, a questão de costumes é aborto, é casamento entre pessoas do mesmo sexo, tudo que for avanço. Então, é muito mais embaixo a questão...
Podem falar 'Essa mulher' ou 'Esse negro'. Mas 'Esse homem' nunca se fala...
Você estava falando e eu tive que rir porque lembrei que existe o Partido da Mulher Brasileira...
Não tem uma mulher.
E toda executiva era de homens.
É, mas esse partido não consegue nem se...
Não, não consegue, mas o grau de absurdo parece saído de um filme do Monty Python, uma coisa assim. O ápice dessa misoginia foi o impeachment sem crime de responsabilidade que vitimou Dilma?
Certamente. Mas é muito complexo. Na verdade, o impeachment da Dilma é parte do processo de excluir o PT das eleições de 2018. É claro. Evidentemente que foi muito mais fácil colocar a Dilma fora em um impeachment sem crime porque ela era uma mulher. O próprio partido dela não lhe deu apoio. Ouvi pessoas muito próximas ao partido falarem dela como 'Essa mulher'. Jamais se fala 'Esse homem', né? Podem falar 'Essa mulher' ou 'Esse negro'. Mas 'Esse homem' nunca se fala. Dilma foi absolutamente abandonada pelo partido porque era uma mulher, porque não era simpática. Ela tinha uma frase muito boa: 'Eu sou uma mulher dura, cercada de homens meigos'. É uma frase maravilhosa da Dilma.
Os homens quando são grosseiros ou quando fazem alguém esperar uma hora para ser atendido eles são poderosos. As mulheres são loucas, histéricas. O mesmo tipo de comportamento é lido pela sociedade de forma diferente. Então, é complicado. Por homens e mulheres. O poder patriarcal também domina parte considerável das mulheres. As mulheres também se enxergam como menos propícias a fazer política, a falar em público, (tem) a questão de ser mãe.
Estavas falando sobre mulheres recatadas e do lar e existem influencers ganhando muito dinheiro como donas de casa, tipo esposa perfeita. Lembro até um filme, Mulheres Perfeitas, que se passava em uma comunidade e no fim se descobria que eram todas robôs... Então, queria perguntar o seguinte: existe feminista de direita?
Não. É uma contradição em termos. Nos Estados Unidos, há um feminismo do empreendedorismo, do sucesso econômico, que poderia aparecer como sendo de direita no sentido de ser um feminismo liberal norte-americano. Certamente de todas elas nenhuma vai votar no Trump. Porque o feminismo é um movimento libertário, de igualdade. Assim como não pode existir um movimento antirracista de direita ou um movimento pró-direitos LGBTQIA+ de direita. Porque a direita é a favor da manutenção das diferenças. Pode existir mais à direita ou mais à esquerda. As mulheres que se candidatam pela direita aqui, nos Estados Unidos e na Europa, sempre se colocam como antifeministas.
Muitas vezes a presença dessa mulher na política acontece através do caminho familiar. É a irmã, é a mulher, é a esposa, é a filha. Muito dessa presença da mulher na política, não agora mas tempos atrás, começou através dessa maneira, não?
Essa é uma das questões que tem mais equívocos. Fiz há muitos anos uma pesquisa vendo o percentual de homens e de mulheres que vinham de famílias políticas. Não é diferente. Pode ser o filho. Não precisa ser a filha. Veja Alagoas onde tem os Calheiros e os Lira que dividem o estado entre si. Até na esquerda, os Campos em Pernambuco, que tem atrás de si o pai, que tem também...
Tem uma mudança aí: uma mulher conservadora que vai para o Congresso gritar contra as mulheres
Eduardo Campos.
Que tem ligações antigas com Miguel Arraes. Isso tem que ficar claro. Não são só as mulheres de direita que vêm de famílias políticas. Os homens de direita também. Mas mudou. Por exemplo, se pegarmos as eleições de 2018, houve bastante aumento de mulheres de direita. E elas não eram filhas, mães ou esposas de nenhum político. Vinham do Vem Pra Rua, dos movimentos sociais de direita de 2013 e das igrejas, inclusive do conservadorismo da igreja católica. Elas se elegeram quase fora dos partidos. Tinham um partido só porque é obrigado a ter um. Carla Zambelli é um exemplo mas tem vários outros. Em 2022, são reeleitas, às vezes como as mais votadas no seu estado. Aí, elas têm o apoio do partido. Os partidos vão lá, puxam elas e largam dinheiro em cima. São puxadoras de votos. Você vai no Rio, em São Paulo, em Santa Catarina, mulheres eleitas com uma grande quantidade de votos.
Então, tem uma mudança aí: uma mulher conservadora que vai para o Congresso Nacional gritar contra as mulheres. Não são filhas, esposas ou irmãs de ninguém. E tem poder. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados é dirigida por uma mulher de extrema direita. É uma grande contradição, uma grande tristeza do movimento feminista que passou 40 anos lutando para que as mulheres chegassem aos postos legislativos. Tem um projeto de mulher na Câmara querendo acabar com a cota de 30% de candidatas em partidos...
Uma mulher que não veio dos movimentos mas da militância, a Janaina Paschoal, se fez no processo do impeachment sem crime de responsabilidade e teve dois milhões de votos.
Foi um vôo de galinha, né?
Foi um vôo de galinha mas foi a deputada estadual mais votada na história do Brasil. Quase foi vice do Bolsonaro em 2018.
Agora ela sumiu. Deve estar andando lá pela USP.
A misoginia, o machismo, não são qualidades específicas da direita
A gente fala muito da direita, mas a esquerda também tem seus pecados. A (escritora) Márcia Tiburi usa o termo ´esquerdomacho` para tratar das dificuldades que as mulheres têm nos partidos de esquerda.
A misoginia, o machismo, não são qualidades específicas da direita. O ´esquerdomacho` é um termo antigo. É óbvio que os partidos de esquerda e centro-esquerda tendem a ser menos machistas, menos racistas, menos preconceituosos contra pessoas LGBTIQIA+. Mas (existe) essa questão do poder. Se temos 513 deputados, temos 17% de mulheres. Para ter 30% de mulheres, a única forma é tirar homens. Não tem outra (solução). Não vai aumentar o número de deputados.
Por exemplo, as listas partidárias são abertas. E os partidos vão colocar toda a campanha em cima daqueles candidatos que acham que vão ganhar. E as mulheres nunca estão lá. Agora, se tivéssemos uma lista fechada com alternância de gênero e raça, a coisa seria diferente. Mas essa lista aberta, ela é aberta em termos, porque, na verdade, as pessoas entram lá e quem ganha o dinheiro, o apoio, o horário, as facilidades, são os homens que o partido escolhe como candidatos preferenciais. Acontece em todos os partidos. A patriarcalização da sociedade brasileira é muito democrática. Inclusive em termos de classe social, de raça, de tudo.
Décadas atrás, se alguém falasse que o Brasil é um país racista seria contestado. A academia tem algum papel na construção desse país racista, encoberto, onde a gente, todos os dias, eventos e denúncias de racismo? A academia tem culpa no cartório em relação a isso?
A academia agora parece que tem culpa em tudo. Nós temos de parar com isso. As universidades públicas no Brasil têm desenvolvido, ao longo das décadas, um trabalho muito importante em termos de ciências sociais, de história, de filosofia, de ciências duras. Não podemos ser responsabilizados como estamos sendo na imprensa. Agora, por que a academia? Ora bolas, e o trabalho, o capitalismo, a exploração, a escravatura? Vamos ver o que é. Entra na Capes (agência do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo) e coloca lá 'Racismo' e vê quantas teses e quantas dissertações de mestrado e doutorado foram feitas denunciando o racismo no Brasil.
Por exemplo, tem uma pergunta aí sobre o 'Homem Cordial'. Ninguém leu o Sérgio Buarque de Hollanda. Sabe por que ninguém lê Raízes do Brasil? Porque é um dos livros mais difíceis de ler. Não lêem Raízes do Brasil e usam a ideia do 'Homem Cordial' errada. Raízes do Brasil, que é um dos livros que interpretam o Brasil, (diz que) o 'Homem Cordial' é aquele que não é cidadão. O 'Homem Cordial' é aquele que usa o racismo, usa o favor, usa por baixo da lei. 'Vamos dar um jeitinho'. Não tem nada a ver com essa ideia que se vende porque o livro é muito difícil. É muito chato de ler.
É chato mesmo.
É muito chato de ler. Então ninguém lê. Voltando à academia, existe atualmente uma campanha feita pela mídia contra ela. A academia sempre se colocou na frente. Passou quatro anos lutando contra esse governo de direita quando ninguém lutou. Ficamos lá gritando, brigando, sendo ameaçados por figuras completamente fora da casinha, para ser bem claro, como os ministros da educação. Nós sobrevivemos.
Vários ministros.
Sobrevivemos aos ministros. E a academia agora virou um saco de pancadaria. Por quê?
Temos uma direita querendo calar a universidade. E a universidade está cada vez mais aberta
Além dessa questão do racismo, a academia está sendo atacada de que maneira? Por quais razões? O que está sendo dito contra, mais especificamente, as universidades públicas?
Falo das universidades públicas mas também tem grandes universidades comunitárias de excelente qualidade. Não sejamos excludentes. Óbvio que tem uma grande quantidade de faculdades e cursos de EAD que é um horror, uma praga que está enganando as pessoas. Agora, as públicas e as grandes comunitárias, inclusive privadas, são grandes universidades e que fazem 95% da pesquisa de todo o Brasil. Ora, qual é o interesse contra a academia? É o interesse de calar a academia sobre vários assuntos: raça, gênero, ecologia...
Há um grande desenvolvimento na academia da questão ambiental, tanto nas áreas duras como nas ciências humanas. Então, existe uma vontade muito grande de alguns setores de privatizar as universidades. Temos uma direita querendo calar a universidade. E a universidade está cada vez mais aberta. Cada vez trazendo mais alunos do ensino público para dentro, cada vez mais população negra, cada vez mais população com deficiência. Ou seja, quero saber se existe uma outra instituição nesse país que tenha aberto tanto as suas portas para a diversidade que as universidades públicas.
Um dos grandes eventos políticos dos últimos anos no Rio Grande do Sul foi, primeiro, a eleição da chamada ´Bancada Negra` na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que, hoje, é a bancada de deputados estaduais e federais também. E eles vêm da universidade. Vêm das cotas. É o fato mais importante tanto do ponto de vista da mulher, mas mais ainda porque são mulheres negras. São mulheres negras e homens negros.
Um dos grandes autores da literatura brasileira que é o Jefferson Tenório, vem das cotas da UFRGS. As universidades em geral são o espaço onde há mais transformações, o que assusta as classes médias. Na verdade, houve uma época em que a classe média gaúcha por sua elegância, achava que a UFRGS era dela. Dizia assim 'a nossa UFRGS'. Uma vez eu conversava com uma pessoa e ela disse 'a nossa UFRGS'. Eu disse 'Desculpa, a UFRGS não é nossa, ela é pública, sabe?'
Diante da possibilidade do PT ganhar as eleições em 2018, promoveram uma campanha antipolítica no Brasil
Vamos falar um pouco aqui da eleição em Porto Alegre? Como se explica Sebastião Melo estar na frente nas pesquisas com tudo que vivemos aqui na cidade?
Por causa do chapéu de palha dele. Talvez seja a explicação mais razoável. Lamento muito dizer isso, mas acho que não é o Melo que está ganhando. Acho que é o PT e a Maria do Rosário que estão perdendo. (Em 2022), o Lula ganhou em Porto Alegre, o (Edegar) Pretto ganhou em Porto Alegre, o Olívio (Dutra) ganhou em Porto Alegre...
Fernanda Melchionna, do PSol, foi a deputada federal mais votada em Porto Alegre e o Matheus Gomes (PSol) foi mais votado estadual em Porto Alegre.
A cidade que teve muitos prefeitos do PT, depois o PT saiu e veio uma série de prefeitos de outros partidos mas, neste momento, me parece que passou o cavalo encilhado e não montaram. Acho inexplicável. Acho Maria do Rosário uma grande deputada, com uma importância muito grande para o Rio Grande do Sul. É uma das deputadas mais bem avaliadas do Congresso mas houve uma combinação de erros.
É absurdo pensar que uma população que sofreu o que sofreu com as enchentes e que continua sofrendo e viu um prefeito completamente perdido... Escrevi um artigo em que eu comparei o prefeito nas suas entrevistas com um personagem do (diretor Quentin) Tarantino, no filme Pulp Fiction, quando o John Travolta é mandado buscar a mulher do chefe e fica olhando para um lado e para o outro com uma cara de abobado...
Se a gente pegar essas pessoas e separá-las individualmente, é uma coleção de palhaços
Sempre houve palhaços na política mas não estou falando do chapéu de palha, é bom esclarecer.
O chapéu de palha não é de palhaço. Acho a campanha do Melo, analisando como cientista política, extremamente bem feita.
Vemos essas palhaçadas agora mas, no passado, tivemos um certo palhaço, como o Jânio Quadros que foi muito bem sucedido, com uma carreira vertiginosa de vereador a presidente em pouquíssimo tempo. Mas agora vivemos a era de ouro do apalhaçamento da política. Os debates das cadeiras aparafusadas. A presença do Pablo Marçal implodiu um determinado modelo de debate. Como está vendo isso? Há uma boa possibilidade do Donald Trump se eleger, elegeu-se o Milei aqui na Argentina com imensa vantagem, o Bolsonaro em 2018, o Nayib Bukele, em El Salvador...
Se a gente pegar essas pessoas e separá-las individualmente, é uma coleção de palhaços. Agora, se nós pegarmos eles em conjunto, vamos ter outra forma de explicar. Primeiro, são todos, sem exceção, candidatos muito à direita. Jânio Quadros, o próprio Collor de Melo, o Bolsonaro. Eles se colocam como antissistema quando há uma crise. Por exemplo, pegamos o Jânio Quadros e vemos que os anos 1950 tem uma democracia muito fragilizada. Juscelino Kubitschek esteve no poder sempre ameaçado por uma direita militarizada. Então, Jânio aparece com uma vassoura na mão, como sempre com (o combate à) corrupção, que sempre é um tema.
É o grande tema.
É um grande tema. Não é a corrupção que essa não tem o menor problema. O problema é o tema da corrupção. Jânio iria varrer (a corrupção), tinha uma vassourinha que (os janistas) usavam. Esses indivíduos estão na extrema direita. O Milei está, o Trump está, o Orbán está. Temos sempre essas figuras estranhas e sempre com um discurso antissistêmico. Mas não tem nada a ver com isso.
Bolsonaro estava há 28 anos na Câmara mas era 'antissistema', contra 'tudo isso que está aí'. Acho que isso se deveu muito, nos últimos 20 anos, a uma reação das classes médias e da burguesia brasileira contra o PT e é bem claro como isso desqualificou a política. É muito incrível. Pergunte para uma pessoa das classes populares sobre os políticos. Mesmo que vote em partido de esquerda, ela vai dizer 'Ah, não, chegou dinheiro lá, mas não sei se vai ficar na mão dos políticos'.
A burguesia brasileira depende completamente do Estado. Se não for o Estado, ela está perdida
Mas não só os políticos, o Estado também. A esfera pública.
Exato. Mas a esfera pública já é um conceito mais sofisticado. Nas classes mais altas, a burguesia brasileira depende completamente do Estado. Se não for o Estado, ela está perdida. Não só a brasileira, a americana também, a ver o governo Obama, que salvou todos os bancos americanos quando chegou ao poder. Então, diante da possibilidade do PT ganhar as eleições em 2018, promoveram uma campanha antipolítica no Brasil. E a política se torna um palavrão: 'Eu odeio política. Todos os políticos são corruptos'. Não, a maioria dos políticos não é de corruptos.
Criou-se essa figura antipolítica, que é o mais político deles. Mas ele é antipolítico... A campanha começa em 2014. As pessoas esquecem que o Aécio Neves não aceitou perder as eleições. Entrou no Tribunal Superior Eleitoral acusando fraude na eleição de Dilma. Ali se rompe o pacto da Nova República, a partir da Constituição de 1988. De 2014 a 2018 é um caos que acontece no Brasil. Faz-se o impeachment de Dilma e se prende o Lula. Acabou o PT. O problema é que o cálculo deu errado.
O PSDB achou que a única forma de assumir a presidência novamente era tirando o PT. E estava certo. Só que ele não se deu conta que ele e o PT faziam parte do mesmo sistema político e dependiam muito um do outro. E que, sem o PT, o PSDB não conseguiria sobreviver.
E morreu...
Morreu. Dá pena. Não querendo fazer trocadilho à custa do Marçal. O Alckmin, nosso vice-presidente, não teve 5% dos votos em 2018 e era para ele ser o presidente do Brasil. Tudo estava montado para o Alckmin. Não acho que o Bolsonaro ganhou por causa da facada mas a facada também perfurou a pele dele.
É que a facada aconteceu justamente no momento que o Alckmin tinha um latifúndio no horário eleitoral e quando estava crescendo. E com o negócio da facada ele não podia mais bater no Bolsonaro. Teve que parar. Guardar a caixa de ferramentas.
Óbvio que ele teve um espaço na mídia que ele não tinha. Eu ficaria tranquila se pudesse dizer que o Bolsonaro e a extrema direita ganharam em 2018 só por causa da facada. Sem facada e com o Lula de candidato, ele quase ganhou as eleições. Então, a questão é muito mais grave do que a facada.
Não acho que Kamala Harris seja qualquer coisa de espetacular. Mas tem um simbolismo importante
Temos esperança de reverter esse quadro?
É muito difícil ser profeta. É bom fazer profecia do acontecido. A profecia do que vai acontecer é muito complicada. As coisas mudam muito. Seis meses antes do Muro de Berlim cair nenhum cientista político, nenhum jornalista imaginava que ia cair. Ninguém previu. A História não é tão linear como a gente gostaria que fosse ou não fosse. A situação não é boa.
Se o Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos vai ser muito pior. Não acho que Kamala Harris seja qualquer coisa de espetacular. Mas ela tem um simbolismo importante. Ela vai fazer a mesma política externa, vai proteger da mesma forma os bancos americanos. Mas é um símbolo importante. Dá uma outra forma de pensar o mundo em que pese não haver grande distância entre Trump e Kamala. Se o Trump ganhar as eleições, acho que a direita tem muita possibilidade de avançar por muitos anos ainda no mundo.
Acho que a esquerda tem que se repensar. A nossa esquerda e a esquerda do mundo está velha. Não existe um projeto socialista de esquerda, que seja democrático, que seja inclusivo, que seja moderno, que seja jovem. Não existe aqui, não existe na França, não existe na Itália, não existe na Inglaterra.
Sou uma pessoa com muita tranquilidade para falar mal do Rio Grande do Sul
Falamos bastante sobre o Brasil e do mundo mas não falamos do Rio Grande do Sul. E o Rio Grande do Sul se apequenou assim, coitado, nos últimos tempos. Tem solução para a gente ou vai ser isso aí mesmo?
Sou gaúcha, porto-alegrense, meus pais moravam na (rua) Riachuelo, brinquei a vida inteira na Praça da Matriz, me criei no Centro Histórico. Então, sou uma pessoa com muita tranquilidade para falar mal do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre. Deixando bem claro: acho que o Rio Grande do Sul, na verdade, nunca teve nenhuma grande proeminência na política nacional.
Só em 1930.
Tá, mas vamos combinar que 1930 é mais longe, né?
E depois, em 1961.
O Rio Grande do Sul sempre foi um estado que teve uma política e um grupo conservador muito forte no interior, um estado agrário. Porto Alegre era uma cidade industrial desde o fim do século 19 e teve muitos clubes de operários sindicalizados. Teve movimentos em bairros populares nas décadas de 1940 e 1950. Teve o Brizola de prefeito na década de 1950. Então, não podemos confundir uma cidade que foi muito industrial, que teve um movimento operário muito grande, que foi um centro de esquerda importante, com o interior do Rio Grande do Sul que sempre foi muito conservador.
O hino é a síntese do atraso do Rio Grande do Sul e da forma que se enxerga errado
O estado tem um hino que diz 'Sirvam de exemplo nossas façanhas a toda a terra / Povo que não tem virtude acaba por ser escravo'. Ou seja, o hino é a síntese do atraso do Rio Grande do Sul e da forma que se enxerga errado. Comemora, como seu dia mais importante, uma revolução que perdeu. Então, tem uma mística sobre o Rio Grande do Sul que é aquela de amarrar o cavalo no obelisco... Deu, já passou. E 1961 é muito importante. O PTB foi muito importante dentro do Rio Grande do Sul e mais ainda dentro de Porto Alegre.
O Rio Grande do Sul não perdeu o espaço, não. Acho que sempre teve o mesmo espaço. Tem uma mística que é machista. Tem toda essa ideia do macho, do machismo, da valentia, da faca, da fúria.
O fio do bigode.
O fio do bigode que não contribuiu para nada. O Rio Grande do Sul está economicamente muito mal e, politicamente, está perdido. E tem toda essa cultura tradicionalista que é muito mais forte hoje do que foi antes. Fico impressionada quando alguém enche o peito e diz 'Eu sou um tradicionalista'. Fico pensando 'Meu Deus, o que será isso?' O que é um tradicionalista? Tradição, Família e Propriedade sei que é a TFP. São tradicionalistas.
As tradições do Rio Grande do Sul foram inventadas no Instituto Histórico e Geográfico, aqui do lado, em 1945. O (folclorista) Paixão Cortes desenhou a roupa. Ele e o Barbosa Lessa. Então, tem de desmistificar isso. O gaúcho não era valente. Era pobre. Andava no campo de pé descalço porque era pobre não porque era macho. Então a gente tem de desmistificar um pouco essa ideia que o gaúcho de bota e não sei o quê. Ninguém mais diz 'Eu sou tradicionalista'.
Acho o Rio Grande do Sul um estado, infelizmente, periférico e que, nos últimos anos, ele aumentou essa questão tradicional, com todo esse movimento muito conservador, que é o movimento tradicionalista. O Rio Grande do Sul é um estado periférico do Brasil e tem que se ver como periférico.
Tem uma classe média muito grande que se sente extremamente ameaçada
E tem uma questão que é ainda mais grave para além de ser tradicionalista, que é serem o Rio Grande do Sul e Santa Catarina os estados com mais células nazistas no país.
As células nazistas ainda estão dentro do que se chamaria de uma tendência da extrema direita. Acho mais fácil ver isso em países europeus, que coisas nazistas, estrito senso, se criem. Óbvio que sempre vai ter nazistas, meia dúzia de descendentes de alemães nazistas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul ou italianos, mas é uma minoria. São engolfados pela extrema direita que domina Santa Catarina e domina o Rio Grande do Sul, dois estados atualmente de extrema direita. Talvez aí também se explique um pouco a rejeição à candidata do partido contrário ao prefeito.
É bom te ouvir chamando as coisas pelo nome, extrema direita tem que se chamar de extrema direita, agora boa parte da extrema direita se chama conservadorismo, se auto chama de conservador. Mas conservador é uma coisa e extrema direita é outra, não?
Certamente. Dentro de uma democracia tem setores de direita, de esquerda, conservadores, setores com propostas progressistas, outros mais voltados a um capitalismo mais excludente, outros um capitalismo mais includente ou mesmo um pós-capitalismo. Mas a extremadireita é antidemocrática. É anti-direitos.
A extrema direita está avançando de forma absurda porque tem uma classe média muito grande no Brasil que se sente extremamente ameaçada. Temos que somar também a questão dos evangélicos, da religiosidade brasileira, cada vez mais forte, um conjunto de coisas muito complicadas para se somar. Não tenho esperança, olhando o quadro hoje, que tenhamos governos progressistas contínuos daqui para frente. Mas, também, como disse antes, o muro caiu de uma hora para outra. Então, o muro também pode cair aqui de uma hora para a outra.
(*) Versão resumida de entrevista ao podcast De Fato. Assista abaixo à edução completa
Edição: Marcelo Ferreira